20 agosto 2019

NA BOCA, NÃO - ANTOLOGIA 3







MINHA TERRA É DE NINGUÉM
A obra:

‘Minha terra é Sergipe’, de Antônio Carlos Du Aracaju, sem data de gravação registrada. No baixo, contribuíram Toninho e Mongol. Na bateria, Neném e Pedrinho do Recife. No acordeão, Miguel e Pinto do Acordeon.

A crítica:

Nota: 4,03

A estranhíssima heterogeneidade de estilos, o número astronômico de faixas – 17 – e o título apenas genérico seriam mais do que suficientes para estabelecer este trabalho como uma coletânea. Nesse caso, Antônio Carlos Du Aracaju não seria réu, mas vítima: coleções invariavelmente não fazem mais do que trucidar a unidade estética de um autor para empilhar hits acéfalos e peças de presença apenas numérica. Mas o nome do culpado figura já na capa. O que significa que, para desespero de todos, ‘Minha terra é Sergipe’ não é compilação de coisa alguma. E que se leve realmente a sério esse ‘coisa alguma’: a obra não tem pé, nem cabeça, nem vértebras. É um corpo com os órgãos internos remexidos após uma má-sucedida autópsia.

É assim que se tem gospel seguido de frevo elétrico, seguido de temas bufos de circo, seguido de MPB de caminhoneiros, seguido do predominante forró. Não é possível identificar na bagunça do compositor pretensão que vá além de uma trilha sonora para feiras e quermesses. Só que ninguém presta atenção em trilhas de feiras e quermesses. Ninguém sai de casa interessado em ouvir trilhas de feiras e quermesses. Ninguém volta pra casa cantarolando trilhas de feiras e quermesses. Quando se conclui isso, fica mais fácil arrematar o papel de uma obra como essa em sua totalidade: ser imediatamente esquecida.

A constatação acima é mais grave do que se pensa. Isso porque seria menos catastrófico se Antônio Carlos Du Aracaju houvesse concentrado sua anemia criativa em um único estilo e lançado às praças uma obra ao menos coerentemente ruim. Muito longe disso, porém, ‘Minha Terra é Sergipe’ é um exercício não-planejado de indecisão e caos. É um amontoado de qualquer coisa. O que já fornece a deixa para a contradição-mor que emperra qualquer esforço de considerá-lo inventivo: mesmo propondo variedade e sinalizando irrestrição estilística, o disco consegue a proeza de ser apático.

Mas apesar da pressa e gula intrínsecas à quantidade histérica de peças, ‘Minha Terra é Sergipe’ não foi feita para apreciadores afobados. Se fosse, as três primeiras faixas da obra logo a situariam como mais um ensaio da hoje apenas cômica MPB de beira de estrada. Isso porque o empenho do compositor em seguir os rastros de Antônio Marcos, Fernando Mendes ou Paulo Sérgio é assustador. ‘Mãe, por favor, abra a porta’ é arrastada, chorosa e repleta de declamações expiatórias de boteco, exatamente como rezam os ditames de qualquer tenor de lanchonete desejoso por marcas de batom no colarinho.

Já ‘Arca de Noé’ é tão clichê em sua construção harmônico-melódica que pode ter seu fim previsto em três segundos de execução. Mas a letra, em particular, é digna de nota. Versos como “lá vêm Gorbachev martelos propagandear”, “no olhar um incerto amanhã, o inferno e o Armageddon” apontam muito menos para as aflições políticas do autor do que para sua edificante atitude de musicar panfletos sobre a inevitável aproximação de Marte ou o fim próximo do Sol.

Não saciado em flagelar o bom senso alheio, Antônio Carlos decide maltratar Luiz Gonzaga. Para conseguir isso, reveste ‘Acácia Amarela’ de arranjos superficiais e pretensamente sinfônicos, não conseguindo mais do que diluí-la em lamento barato. Para alívio de muitos, é aqui onde se encerra o flerte do cantor com os caminhoneiros e espeluncas de rodovia.

Mas em vez de tirar o pé do buraco e passar a caminhar em solo seguro, o autor desce um barranco. Dentre inúmeras outras alternativas dentro do próprio disco, é justamente a doentia ‘Meu Papagaio’ a escolhida para introduzir a fase pós-Moacyr Franco da obra. Pelo menos quem não aceitar o desafio de agüentá-la até o fim se deparará mais rápido com a faixa seguinte, a inspirada ‘Dá-lhe Forrozeiro’. Inquieta e maliciosa, a canção segue os trilhos de alguns dos forrós melodicamente bem resolvidos de um Nando Cordel ou Jorge de Altinho.

E há mais alguns acertos. ‘Forró de Arrepiar’, mesmo algo precária, é rica. Já ‘Luiz Gonzaga não morreu’ é, de fato, uma compensação à ofensa anterior ao velho Lula. Não fosse a letra forçosamente trabalhista, seria candidata a clássico, título já usufruído pela obscura ‘Areia Branca é mais forró’, hino do morto e sepultado São João areia-branquense. Os acordes menores e as preparações tensas da canção chegam a resvalar na melancolia. E é justamente isso o que a torna interessante.

Mas o que sobra fora essas centelhas de bom gosto é, definitivamente, breu. É bem verdade que poderia ter sido pior: a quantidade de faixas dispensáveis da obra é suficiente para preencher mais dois trabalhos, o que significaria mais sofrimento. Mesmo assim, é muito difícil perdoar a presença da estridente ‘Cara e Coroa’, abertura para circos de lona furada; da sonolenta ‘Pai Nosso do Vaqueiro’, mais uma péssima tentativa de esconder a nulidade atrás de uma oração; da esquizofrênica ‘Lavou tá boa’, canção de letra misógina que insiste em cruzar Kraftwerk com Genival Lacerda. Sem falar na dezena de xotes e cavalgadas genéricas que qualquer um já ouviu sem oferecer grande atenção, preferencialmente por estar com o nariz empenhado em algum cangote.

A insistência de Antônio Carlos Du Aracaju em fazer conviver propostas tão díspares também pende à obediência de um princípio há muito risível: o de agradar a todos. Mas o autor esqueceu que agir desse jeito é apostar. Assim como é possível agradar a israelenses e palestinos e ainda arrebanhar um terceiro nicho de admiradores, é possível irritá-los na mesma proporção e ganhar de brinde o nojo de terceiros. No caso desse ‘Minha Terra é Sergipe’, Antônio Carlos Du Aracaju apostou pra quebrar a banca e perdeu. Agora, nem a mãe quer abrir a porta.

NA BOCA, NÃO - ANTOLOGIA 2

PERDIDO NA CRIAÇÃO

A obra


‘Som das Araras’, de Mingo Santana. Gravado em 98, o disco é composto por canções do próprio Santana em parceria com Tom Robson, Irmão Z e Clóvis Melo. Beto di Franco, Muskito e Jéssica Lieko fizeram participações especiais.


A Crítica


Nota: 5,61


“Aqueles que se perderam na crítica que se encontrem na criação”. É com essa frase que Mingo Santana encerra o expediente e os agradecimentos no encarte de seu ‘Som das Araras’. Mas o tapa que deveria acertar detratores específicos de sua obra acaba acertando em cheio o rosto do público em geral. Assumindo uma incompreensível postura defensiva para quem se mete a publicizar algo, Santana não quer saber de gente ‘perdida’ discutindo o que ele fez, e se estabelece como um ser acima da opinião pública, intocável sobre o degrau dos criadores. Assim o recado, ao invés de ser uma piscadela cínica para os críticos, não é mais do que um escudo de desprezo a qualquer reação ao disco. Excelente, uma vez que, com tais cartas na mesa, acreditaremos estar diante de mais um rebento de um compositor genial, capaz de ter que afastar a todos para que a luz de sua sabedoria não cegue ninguém. Mas depois de escutar ‘Som das Araras’, não é necessariamente a visão que pede arrego.

É com pesar e decepção que se constata que a obra não é, de forma alguma, rebento de um compositor genial. Ocupado demais em se situar acima da apreciação minuciosa e da discussão, Mingo Santana deixou a tarefa de ser audível em segundo plano e, mesmo cercado por uma excelente banda, pôs na praça um disco constrangedor. Muito longe do que planejara o autor, o atributo mais relevante da obra parece ser justamente o de fazer coçar o lado reativo – e negro – de qualquer um que se dê ao trabalho de realmente escutá-lo.

Se não fosse pela frase-bofetada aplicada no fim do encarte, seria possível interpretar que Santana, arrependido, preocupou-se com a saúde de sua audiência ao denominar a primeira faixa de ‘Salve-se’. Mas a própria canção-aviso é, em si, um crime. Mesmo acompanhado por músicos experimentados e arranjos sólidos, Santana zumbe frases sem tonalidade definida, canta com preguiça, desaparece ocasionalmente em meio à massa sonora e revela uma incômoda incapacidade para a criação melódica. O refrão ‘salve-se quem puder’, por exemplo, passa a impressão de ter sido feito às pressas, no banheiro do estúdio.

A faixa seguinte, ‘Ultrapasse’, é uma verdadeira aula do que não se deve fazer com as sílabas de uma frase para musicá-la. Algumas palavras, declamadas com pressa histérica, são forçosamente achatadas para sublinhar a linha ‘melódica’ de um monótono reggae oitentista. Os anos 80, aliás, são a principal referência dos arranjos deste ‘Som das Araras’. Ótimo, mas é de se perguntar em que estavam pensando Santana e sua Arara´s Band – apenas desta vez protagonista de um equívoco – na faixa ‘Revel’. Composta por timbres que remetem tanto a comerciais de boutique quanto a anúncios de hora certa em rádio FM, a canção parece citar em sua levada inicial o tema da descida da nave no ‘Xou da Xuxa’. Além, é claro, de se constituir por extensão em uma não-planejada homenagem a medalhões oitentistas da ordem de Bozo ou Sérgio Mallandro.

Depois dessa apoteose infantil, Santana se empenha em compensar com agressividade. Porém, não vai muito longe com isso, e corresponde exatamente a toda desconfiança que se pode gerar diante de um hard rock batizado como ‘A Bossa Nova é Nossa’. É a partir dessa faixa, antipática e algo imatura, que se constata que o autor, apesar da versatilidade de seu repertório, parece sempre estar cantando a mesma música. Não há variações, não há opções relevantes de fraseado, não há sequer interpretação. E nessa faixa em particular o guitarrista, talvez cansado de contribuir com algo que dificilmente daria certo, permite a descensão do caboclo de um Van Halen e senta a mão nos solos. Mas é muito difícil algum instrumentista não aparecer diante da nulidade do cantor.

Lamentável, uma vez que ‘Som das Araras’ e ‘Cidade Adormecida’, se bem interpretadas, poderiam resultar até mesmo na salvação do disco inteiro. Ambas têm força, acordes melífluos e arranjos equilibrados. São composições firmes. Só que Santana insiste em alcançar o mérito não de tê-las feito, mas de tê-las estragado: em ‘Cidade-adormecida’, temos desafinação e falta de carisma; na faixa-título, temos desafinação, falta de carisma e uma irritante mania – recorrente em todo o disco – de somar ‘rás’, ‘rés’ e ‘ris’ ao fim de fraseados com vogais.

Por essa série de equívocos, aturar ‘Som das Araras’, 15 faixas adentro, parece façanha interminável. Por mais que se busque algo, o que se encontra é a monotonia da pretensiosa ‘À margem da História’; a ‘interpretação’ bisonha da muito bem arranjada ‘Japa’; a nada convidativa ‘Ponta dos Mangues’, prima feia da faixa-título. Sem falar no frio assassinato dos excelentes arranjos de ‘Visagem’ – que lembra em certas passagens os anos 80 de um João Bosco –, ‘Pra Dar’, ‘Nu Amor’ e ‘Comodista’, pela performance de calouro nervoso e inseguro do cantor.

O único mérito de Mingo Santana é o de ter reunido ao seu redor músicos dispostos a extrair o máximo de suas harmonicamente interessantes composições. Fora esse único fator, ‘Som Das Araras’ não é mais do que um atestado da incapacidade de seu autor de levar a público suas próprias criações. No mundo de Santana, crítica e criação se anulam e não podem conviver. Se isso pegar no mundo real, aí sim, salve-se quem puder.

NA BOCA NÃO - ANTOLOGIA 1

RUIM Q-DÓI

A obra: ‘Súbito E-Feito’, de Deílson Pessoa. Gravado entre 2006 e 2007, obra contou com a colaboração de Theo Lins nos teclados e direção de arranjos, Saulo Ferreira nas guitarras, Rômulo Filho na bateria.

Nota: 2,03
Indicado para quem: tem como incinerar o disco d-pois.

A crítica:
Gravar um disco não é fácil não, rapá. É preciso tempo. É preciso repertório. É preciso saco para aturar técnicos arrogantes, músicos sem estímulo, gente que quer levar o estúdio pra casa. É preciso algum dinheiro no bolso e idéias consistentes na cabeça. É preciso ainda mais algum dinheiro, ainda mais idéias, ainda mais tempo. E durante as sessões, é pouco recomendável agendar compromissos, muito pouco recomendável ter família e nada recomendável ter emprego. Mas parece que para Deílson Pessoa, não. Gravar é fichinha. É mole. Dá pra tirar de letra. Dá pra matar essa no peito e chutar no ângulo enquanto se toma um toddynho.

E é ridiculamente fácil assim porque, pelo seu conceito de criação – aplicado no artefato acima –, não há essa necessidade toda de fazer as coisas direito. Mas que raciocínio interessante, esse. Pra que tocar bem, se posso ter uma banda para esconder minhas limitações? Pra que cantar direito se nem terminei de fazer a linha vocal? Pra que terminar as composições se tenho pressa de lançar logo o trabalho? Pra que investir mais na harmonia se minhas letras dão pro gasto? Ora, quem é genial é genial com pouco. E foi crente em sua irrefutável genialidade que o autor deixou pra lá o minúsculo detalhe de concluir o disco para se dedicar a uma outra tarefa: transformar ouvidos alheios em ‘p-nico’.

‘Súbito E-feito’ é um disco pela metade em todos os aspectos. Primeiro, trata-se de obra composta por letras razoavelmente promissoras envoltas em canções irrelevantes e sem acabamento. Segundo, traz em sua ficha dois ou três músicos gabaritados, mas é uma coletânea bem generosa de faixas executadas com preguiça. E terceiro porque o protagonista, mesmo pondo a cara a tapa em um projeto solo, não se importa muito em cometer constrangedores e primários desvios de afinação, nem em cuidar do horrível timbre do violão base, nem em tocá-lo com o mínimo de domínio, como atestam solenes trastejadas e cordas acidentalmente soltas.

Sair do estúdio com um trabalho desse calibre clamando por oportunidade é, no mínimo, um escândalo. Isso porque a oportunidade-mor, na realidade, é ter em mãos recursos para gravar 13 faixas no estúdio mais conceituado da cidade e ter a aceitação de outros músicos diante da proposta. E é de frente para um microfone e de instrumento em punho, em um registro incansavelmente ensaiado e burilado à exaustão, que deve ocorrer a entrega. Mas ainda mais sofrível do que constatar que ‘Súbito E-feito’ é um imenso desperdício de fundos é concluir que ‘Súbito E-feito’ é um imenso desperdício de tempo, tão despudorada que é sua superficialidade estética. Pelo menos a obra, que é metade de si mesma e talvez a décima parte de qualquer outra coisa, mostra-se rigidamente inteiriça em um outro campo: o do fracasso.

LÔRO QUER BISCOITO
Há algo particularmente familiar em ‘Vertigem’, a número um. Ritmia pretensamente pop em um violão seco, teleco-teco ao fundo, progressão um-quatro em campo harmônico menor, linhazinha melódica iniciada no quinto intervalo da tônica. Ah, tá. Teremos um sub-cover de ‘Samba a Dois’, de Los Hermanos. Mas o que se iniciou como uma pobre lembrança dos cariocas torna-se assustadora versão xerográfica logo a seguir: no início de sua linha vocal, ‘Vertigem’ faz ‘currupaco’ no ombro de Marcelo Camelo sem nenhum constrangimento. Para disfarçar um pouquinho, Pessoa joga um acorde sem compromisso aqui ou ali, mas não consegue resistir ao ímpeto reverencial de dar à sua faixa o mesmíssimo arranque da canção los-hermânica. Quando vislumbrada como sombra de outra coisa, ‘Vertigem’ transmite antipatia e falta de autonomia criativa – defeitos pré-primitivos em algo de quem bate no peito para dizer que faz alguma coisa. Quando vista como algo em si, é apenas a típica abertura que não abre e ainda por cima manda a audiência catar coquinho.

Com um refrão que nunca é mais do que um retalho de escorregões de afinação costurados por uma performance vocal  insegura, burocrática e de carisma nulo, ‘Espacial’ é a típica peça que não foi terminada. Só que quando se junta o adágio infeliz com as estruturas anteriores, exercícios insípidos do que há de mais chato no pop rock, percebe-se que o maior problema da faixa não é necessariamente o fato de ter sido mal concluída, mas sim o de ter sido começada. Uma coisa dessas jamais deveria ter saído de momentos ruins de ensaios piores ainda. Mas saiu. E não apenas entrou em um repertório gravado, como entrou na estratégica posição de segunda faixa de um repertório gravado. É assim que se dá uma baita cusparada no ouvido de quem quer que seja.

TOQUE DE LETRA
Encontrar um ponto alto em um trabalho tão empenhado na frivolidade é tarefa para poucos. Mesmo assim, é necessário destacar que ‘Maria Augusta’, ‘Contra-símbolo’ e ‘Imperfeito’ têm algum corpúsculo de potencial a mais diante da péssima coleção de más idéias que o disco é. A primeira, mesmo ingênua nas estruturas e simplesmente escolar em certos trechos, é salva por um elemento na qual Pessoa revela muito mais intimidade do que na arte de pensar harmonias e melodias: letra.

Versando sobre a já folclórica e merecedora de busto ‘véia do shopping’, o compositor consegue ser denso e levemente irreverente sem ser pernóstico, o que, diante do assunto, é muito. Já na segunda, seu aceitável pendor para a pena pouco pôde fazer: ‘Contra-símbolo’ traz a maior quantidade de escorregões de afinação por metro quadrado de toda a obra. Cantada com uma falta de sensibilidade tonal simplesmente inacreditável, a faixa só vale alguma coisa apenas pelos arranjos, que revelam uma força que não se vê em nenhuma outra peça.  A terceira e última ‘Imperfeito’, por sua vez, é uma baladinha até digerível, mas sem brilho algum para sobreviver a três metros de distância do disco – único lugar onde ela de fato se destacaria.

‘TÓIN’
Se o fracasso ronda a milímetros do trio acima, trespassa com vigor e por várias vezes cada uma das demais faixas. Em ‘Deixe Star’, os arranjos se esticam, se desdobram, fazem acrobacias, piruetas, saltos mortais, andam de um pé só, chupam cana e tocam sax, mas não tem jeito. Nada salva a canção de ser monótona e monotônica demais para ser notada, o que prova de uma vez por todas que o que é ruim será ruim com qualquer coisa por cima, por baixo ou pelo lado. Já o dedilhado choroso de ‘Liricomputador’ apresenta grau 34 na escala Richter de chatice e faz a faixa se parecer com pelo menos outras 973 mil cançõezinhas sub-melosas de pop. Mas as primeiras palavras da canção revelam comovente preocupação do autor com a economia de tempo de seu público. Ao lançar mão de versos dolorosamente ‘originais’ como ‘busque-me, conecte-me, estou online you’, todos apontando para a atualização cibernética do lirismo tupiniquim – tabu absoluto no cancioneiro nacional, que ainda não encontrou uma solução pra isso –, Pessoa convida todos a pular de faixa imediatamente. Tanto faz para onde. O negócio é ser rápido.

O problema é achar opções pertinentes o suficiente para fazer da troca um bom negócio. A introdução de ‘Cumplicidade’, por exemplo, é marcada pelo incômodo e disfuncional soar de uma corda solta sobre um acorde posterior muito diverso, gerando horrível dissonância – coisa que pode ser interpretada, sem nenhum esforço, como um erro infantil de execução. Quando os arranjos entram e escondem a patada, tem-se um interessante enlace entre jazz e cavaquinho. Mas se é para essa mistura ser definitivamente lembrada, que seja experimentada em canções mais notáveis: se ‘Cumplicidade’ não consegue se destacar em repertório tão fraco nem com gotas de invenção, não terá êxito em lugar nenhum. Aprofundar nas rasteiras ‘Movimento’, ‘Bumerangue’, ‘Latifúndio’, ‘Depois do fim’ e ‘Impressão’ é apenas concluir que certas faixas precisariam passar por um nível mais sofisticado de ‘lapidação’: destruição de suas originais com um martelo, incineração e esmagamento das cinzas por uma Scania. Isso sim é dar ‘acabamento’.

Mas nem a desintegração de tudo com um acelerador de partículas resolveria a nulidade quase absoluta desse trabalho. ‘Súbito E-feito’ é ruim D-mais. Enjoado pra K-cete. É pra quem tem saco D-aço. Mas bem que avisa. Tudo parece, de fato, ter sido concebido subitamente, no susto, no nervosismo, a fórceps, com a ansiedade e o desespero empurrando tudo guela adentro. E que estranha matemática resulta disso: mesmo metade do que deveria ter sido, ‘Súbito E-feito’ consegue ser duas vezes pior do que qualquer coisa.

24 agosto 2014

AS 10 CANÇÕES MAIS (INJUSTAMENTE) SUBESTIMADAS DO BEATLES

Por: Scott Skinner
Tradução: Igor Matheus

 


Peraí. Os Beatles… subestimados? Você quer dizer… a maior banda da história? Aquela com mais de 600 milhões de discos vendidos desde que surgiram no The Cavern no começo dos anos 60? Só pode ser brincadeira.

Parece estranho usar o termo “subestimado” quando nos referimos aos Beatles. Mas existem muitas pérolas escondidas no catálogo da banda que merecem um momento de destaque.

Singles clássicos como “Hey Jude’, ‘Strawberry Fields Forever’ e ‘Help’ se tornaram marcantes, enquanto faixas de discos como ‘In My Life’, ‘Something’ e ‘A Day In The Life’ receberam os louros que mereceram. Enquanto isso, outras canções parecem ter sido ignoradas, não chegaram sequer aos Top Ten, ficaram ausentes do rádio e chegaram até a ser evitadas pelo X Factor, este grande bastião da música. Então é hora de equilibrar as coisas.

Já foi dito que canção pop perfeita é aquela que pode ser assobiada pelo carteiro. Pode ser que estas canções não tenham chegado a tanto, mas é justo que alcancem uma audiência maior.

Então estão aqui dez faixas que merecem mais reconhecimento como clássicos dos Beatles. Algumas das escolhas tem sido celebradas entre fanáticos e músicos dedicados, mas não pelo mundo inteiro. Mas isso muda agora.

10. I’ve Just Seen A Face

Lançado no álbum Help, “I’ve Just Seen a Face” é um marcado e ágil country de Paul McCartney. Gravada na mesma sessão de “Yesterday”, a canção traz letras que capturam a emoção da paixão à primeira vista, enquanto o instrumental casa o folk de Simon e Garfunkel com traços do divertido “remelexo” de Elvis Presley.

Em 1965, McCartney, envolvido em um caso amoroso com Jane Asher, ficou um pouco atrás de seu principal parceiro em relação às composições. Lennon escreveu e cantou em alguns singles anteriores, incluindo “Ticket to Ride” e “Help”, e parecia ter mais destaque nos álbuns A Hard Days Night e Beatles for Sale. Mas foi com ‘I’ve Just Seen a Face’ e a notável ‘Yesterday’ que McCartney voltou à forma.

De olho na crescente cena folk dos Estados Unidos, o selo americano da Capitol Records escolheu “I’ve Just Seen a Face” como primeira faixa na versão yankee do disco Rubber Soul. Amada por fanáticos pelos Beatles, “I’ve Just...” é o tipo de coisa que todo músico de rua deveria aprender – se honra seu chapéu na calçada. Subestimada talvez pelo público em geral, a canção não é esquecida pelo próprio McCartney, que a inclui regularmente em seus shows. Paul sabe o que é melhor.


9. It’s All Too Much

Eis um saboroso pedaço de psicodelia de George Harrison na trilha sonora The Yellow Submarine. A faixa começa com uma guitarra lamuriosa e ao mesmo tempo estridente antes de dar entrada a um macio tema de órgão. E então a bateria salpica e pula enquanto a música zumbe e “esperneia” – como se tivéssemos enfiado a cabeça dentro de uma colmeia.

Ninguém parece se esforçar muito enquanto a melodia flutua dentro de uma neblina suspeita, com tudo suspenso por uma firme base de trompetes. E eis um som que influenciou psicodélicas e maltrapilhas guitar bands através dos anos, desde os (injustamente subestimados) Boo Radleys e The Flaming Lips a grupos mais recentes como Jagwar Ma e MGMT.

Até para ressaltar a natureza da canção, Harrison chega a reciclar uma linha do hit ‘Sorrow’, do The Mersey, assim que a peça chega no final. Seis minutos de faixa podem ser literalmente demais, como o próprio título sugere, mas a peça do guitarrista permanece como uma excitante e caótica exploração da psicodelia da era LSD.


8. You Know My Name (Look Up The Number)

Geralmente colocada de lado como um número descartável de gracinhas, “You Know My Name” merece mais crédito não apenas por seu ânimo despretensioso, mas pelo seu pulsante mantra de abertura.

A peça abre com um canto breve, originalmente planejado para ter quinze minutos (o que teria sido incrível) antes de dar espaço para McCartney (como um desastrado crooner, ou um Denis Obell) a agir como um inebriado Sinatra recostado em um uma atmosfera de ‘samba’. Lennon interrompe, e reveza com o comediante Spike Milligan uma sucessão de vozes retardadas - tudo enquanto se repete o refrão “you know my name, look up the number”.

A banda continua a evocar seus heróis da comédia, como The Goons, Pete and Dud e Monty Python, enquanto ecoa a anarquia pateta do Bonzo Dog Doo-Dah Band. É certo que as tentativas de humor dos Beatles nem sempre conseguiam surtir efeito, mas esta bobagem é contagiante, divertida, e tanto Lennon quanto McCartney relembravam da canção com carinho – ao ponto de Paul declarar que esta era sua peça favorita dos Beatles, “apenas por ser tão insana”.

O Rolling Stone Brian Jones aparece para contribuir com um sax alto, enquanto o empresário e assistente Mal Evans adiciona alguma ambiência com uma pá sobre cascalho. Apesar de gravada em meados de 1967, “You Know My Name” não viu a luz do dia até 1970, quando foi lançada como lado B do single final de Let It Be.



7. Things We Said Today

Escrita durante um feriado nas Bahamas em 1964, “Things We Said”, de McCartney, faz um sombrio vislumbre de seu caso amoroso com Jane Asher. Enquanto estava em um iate com Asher, Ringo Starr e a futura esposa do baterista, Maureen, o baixista se recolheu para um deck inferior e criou esta reflexiva canção de amor.

A peça varia entre tons maiores e menores e da balada para o rock enquanto McCartney explora o conceito que ele viria a chamar de “nostalgia do futuro” – imaginar como o casal olhará as conversas que tinham em hipotéticos dias posteriores.

A peça ganha ainda mais vida com a guitarra base de Lennon e a batida apressada de Ringo. E é uma demonstração da maturidade de Paul como compositor: é notável como ele podia soar tão ácido mesmo tão jovem. A canção foi lançada no lado B do single A de “A Hard Day’s Night”.



6. What You’re Doing


Enquanto Lennon era um especialista na acidez, era raro vislumbrar um McCartney raivoso. Mas é esta peça frequentemente ignorada do Beatles For Sale que surge, talvez, como um dos melhores exemplos de um Macca irritado.

A bateria “spectoriana” de Ringo prepara o ambiente para um riff de George Harrison na guitarra de 12 cordas – um som que pavimentou o caminho para a carreira e o som dos The Byrds. “What You’re Doing” apresenta algo a mais em relação às típicas letras “raivosas” de Paul, possivelmente reflexo dos problemas que ele enfrentou em seu relacionamento com Jane Asher. Mas mesmo assim o baixista entrega um vocal doce, ameno – e suspeita-se que Lennon teria cantado com um tanto mais de veneno.

Aparentemente, a banda tinha dificuldade para fazer a canção vir à tona, e a abandonou em setembro de 1964 antes de terminá-la no fim de outubro. A pausa parece que funcionou quando McCartney persuadiu Ringo e George a alcançar performances mais espirituosas e diferenciadas.



5. Inner Light

Lançada em março de 1968 como lado B de “Lady Madonna”, “The Inner Light” assinala a primeira vez que George Harrison teve uma composição creditada em um single dos Beatles. E representou uma notável mudança de qualquer coisa ouvida antes em um single da banda – um mergulho total na música e na cultura indianas as quais o guitarrista estava começando a ficar imerso.

A base da faixa foi gravada nos estúdios indianos da EMI com músicos locais quando Harrison estava em Bombaim para gravar sua trilha sonora do filme Wonderwall, de inspiração hindu. Já as letras foram tiradas do texto taoísta, Tao Te Ching – e é assim que Harrison evoca uma doce e inocente canção, que soa como reminiscência da banda de folk psicodélico The Incredible String Band.

A canção é a mais bem sucedida incursão de Harrison dentro do universo indiano como membro dos Beatles, e revela a amplitude do poder musical do quarteto. Que outra banda poderia colocar lado a lado o boogie woogie de Lady Madona e algo tão delicado como essa peça?



4. Real Love

Pode uma canção que foi lançada como single realmente ser classificada como subestimada? Neste caso, sim. “Real Love” foi o segundo single lançado sob o projeto Beatles Anthology, que reuniu os três Beatles “sobreviventes” – na época – para ressuscitar duas demos deixadas por John Lennon.

Enquanto “Free as a Bird” recebeu muita badalação no seu lançamento no natal de 1995 – chegando até a receber um Grammy por melhor performance pop –, “Real Love” quase foi escorraçada no meio de março de 1996. A canção vendeu 50 mil cópias em sua primeira semana, mas foi ignorada pela Radio 1 no Reino Unido, que se recusou a colocá-la no playlist. Os Beatles “renovados” não foram suficientes para tirar Garbage, Shed Seven e Mark Morrison’s Return of the Mack do repertório da emissora. No rastro desse cenário, “Real Love” atingiu apenas um quarto lugar no Reino Unido e um décimo primeiro nas paradas americanas – um vexame para um material que merecia muito mais.

“Real Love” é uma sedutora peça que traz uma das mais comoventes melodias de Lennon – o piano original da demo é de rara e delicada beleza. E os três Beatles remanescentes fizeram um trabalho genuíno, mas a presença de Jeff Lyne na cadeira de produtor deu à canção um quê de “Bootleg dos Beatles à moda ELO” que tirou certa autenticidade de tudo. Ainda assim, é uma canção muito melhor do que “Free as a Bird” e, em termos de Beatles, o mais subestimado single do quarteto.



3. Rain

Talvez “Rain” não seja tão subestimada quando as outras nesta lista, pois cresceu em estatura e influência nos últimos quarenta anos desde que foi gravada. Mas ela ainda está para ser reconhecida como uma das grandes canções do grupo.

Apesar de ter quase quarenta anos, “Rain” ainda soa como nova e ao mesmo tempo indubitavelmente feita em 1966. Situada no lado B de Paperback Writer, Rain é um clássico rock que traz a melhor performance de Ringo Starr nas baquetas e um dos mais poderosos desempenhos vocais de Lennon. Starr preenche cada instante possível com sua bateria enquanto Lennon alonga cada “Rain” e “Shine” – e não surpreende que uma encarnação anterior do Oasis tenha sido chamada de The Rain.

O solo agudo de baixo de McCartney casa com a performance virtuosa de Starr, e a extraordinária mistura desaparece do fundo enquanto vocais se repetem por trás na coda. “Rain”, enfim, permanece como um dos mais emocionantes momentos na carreira dos Beatles.



2. There’s A Place

Iniciada com uma gaita meio que fúnebre, “There’s a Place” constroi uma madura evocação do espírito adolescente – capturando o crescimento da cultura adolescente e o ambiente de provocação do fim dos anos 50 e começo dos anos 60. Menos apreciada que “Twist and Shout” e “I Saw Her Standing There” no álbum de estreia da banda, a faixa traz dois minutos de perfeição pop.

Partindo de uma deixa de “Somewhere (There’s A Place For Us)”, do filme West Side Story, Lennon articula temas mais cerebrais do que as simples canções de amor daqueles tempos. Como Lennon pega a primeira voz e McCartney a segunda, as letras retratam o auto-refúgio mental – tema para o qual Lennon voltaria várias vezes por toda sua carreira.

Fruto de uma das melhores fases de John Lennon, a canção pode ainda ter influenciado Brian Wilson a criar o clássico “In My Room” para os Beach Boys. Gravada um pouco depois naquele mesmo ano, a canção trata de tema similar a “There’s a Place”: solidão e retraimento para ficar com os pensamentos.



1. Hey Bulldog


A vibrante e despreocupada “Hey Bulldog” é talvez o maior exemplo da autêntica alegria de ser um beatle Gravada durante a produção da promoção de “Lady Madonna”, a peça surgiu quando a banda desenvolveu um esquete criado em parte por Lennon em um das mais divertidas e dinâmicas criações do quarteto.

Claramente influenciados pelo estridente piano de “Lady Madonna”, Lennon e a banda produziram um hilário número de rock. O engenheiro de som dos Beatles, Geoff Emerick, chegou a dizer que aquela foi a última vez que a banda trabalhou como um verdadeiro time na canção e todos os membros estavam e no seu auge – talvez o último real vislumbre da maior banda de todos os tempos trabalhando como uma unidade coesa. McCartney em particular, produz uma espetacular linha de baixo.

O próprio Lennon entrega um incrível trabalho vocal, completo com latidos e urros de seu parceiro McCartney. A canção foi incluída no álbum Yellow Submarine, mas apesar de ser amada por fãs, merece aclamação universal como um dos pontos altos do brilhante catálogo da banda.



Fonte: The Beatles: As 10 canções mais (injustamente) subestimadas http://whiplash.net/materias/melhores/208954-beatles.html#ixzz3BKKoSXAv

20 março 2013

GENESIS - ANÁLISE DISCOGRÁFICA [PARTE I]


O Genesis costuma ser apontado como pináculo de uma linguagem morta, vazia, canônica e intelectualóide que seria implodida pela visceralidade ora neandertal ora pré-neandertal do punk nos anos 70. Era a linguagem do barroquismo e do floreamento progressivo, que depois de uma penca de discos soando exatamente iguais, começou, de fato, a desgastar a correia.

De fato, isso aconteceu com pelo menos 98% das bandas do estilo. Na maioria dos casos, o mal afetou a discografia inteira. Com o Genesis, curiosamente, não. Porque a banda não conseguiu permanecer a mesma em nenhum momento. No auge do rock progressivo, perdeu seu vocalista e principal letrista. Quando ainda tentava se reinventar, perdeu o guitarrista. Quando construía uma linguagem própria, teve de apropriar por completo a estética de seu membro mais bem sucedido. O Genesis nunca parou quieto. Não foi afetado por nada além das rasteiras de sua própria trajetória.

O objetivo da análise discográfica abaixo, dividida em três partes, é um só: nenhum. Mas como esse blog passou 5 meses parado, é importante ressaltar o benefício que meu retorno às atividades traz para a história da literatura brasileira: nenhum de novo.
 

PRIMEIRA PARTE: FIRTH OF FIFTH

From Genesis To Revelation (1969)



Um fã mais afoito de Genesis que escutar isso aqui pela primeira vez irá repensar seus valores, sua alimentação, seu dia a dia e, em um nível mais preocupante, sua opção sexual. Porque “From Genesis to Revelation” tem tanto a ver com o som característico da turminha de Peter Gabriel quanto um jiu-jiteiro amazonense com uma sessão de cinema independente egípcio. É verdade que para uma bolacha composta e gravada por punheteiros de 16 anos, soa muito bem – e é particularmente curioso como Peter Gabriel ecoava sua angelical voz de ancião com tosse antes de cultivar pentelho. Mas alguém sabia o que estava fazendo quando convocou tamanho bando de pivetes para um estúdio em pleno ano de nascimento de coisas como “Abbey Road” e “The Piper at The Gates of Dawn”. “From Genesis to Revelation” é, na verdade, uma espécie de demo inchada de canções a la Bee Gees para permitir que o produtor trocasse de carro. E como todo trabalho inchado, é irregular.

Na primeira metade, o disco não apenas exibe curvas características de um bom disco dos anos 60, mas se mostra melhor que muita coisa. Pecinhas simpáticas e bem estruturadas como “In the Beginning”, “The Serpent” e “In the Wilderness” poderiam ter sido regravadas por James Taylor e Joan Baez ao vivo em qualquer evento pró ‘bring our fucking kids back’. A segunda metade, entretanto, parece se esforçar para espelhar a primeira, em clara demonstração de que a capacidade criativa dos mijadores de cama ainda não contemplava um dispositivo de meia hora ou mais. No fim das contas, “From Genesis to Revelation” soa como muita coisa, menos como o som tortuoso, eruditóide e tecladístico que seria, de fato, o Genesis que se conhece. Bonitinho, mas depois da metade, meio ordinário. 


Trespass (1970)



A Rolling Stone dos anos 70 pode ser acusada de muita coisa. Menos de falta de contundência. Para ela, ‘Trespass’ era só um disquinho “irregular, mal definido, às vezes chato por natureza, e deve ser evitado por todos, menos pelos fãs mais fanáticos do Genesis”. É mais ou menos por aí. Apesar de conter a importância de já trazer os elementos fundamentais do jeito Peter Gabriel de ser Genesis – com exceção da bateria técnica e mais bem azeitada de Felipe Collins, membro mais tardio – , ‘Trespass’ é uma imundície sonora e traz infames arestas de experimentação. Mas assim como “From Genesis to Revelation”, não é um disco compulsoriamente dispensável. E diferente daquele, é uma demonstração de arrojo harmônico pouco observável, inclusive, entre grupos do então recém-surgido rock progressivo. O problema é que eles ainda não sabiam direito o que fazer com tamanha sofisticação. Enquanto aprendiam, soltavam peças infinitas com solos maiores ainda, masturbação tecladística a vontade e arranjos que se destacavam pela insistente capacidade de esmigalhar o bom senso.

Nursery Crime (1971) 



Phil Collins está surdo e distante o suficiente para ouvir essa. Mas “Nursery Crime”, seu primeiro bolachão com o Genesis, é o melhor disco pré-Selling England da patota. Para fazer a obra emparelhar com o clássico, o esforço seria tremendo. Mas poderia ser  resumido a intervenções facilmente localizáveis. Bastaria tirar fora dois terços de devaneios pomba-giratórios de “The Musical Box”, um terço de evoluções punhético-solísticas de “The Return of the Giant Hogweed” – alardeada por Steve Hackett como invólucro do primeiro solo de digitação da história dos solos de digitação –, outro terço de colagens felo-colonoscópicas e proto-timbrísticas de “The Fountain of Salmacis” e, finalmente, a porra da “Harold the Barrell”  inteira. Já o resto da obra soa como a apoteose das canções lentas, todas, aqui, irretocáveis: “For Absent Friends”, “Seven Stones” e “Harlequin” são irônicas demonstrações de um Genesis funcionando muito bem sem bateria justamente na estreia de seu mitológico castigador de peles.

“Nursery Crime” é uma espécie de Dança com Lobos do rock progressivo. No começo, a única coisa que nos faz ir até ele é alguma falsa curiosidade histórica. No meio, nos surpreendemos com suas babaquices. E no final, como melômanos fãs de progressivo de coração mole que somos, acabamos cativados, fieis e mais ababacados do que nunca.

Foxtrot (1972)


Pegaram aquela maçaroca tecladística que Tony Banks criou para a introdução de “Watcher of the Skies” e fizeram um timbre oficial de teclado. Mas aquilo só tem alguma graça em Foxtrot. No resto, soa como papel alumínio amassando. Porque é o tipo de coisa que corresponde, em termos sonoros, com a visão plastificada e em péssimo chroma key que os anos 70 têm dos anos 2000. A reprodução ad vomitum que o progressivo recente faz daquela sonoridade é um atestado de má nostalgia. Mas que é difícil de prestar atenção em cada detalhe desse disco, disso tem-se mais certeza do que da atividade sexual de certos vloggers.

A própria “Watcher of the Skies”, com todos os seus momentos risíveis e feitos às pressas aqui ou ali, é melhor do que tudo o que o King Crimson fez. “Time Table” é um medley de simpáticas ideias harmônicas, compreensível e assobiável por qualquer vovô fã de Orlando Silva. Já “Get em Out by Friday” é o momento em que Phil Collins diz “look at me once more” e Mike Rutherford, por sua vez, diz “suck it, Chris Squire”. Enquanto isso, a derradeira “Supper’s Ready” é só uma peça grande. E superestimada exatamente por causa disso. Porque se ela tem mais de vinte minutos, é porque a banda quis que você dedicasse parte de seu dia a contemplar sua grandiosidade. Pelo menos até que se entenda que ela não passa de uma colagem de peças com um refrão repetido mais do que seria justo.

No cômputo geral, Foxtrot garante os três pontos. Mas era apenas mero exercício do que ainda estava por vir. 



 
Selling England by the Pound (1973)



Todos os vícios instrumentais que tornam qualquer disco de progressivo italiano, húngaro e alemão mais enfadonho que teorias esquerdistas de reengenharia social estão nesse disquinho. Mesmo assim, “Selling England” comporta-se como uma masterpiece deslocada – o tipo de coisa que nem o próprio Genesis conseguiria reproduzir de novo. E a culpa é inteiramente deles. Aqui, os solos de Hackett são sofisticadamente simples – ou simplesmente sofisticados. Tony Banks prossegue no posto de melhor tecladista do rock. Peter Gabriel, no de pior cabelo. O baixo de Rutherford, em oposição ao desespero fraseador de Chris Squire – que não é nem de longe um defeito, pelo menos no Yes – é tão seguro que permite excessos ocasionais de Phil Collins. E o que dizer deste impagável motherfucker. Sem o remelexo de Collins, o Genesis seria insuportavelmente mais chato do que conseguiu ser nos discos anteriores. E o absurdo intermezzo de “Battle of Epping Forest” não soaria como se tivesse sido gravado em 1994.

Até pouco antes de “Cinema Show” – e apesar da maçante “I Know What I Like” –, é razoável acreditar no cânone que estabelece “Selling England by the pound” como um dos melhores discos do Genesis. Depois de “Cinema Show” – e apesar da maçante “I Know What I Like” –, é difícil acreditar em outra coisa.

12 outubro 2012

HERÓIS DA INFÂNCIA


Tá tliste 
[confiram meu novo blog http://igmatheus.blogspot.com.br - política, cultura e comportamento.  Não é vírus]
Eu faço pose de sofisticado há muito tempo. Mas hoje vou exagerar. Enquanto você teve Balão Mágico, eu tive Jean Michel Jarre, Vangelis e Kitaro. Enquanto você teve Simony e Sandy e Junior, eu tive Claudio Abbado regendo a Sinfonia no. 40 de Mozart e as danças húngaras de Brahms. Enquanto você teve José Augusto cantando 'Agora Aguenta Coração', eu tive Peter Cetera e temas famosos de westerns e clássicos da MGM. Enquanto você teve Kiko Zambianchi arruinando Hey Jude e Leandro e Leonardo, eu tive Benito di Paula, Paulo Diniz e o grupo Polegar. Peraí. Benito di Paula, Paulo Diniz e o grupo Polegar não são tão dignos de orgulho assim. Não deveria nem ter mencionado isso. Mas o pior é ter gostado de Spice Girls. Aos 14 anos, tinha até uma queda razoavelmente séria por Victoria, futura ms. Beckham, e pela harmonização vocal de ‘Say You’ll Be There’.

Pouco tempo depois, me emprestariam uma fita de Scorpions, outra de Led Zeppelin e o “Wish You Were Here” do Pink Floyd. Minha vida anterior se transformou em um oceano de cinzas – até eu fazer as pazes com Jean Michel Jarre e Claudio Abbado. Mas isso não apaga Spice Girls e Polegar do meu currículo. Minha infância foi ridícula.

Mas admita. A sua foi muito pior.

Jean Michel Jarre – Rendez Vous III

O sujeito fazer toda essa pantomima sobre um monte de luzes era algo absolutamente normal nos anos 80. O que não era normal era o som ser, de quebra, uma peça com esse nível. Foi uma das coisas mais decisivas pra formar minha vontade de tocar teclado.



Bônus: Jean Michel Jarre – Ron’s Piece

Na verdade, quando criança, era viciado no Live in Houston/Lyon, mas odiava isso aqui. Quando voltei a escutar já adulto, odiei ser criança. É inacreditável. 



Paulo Diniz

Paulo Diniz me aterrorizou a infância inteira. Porque, segundo minha mãe, essa voz rouca era resultado de horas intermináveis de choro e enchimento de saco. Como eu fazia. 



Roupa Nova – Coração Pirata

Provavelmente a primeira letra que aprendi, já que, até ali, só me interessava por instrumental. Passava na televisão com mais frequência do que as chamadas de Tieta. Até hoje gosto disso. Graxeiras e estudantes de supletivo, uni-vos. 



Jules Massenet – Meditation from Thais

Meu namoro com o erudito começou aqui. Eu tinha 5 anos. Não me lembro se ‘Meditation’ era uma daquelas peças de novela ou não. Sei que fazia parte de um disco da Sony chamado ‘Classics’, muito popular na época. Eu merecia um prêmio da Sony pela dedicação dava a esse bolachão. 



Mozart – Kyrie Eleison

Escutei isso tantas vezes que seria capaz de compor uma fuga quando quisessem. A linha dos tenores me deixava maluco. A dos baixos, insano. Abriu meu ouvido pra sempre. 


Spice Girls – Say you'll be there

Puta merda, esse tem que ficar no fim. Preciso manter minha reputação com os headbangers do Whiplash. Inclusive entre os que escutam isso até hoje de madrugada, escondidinhos, e usando uma luvinha preta.

Se eles encontrarem esse vídeo e acharem muito ‘girly’, talvez prefiram essa versão aqui:



15 agosto 2012

JOINHA DE MÚSICA / BOSTINHA DE CLIPE II





I HEAR YOU NOW (JON AND VANGELIS)

Qual é a da música:
Uma boa peça da dobradinha Jon Anderson e Vangelis, encontro ocasionado pelo cansaço que Jon Anderson estava sentindo de não estar no Yes e do cansaço que Vangelis estava sentindo de ser chato.

Qual é a do clipe: 
Pouco depois do lançamento dessa canção, Vangelis ganharia um Oscar. É crucial que se saiba que não foi nem em roteiro nem em direção artística.

Observações:

1)    Legal a dancinha... (“rsrsrsrsrsrsrsrsrsrsrs”)

2)    Jon e seu escapulário de Itu atochadinho na garganta. Não dá pra acreditar que isso era levado a sério. Mesmo em 1981. 

3)    Esse palhaço no meio sou eu dando ibope pro clipe. O da direita é você dando ibope pra mim. O da esquerda é o cara que me lê escondido sem saber que isso também dá ibope pra mim. 

4)    Olha lá o minimoog no céu de Santo Amaro. O que quer dizer apenas uma coisa: Vangelis, o machão comedor de gregas, se recusou a dividir a tela com um bailarino de Hair e uma gargantilha gigante. Preferiu repassar a bronca para o seu pobre teclado.  

5)    Legal a dancinha... (“rsrsrsrsrsrsrsrsrsrsrsrsrsrs")