27 abril 2008

Beleza interior

A obra

‘Sangue D’alma’, do Cataluzes. Gravada no Rio em 2001, obra foi produzida por Ruy Quaresma. O chorista Paulo Moura fez participação especial.

A crítica

Nota: 8,07

Nas prateleiras de CD dos supermercados ou em qualquer outro lugar onde a identidade visual de um disco pese mais, ‘Sangue D’alma’ amargaria o frio da proscrição. A horrenda capa, um jogo tosco de texturas que desperta a impressão de digitalização visual forçada, é um carimbo de precariedade na obra. Mas talvez esse tenha sido o único elemento que escapou completamente ao controle do Cataluzes. Porque o conteúdo não possui, em absoluto, o mesmo tipo sanguíneo da dismorfa tentativa de figura que ilustra o trabalho. Lá dentro, ouvem-se exercícios consistentes de versatilidade, cuidado e propriedade no trato dos diversos estilos. O que significa que há muito mais colorido no repertório de ‘Sangue D’alma’ do que na folha designada a ser seu rosto e não há nenhuma conexão reconhecível quando ambas são emparelhadas.

No lado de dentro, a pluralidade faz com que Cláudio Miguel, Valdefrê, Tonho Amaral pareçam pouco interessados em estabelecer alguma unidade. Mas a fuga da centralidade se constitui no próprio estilo do Cataluzes: defini-los precisamente é tarefa ingrata. E se há um fio condutor em ‘Sangue D’alma’, ele é constituído pela voz-ícone de Claúdio Miguel, pelos arranjos precisos e por uma rusticidade que transita entre o brejeiro e o intelectual sem retalhos esquizofrênicos.

Mas há declínios. E eles estão na apatia e na artificialidade de algumas faixas, espasmos isolados de pouca inspiração e pressa. Não é tanto o caso da faixa de abertura, ‘Relógio Solar’. Mesmo previsível e sem impacto, a canção funciona na introdução. Pelo menos a dívida é sanada logo, pois a faixa seguinte, ‘Rosa Camponesa’, é de singeleza cativante. As harmonias abertas e os baixos invertidos remetem ao folclore mineiro – ainda que com menos complexidade que as releituras clubesquinenses.

A faixa-título, por sua vez, é um desdobramento sombrio da sua antecedente mais primaveril. ‘Sangue D’alma’, séria e escura, é tão bem lapidada que exala a beleza barroca. E é canção que facilmente figuraria na nata do repertório de grandes intérpretes femininas, pois pede leituras de timbres mais maternais – ainda que Cláudio Miguel, correto e seguro, não a tenha comprometido em nenhum aspecto.

Já em ‘Donde Estarás’ não há muita coisa levada a sério. Trata-se de salsa despretensiosa, simpática e introduzida por uma frase em espanhol que logo se verá ser a única de toda a letra – o que significa que não há preocupação alguma em fidelidade ou releitura, mas apenas na construção de um aroma superficial de tropicalidade. ‘Copo de blues’, entretanto, não é tão feliz, embora esteja longe de ser medíocre. O problema é apenas a letra, que transmite a impressão de ter sido concebida por um leigo pretensioso – ‘hoje vou tocar um blues / cheio de acordes-cruz’ – ainda que haja muito mais jazz do que qualquer outra coisa lá. É aquilo: ninguém esquece sua primeira vez. Mas o público não merece receber um VHS com o registro da ocasião.

‘Noz-moscada’ já é um exercício interessante de referências, mas dificilmente será mais do que isso. Samba de velha guarda, a faixa traz toda a irreverência revisionista dos Novos Baianos. É curiosa e brincalhona. Ao mesmo tempo, porém, é nada ousada, e por não somar muito ao que já foi feito, esquecível. Sua vizinha ‘Cana Caiana’, um choro, também é reverencial. Mas é bela o suficiente para se situar lado a lado com alguns clássicos do gênero. E os arranjos, cirurgicamente precisos, transmitem a qualquer um o bucolismo de um fim de tarde com rádio AM ao fundo.

Mas tudo isso não passa de preâmbulo para ‘Navio da Meia-noite’, a mais bela faixa do disco. A levada cheia de africanidade pontilha uma harmonia direta, mas sublinhada por uma melodia que resvala na genialidade. E a mistura dos fraseados de viola com batidas de terreiro não se comporta de forma forçosamente brejeira. ‘Como antigamente’, por sua vez, não chega tão longe, sobrevivendo apenas como um iê-iê-iê simpático, mas previsível.

O perfeccionismo que permeia grande parte das faixas faz falta em ‘Estrada do Passado’. Aqui, o público é agraciado com um nada sutil escorregão do tecladista – ou seria uma nota de inovadora sonoridade executada apenas uma vez na música inteira – logo no início. E Cláudio Miguel simplesmente canta como se tivesse sido levado à força para as gravações. Pena, pois a faixa não é desnecessária e tem lá alguns bons atributos.

Mas a recuperação é imediata. Primeiro com o elegante e genuíno fado ‘Porto de Veias’. Depois ‘Curral das Sombras’, flamenco para procissão – isso mesmo – que, ainda que não seja marcante, não atrapalha. E, por fim, a explicitamente africana ‘Bambaquerê’, um simples e festivo encerramento.

A morte visual de uma obra dessa categoria – vide capa – atesta a absoluta surdez de quem quer que a tenha representado num painel. Mas que o frenesi varejista dos mercadinhos não faça ninguém relegar ‘Sangue D’alma’ ao fundo de qualquer prateleira. Mesmo sem proporcionar experiência soberba, o Cataluzes oferece originalidade e bucolismo – atributos raros – em doses generosas. E se soma à minúscula galeria dos que merecem ser ouvidos mais de uma vez.

15 abril 2008

Perdido na criação


A obra


‘Som das Araras’, de Mingo Santana. Gravado em 98, o disco é composto por canções do próprio Santana em parceria com Tom Robson, Irmão Z e Clóvis Melo. Beto di Franco, Muskito e Jéssica Lieko fizeram participações especiais.


A Crítica


Nota: 5,61

“Aqueles que se perderam na crítica que se encontrem na criação”. É com essa frase que Mingo Santana encerra o expediente e os agradecimentos no encarte de seu ‘Som das Araras’. Mas o tapa que deveria acertar detratores específicos de sua obra acaba acertando em cheio o rosto do público em geral. Assumindo uma incompreensível postura defensiva para quem se mete a publicizar algo, Santana não quer saber de gente ‘perdida’ discutindo o que ele fez, e se estabelece como um ser acima da opinião pública, intocável sobre o degrau dos criadores. Assim o recado, ao invés de ser uma piscadela cínica para os críticos, não é mais do que um escudo de desprezo a qualquer reação ao disco. Excelente, uma vez que, com tais cartas na mesa, acreditaremos estar diante de mais um rebento de um compositor genial, capaz de ter que afastar a todos para que a luz de sua sabedoria não cegue ninguém. Mas depois de escutar ‘Som das Araras’, não é necessariamente a visão que pede arrego.

É com pesar e decepção que se constata que a obra não é, de forma alguma, rebento de um compositor genial. Ocupado demais em se situar acima da apreciação minuciosa e da discussão, Mingo Santana deixou a tarefa de ser audível em segundo plano e, mesmo cercado por uma excelente banda, pôs na praça um disco constrangedor. Muito longe do que planejara o autor, o atributo mais relevante da obra parece ser justamente o de fazer coçar o lado reativo – e negro – de qualquer um que se dê ao trabalho de realmente escutá-lo.

Se não fosse pela frase-bofetada aplicada no fim do encarte, seria possível interpretar que Santana, arrependido, preocupou-se com a saúde de sua audiência ao denominar a primeira faixa de ‘Salve-se’. Mas a própria canção-aviso é, em si, um crime. Mesmo acompanhado por músicos experimentados e arranjos sólidos, Santana zumbe frases sem tonalidade definida, canta com preguiça, desaparece ocasionalmente em meio à massa sonora e revela uma incômoda incapacidade para a criação melódica. O refrão ‘salve-se quem puder’, por exemplo, passa a impressão de ter sido feito às pressas, no banheiro do estúdio.

A faixa seguinte, ‘Ultrapasse’, é uma verdadeira aula do que não se deve fazer com as sílabas de uma frase para musicá-la. Algumas palavras, declamadas com pressa histérica, são forçosamente achatadas para sublinhar a linha ‘melódica’ de um monótono reggae oitentista. Os anos 80, aliás, são a principal referência dos arranjos deste ‘Som das Araras’. Ótimo, mas é de se perguntar em que estavam pensando Santana e sua Arara´s Band – apenas desta vez protagonista de um equívoco – na faixa ‘Revel’. Composta por timbres que remetem tanto a comerciais de boutique quanto a anúncios de hora certa em rádio FM, a canção parece citar em sua levada inicial o tema da descida da nave no ‘Xou da Xuxa’. Além, é claro, de se constituir por extensão em uma não-planejada homenagem a medalhões oitentistas da ordem de Bozo ou Sérgio Mallandro.

Depois dessa apoteose infantil, Santana se empenha em compensar com agressividade. Porém, não vai muito longe com isso, e corresponde exatamente a toda desconfiança que se pode gerar diante de um hard rock batizado como ‘A Bossa Nova é Nossa’. É a partir dessa faixa, antipática e algo imatura, que se constata que o autor, apesar da versatilidade de seu repertório, parece sempre estar cantando a mesma música. Não há variações, não há opções relevantes de fraseado, não há sequer interpretação. E nessa faixa em particular o guitarrista, talvez cansado de contribuir com algo que dificilmente daria certo, permite a descensão do caboclo de um Van Halen e senta a mão nos solos. Mas é muito difícil algum instrumentista não aparecer diante da nulidade do cantor.

Lamentável, uma vez que ‘Som das Araras’ e ‘Cidade Adormecida’, se bem interpretadas, poderiam resultar até mesmo na salvação do disco inteiro. Ambas têm força, acordes melífluos e arranjos equilibrados. São composições firmes. Só que Santana insiste em alcançar o mérito não de tê-las feito, mas de tê-las estragado: em ‘Cidade-adormecida’, temos desafinação e falta de carisma; na faixa-título, temos desafinação, falta de carisma e uma irritante mania – recorrente em todo o disco – de somar ‘rás’, ‘rés’ e ‘ris’ ao fim de fraseados com vogais.

Por essa série de equívocos, aturar ‘Som das Araras’, 15 faixas adentro, parece façanha interminável. Por mais que se busque algo, o que se encontra é a monotonia da pretensiosa ‘À margem da História’; a ‘interpretação’ bisonha da muito bem arranjada ‘Japa’; a nada convidativa ‘Ponta dos Mangues’, prima feia da faixa-título. Sem falar no frio assassinato dos excelentes arranjos de ‘Visagem’ – que lembra em certas passagens os anos 80 de um João Bosco –, ‘Pra Dar’, ‘Nu Amor’ e ‘Comodista’, pela performance de calouro nervoso e inseguro do cantor.

O único mérito de Mingo Santana é o de ter reunido ao seu redor músicos dispostos a extrair o máximo de suas harmonicamente interessantes composições. Fora esse único fator, ‘Som Das Araras’ não é mais do que um atestado da incapacidade de seu autor de levar a público suas próprias criações. No mundo de Santana, crítica e criação se anulam e não podem conviver. Se isso pegar no mundo real, aí sim, salve-se quem puder.

08 abril 2008

Jiló Verde


A obra:

“Mangaba Madura”, de Nino Karva. O disco contou com a participação de Marcus Vinícius nas guitarras, Beto Menezes nos teclados e Tom Toy na percussão. Todas as faixas são de autoria do cantor.

A Crítica

Nota: 4,93

A capa do disco Mangaba Madura é, obviamente, repleta de convidativas e suculentas mangabas em close. E a foto, que retrata as frutas em tamanho em natural, é viva e convincente. Mas na parte interna do encarte há quatro cestos de feira vazios dispostos como marca d’água. Por cima deles, colunas e mais colunas de letras de música. Sem querer, Nino Karva ou quem quer que tenha pensado a diagramação do livreto deu a deixa para o real significado de toda a obra: embuste, uma vez que, quanto mais se procura algo de suculento, mais a mão segue tateando um cesto vazio. Quatro, especificamente.

É verdade que “Mangaba Madura” está muito longe de ser cesto com um fruto só, devendo-se isso à variedade de ritmos, arranjos e propostas espalhadas pelas faixas. Mas o que deveria ser uma saudável salada não passa de uma mistura algo azeda com nacos de legumes boiando ocasionalmente. O fato de ser a obra uma coletânea dos último quinze anos de produção de Karva não justifica a falta de direcionamento do disco, todo ele gravado na mesma época e com as mesmas pessoas. Mas isso não é o mais desanimador. Pior é pressupor que coletâneas, geralmente, reúnem a nata da obra de um artista. Se ‘Mangaba’ for realmente isso, talvez sejam necessários mais quinze anos para que a tarefa de ouvir Nino Karva fique, digamos, mais doce.

“Quebra e viagem”, a faixa de abertura, honra parte do nome e se constitui, realmente, em uma ruptura: de clima, de expectativa, de recepção. É muito difícil passar mais de dez segundos do início da canção sem que se volte para a capa rústica do disco e se pergunte: “coloquei mesmo o disco certo?”. Lançando um blues arrastado, sem carisma e com a inconfundível (dis)ritmia de uma letra mal musicada, Karva proporciona uma entrada não mais do que broxante. Para que não se diga que tudo está completamente perdido, volta e meia surgem competentes arranjos de metais.

É apenas na segunda faixa, “Noite Feliz”, que se sente o que deveria ter sido oferecido na primeira. Escrachada e múltipla, mas com os arranjos em seu devido lugar, a canção dois, essa sim, seria mais apropriada para abrir o disco. A faixa seguinte, “De repente um Blues”, não é muito mais do que o título engraçadinho. Além de inevitavelmente remeter qualquer um a “O autor da natureza” de Zé Vicente da Paraíba – até porque não há muita variedade entre melodias de repente mesmo -, a faixa vem com a bibliografia de Karva em anexo, ou uma saraivada de nomes de autores citados a esmo para preencher buracos- recurso muito usado entre os compositores daqui, embora não tenha surgido, entre eles, nenhum que fizesse isso funcionar.

É infame estabelecer que o disco não passa apenas de um cesto vazio. Há duas ou três mangabinhas lá, representando lampejos apenas simpáticos, nunca valorosos ou dignos de maior lembrança. “Processéia dadística”, apesar da letra pretensamente concretóide e da estranhíssima gravação de garagem, é um rock funcional. “Ribeira”, que deu a Karva o Sescanção de 2001, é composição específica para o clima dos festivais. Em um disco, não é mais do que uma embolada forçosamente politizada – com direito a pregação do Anarquismo - , mas ainda sim relativamente carismática. Finalmente, há a faixa-título, uma brincadeira caribenha que demonstra todo o conforto com que Karva mete o pé no brega quando quer, e com gosto. Só não se sabe se, algum dia, ele saberá o caminho de volta.

Mas é difícil acreditar em redenção para alguém que comete uma “Tragédia de um plebeu”. Seria muito mais tranqüilizador para todos se o compositor estivesse apenas tirando um sarro de si mesmo, uma vez que os arranjos de videokê, o vocal de ressaca e a letra terrivelmente estudantil compõem exatamente a fórmula usada por sujeitos assumidamente engraçadinhos como Rogério Skylab e Zéu Britto. Mas a qualidade de todo o disco denuncia que não, não há piada nenhuma ali. Pelo menos não proposital: de imaturidade escandalosa, a faixa faz jus ao nome e elimina de uma vez por todas qualquer possibilidade de se levar a sério as faixas seguintes.

Pena, pois “Caiçá”, aboio bruto e autêntico, não parecia má idéia. Entretanto, a inserção de uma única estrofe sobre internet decretou a morte da canção: sem o manejo dos cordelistas para tratar dos badulaques da modernidade no meio das casas de taipa, Karva apenas posa de universitário tentando fazer verso.

Não satisfeito com os malabarismos estilísticos que cometeu no disco, o autor decidiu ainda cravar um manifesto no fim do encarte, onde protesta por coisas como “autoconsumo da produção cultural sergipana”, dentre uma série de reivindicações estudantis. Mas será muito mais útil para o compositor fazer a feira direito: Karva mostra mangaba, vende salada, mas o que entrega é uma sopa com gosto de jiló verde.