MINHA TERRA É DE NINGUÉM
A obra:
‘Minha terra é Sergipe’, de Antônio Carlos Du Aracaju, sem data de gravação registrada. No baixo, contribuíram Toninho e Mongol. Na bateria, Neném e Pedrinho do Recife. No acordeão, Miguel e Pinto do Acordeon.
A crítica:
Nota: 4,03
A estranhíssima heterogeneidade de estilos, o número astronômico de faixas – 17 – e o título apenas genérico seriam mais do que suficientes para estabelecer este trabalho como uma coletânea. Nesse caso, Antônio Carlos Du Aracaju não seria réu, mas vítima: coleções invariavelmente não fazem mais do que trucidar a unidade estética de um autor para empilhar hits acéfalos e peças de presença apenas numérica. Mas o nome do culpado figura já na capa. O que significa que, para desespero de todos, ‘Minha terra é Sergipe’ não é compilação de coisa alguma. E que se leve realmente a sério esse ‘coisa alguma’: a obra não tem pé, nem cabeça, nem vértebras. É um corpo com os órgãos internos remexidos após uma má-sucedida autópsia.
É assim que se tem gospel seguido de frevo elétrico, seguido de temas bufos de circo, seguido de MPB de caminhoneiros, seguido do predominante forró. Não é possível identificar na bagunça do compositor pretensão que vá além de uma trilha sonora para feiras e quermesses. Só que ninguém presta atenção em trilhas de feiras e quermesses. Ninguém sai de casa interessado em ouvir trilhas de feiras e quermesses. Ninguém volta pra casa cantarolando trilhas de feiras e quermesses. Quando se conclui isso, fica mais fácil arrematar o papel de uma obra como essa em sua totalidade: ser imediatamente esquecida.
A constatação acima é mais grave do que se pensa. Isso porque seria menos catastrófico se Antônio Carlos Du Aracaju houvesse concentrado sua anemia criativa em um único estilo e lançado às praças uma obra ao menos coerentemente ruim. Muito longe disso, porém, ‘Minha Terra é Sergipe’ é um exercício não-planejado de indecisão e caos. É um amontoado de qualquer coisa. O que já fornece a deixa para a contradição-mor que emperra qualquer esforço de considerá-lo inventivo: mesmo propondo variedade e sinalizando irrestrição estilística, o disco consegue a proeza de ser apático.
Mas apesar da pressa e gula intrínsecas à quantidade histérica de peças, ‘Minha Terra é Sergipe’ não foi feita para apreciadores afobados. Se fosse, as três primeiras faixas da obra logo a situariam como mais um ensaio da hoje apenas cômica MPB de beira de estrada. Isso porque o empenho do compositor em seguir os rastros de Antônio Marcos, Fernando Mendes ou Paulo Sérgio é assustador. ‘Mãe, por favor, abra a porta’ é arrastada, chorosa e repleta de declamações expiatórias de boteco, exatamente como rezam os ditames de qualquer tenor de lanchonete desejoso por marcas de batom no colarinho.
Já ‘Arca de Noé’ é tão clichê em sua construção harmônico-melódica que pode ter seu fim previsto em três segundos de execução. Mas a letra, em particular, é digna de nota. Versos como “lá vêm Gorbachev martelos propagandear”, “no olhar um incerto amanhã, o inferno e o Armageddon” apontam muito menos para as aflições políticas do autor do que para sua edificante atitude de musicar panfletos sobre a inevitável aproximação de Marte ou o fim próximo do Sol.
Não saciado em flagelar o bom senso alheio, Antônio Carlos decide maltratar Luiz Gonzaga. Para conseguir isso, reveste ‘Acácia Amarela’ de arranjos superficiais e pretensamente sinfônicos, não conseguindo mais do que diluí-la em lamento barato. Para alívio de muitos, é aqui onde se encerra o flerte do cantor com os caminhoneiros e espeluncas de rodovia.
Mas em vez de tirar o pé do buraco e passar a caminhar em solo seguro, o autor desce um barranco. Dentre inúmeras outras alternativas dentro do próprio disco, é justamente a doentia ‘Meu Papagaio’ a escolhida para introduzir a fase pós-Moacyr Franco da obra. Pelo menos quem não aceitar o desafio de agüentá-la até o fim se deparará mais rápido com a faixa seguinte, a inspirada ‘Dá-lhe Forrozeiro’. Inquieta e maliciosa, a canção segue os trilhos de alguns dos forrós melodicamente bem resolvidos de um Nando Cordel ou Jorge de Altinho.
E há mais alguns acertos. ‘Forró de Arrepiar’, mesmo algo precária, é rica. Já ‘Luiz Gonzaga não morreu’ é, de fato, uma compensação à ofensa anterior ao velho Lula. Não fosse a letra forçosamente trabalhista, seria candidata a clássico, título já usufruído pela obscura ‘Areia Branca é mais forró’, hino do morto e sepultado São João areia-branquense. Os acordes menores e as preparações tensas da canção chegam a resvalar na melancolia. E é justamente isso o que a torna interessante.
Mas o que sobra fora essas centelhas de bom gosto é, definitivamente, breu. É bem verdade que poderia ter sido pior: a quantidade de faixas dispensáveis da obra é suficiente para preencher mais dois trabalhos, o que significaria mais sofrimento. Mesmo assim, é muito difícil perdoar a presença da estridente ‘Cara e Coroa’, abertura para circos de lona furada; da sonolenta ‘Pai Nosso do Vaqueiro’, mais uma péssima tentativa de esconder a nulidade atrás de uma oração; da esquizofrênica ‘Lavou tá boa’, canção de letra misógina que insiste em cruzar Kraftwerk com Genival Lacerda. Sem falar na dezena de xotes e cavalgadas genéricas que qualquer um já ouviu sem oferecer grande atenção, preferencialmente por estar com o nariz empenhado em algum cangote.
A insistência de Antônio Carlos Du Aracaju em fazer conviver propostas tão díspares também pende à obediência de um princípio há muito risível: o de agradar a todos. Mas o autor esqueceu que agir desse jeito é apostar. Assim como é possível agradar a israelenses e palestinos e ainda arrebanhar um terceiro nicho de admiradores, é possível irritá-los na mesma proporção e ganhar de brinde o nojo de terceiros. No caso desse ‘Minha Terra é Sergipe’, Antônio Carlos Du Aracaju apostou pra quebrar a banca e perdeu. Agora, nem a mãe quer abrir a porta.
‘Minha terra é Sergipe’, de Antônio Carlos Du Aracaju, sem data de gravação registrada. No baixo, contribuíram Toninho e Mongol. Na bateria, Neném e Pedrinho do Recife. No acordeão, Miguel e Pinto do Acordeon.
A crítica:
Nota: 4,03
A estranhíssima heterogeneidade de estilos, o número astronômico de faixas – 17 – e o título apenas genérico seriam mais do que suficientes para estabelecer este trabalho como uma coletânea. Nesse caso, Antônio Carlos Du Aracaju não seria réu, mas vítima: coleções invariavelmente não fazem mais do que trucidar a unidade estética de um autor para empilhar hits acéfalos e peças de presença apenas numérica. Mas o nome do culpado figura já na capa. O que significa que, para desespero de todos, ‘Minha terra é Sergipe’ não é compilação de coisa alguma. E que se leve realmente a sério esse ‘coisa alguma’: a obra não tem pé, nem cabeça, nem vértebras. É um corpo com os órgãos internos remexidos após uma má-sucedida autópsia.
É assim que se tem gospel seguido de frevo elétrico, seguido de temas bufos de circo, seguido de MPB de caminhoneiros, seguido do predominante forró. Não é possível identificar na bagunça do compositor pretensão que vá além de uma trilha sonora para feiras e quermesses. Só que ninguém presta atenção em trilhas de feiras e quermesses. Ninguém sai de casa interessado em ouvir trilhas de feiras e quermesses. Ninguém volta pra casa cantarolando trilhas de feiras e quermesses. Quando se conclui isso, fica mais fácil arrematar o papel de uma obra como essa em sua totalidade: ser imediatamente esquecida.
A constatação acima é mais grave do que se pensa. Isso porque seria menos catastrófico se Antônio Carlos Du Aracaju houvesse concentrado sua anemia criativa em um único estilo e lançado às praças uma obra ao menos coerentemente ruim. Muito longe disso, porém, ‘Minha Terra é Sergipe’ é um exercício não-planejado de indecisão e caos. É um amontoado de qualquer coisa. O que já fornece a deixa para a contradição-mor que emperra qualquer esforço de considerá-lo inventivo: mesmo propondo variedade e sinalizando irrestrição estilística, o disco consegue a proeza de ser apático.
Mas apesar da pressa e gula intrínsecas à quantidade histérica de peças, ‘Minha Terra é Sergipe’ não foi feita para apreciadores afobados. Se fosse, as três primeiras faixas da obra logo a situariam como mais um ensaio da hoje apenas cômica MPB de beira de estrada. Isso porque o empenho do compositor em seguir os rastros de Antônio Marcos, Fernando Mendes ou Paulo Sérgio é assustador. ‘Mãe, por favor, abra a porta’ é arrastada, chorosa e repleta de declamações expiatórias de boteco, exatamente como rezam os ditames de qualquer tenor de lanchonete desejoso por marcas de batom no colarinho.
Já ‘Arca de Noé’ é tão clichê em sua construção harmônico-melódica que pode ter seu fim previsto em três segundos de execução. Mas a letra, em particular, é digna de nota. Versos como “lá vêm Gorbachev martelos propagandear”, “no olhar um incerto amanhã, o inferno e o Armageddon” apontam muito menos para as aflições políticas do autor do que para sua edificante atitude de musicar panfletos sobre a inevitável aproximação de Marte ou o fim próximo do Sol.
Não saciado em flagelar o bom senso alheio, Antônio Carlos decide maltratar Luiz Gonzaga. Para conseguir isso, reveste ‘Acácia Amarela’ de arranjos superficiais e pretensamente sinfônicos, não conseguindo mais do que diluí-la em lamento barato. Para alívio de muitos, é aqui onde se encerra o flerte do cantor com os caminhoneiros e espeluncas de rodovia.
Mas em vez de tirar o pé do buraco e passar a caminhar em solo seguro, o autor desce um barranco. Dentre inúmeras outras alternativas dentro do próprio disco, é justamente a doentia ‘Meu Papagaio’ a escolhida para introduzir a fase pós-Moacyr Franco da obra. Pelo menos quem não aceitar o desafio de agüentá-la até o fim se deparará mais rápido com a faixa seguinte, a inspirada ‘Dá-lhe Forrozeiro’. Inquieta e maliciosa, a canção segue os trilhos de alguns dos forrós melodicamente bem resolvidos de um Nando Cordel ou Jorge de Altinho.
E há mais alguns acertos. ‘Forró de Arrepiar’, mesmo algo precária, é rica. Já ‘Luiz Gonzaga não morreu’ é, de fato, uma compensação à ofensa anterior ao velho Lula. Não fosse a letra forçosamente trabalhista, seria candidata a clássico, título já usufruído pela obscura ‘Areia Branca é mais forró’, hino do morto e sepultado São João areia-branquense. Os acordes menores e as preparações tensas da canção chegam a resvalar na melancolia. E é justamente isso o que a torna interessante.
Mas o que sobra fora essas centelhas de bom gosto é, definitivamente, breu. É bem verdade que poderia ter sido pior: a quantidade de faixas dispensáveis da obra é suficiente para preencher mais dois trabalhos, o que significaria mais sofrimento. Mesmo assim, é muito difícil perdoar a presença da estridente ‘Cara e Coroa’, abertura para circos de lona furada; da sonolenta ‘Pai Nosso do Vaqueiro’, mais uma péssima tentativa de esconder a nulidade atrás de uma oração; da esquizofrênica ‘Lavou tá boa’, canção de letra misógina que insiste em cruzar Kraftwerk com Genival Lacerda. Sem falar na dezena de xotes e cavalgadas genéricas que qualquer um já ouviu sem oferecer grande atenção, preferencialmente por estar com o nariz empenhado em algum cangote.
A insistência de Antônio Carlos Du Aracaju em fazer conviver propostas tão díspares também pende à obediência de um princípio há muito risível: o de agradar a todos. Mas o autor esqueceu que agir desse jeito é apostar. Assim como é possível agradar a israelenses e palestinos e ainda arrebanhar um terceiro nicho de admiradores, é possível irritá-los na mesma proporção e ganhar de brinde o nojo de terceiros. No caso desse ‘Minha Terra é Sergipe’, Antônio Carlos Du Aracaju apostou pra quebrar a banca e perdeu. Agora, nem a mãe quer abrir a porta.