20 janeiro 2009

Os Mané-stréis


A obra: ‘Segundo Ato’, da banda O Teatro Mágico, gravado em 2008. Silvério Pessoa e Zeca Baleiro fizeram participações especiais.

A crítica:

Indicado para: quem queria ver o Bozo cantando Engenheiros do Hawaii em algum sinal de trânsito

Nota: 5,61

Ai, que lindo. Que poético. Que romântico. Que fofo. Que sensível. Que mágico. Vamos dar quatro gritinhos. Vamos jogar rosas pro vocalista. Vamos tatuar um de seus profundíssimos versos na testa. Que lindo misturar circo, canções, teatro e tão belas e excelsas poesias. Olha lá, enquanto alguém canta, tem um andando de perna-de-pau, outro se contorcendo, outro tendo um ataque epiléptico, outro fazendo aparecer e desaparecer menininhas no camarim. Senhoras e senhores deste desrespeitável público, sejam bem-vindos a um circo onde o verdadeiro palhaço não está no picadeiro. Está na platéia.

A integração artística proposta pelo Teatro Mágico é realmente notável. Notável porque se trata de um dos maiores exercícios de afetação e mal-sucedida presunção do cancioneiro popular em muito tempo. É chato. Superficial. Pouco convincente. É algo voltado para um público que chama invencionice de originalidade, esquete de campanha contra a dengue de poesia e postura teatralesca de atitude. Mas o que é mais interessante é que esse ‘Segundo Ato’ não é um disco necessariamente ruim. É um disco jogado inteiramente no lixo pela própria banda. Isso porque é muito mais edificante apreciá-lo na ignorância completa das letras ou do que quer que venha a ser o Teatro Mágico em cima de um palco. Quando se faz isso, percebe-se que o álbum foi concebido por uma banda competente, que arranja com inspiração as canções não mais do que razoáveis do líder Fernando Anitelli.

Mas é preciso ter um arco-íris no quintal para considerar a banda sob esse prisma. No finíssimo crivo de uma audição nua, crua e consciente, ‘Segundo Ato’ é um reservatório de sub-lirismo com um irritante fedor estudantil. É disco de universitário de boutique para quem almeja ser um universitário de boutique. Ou seja: é um diálogo entre palhaços. Só que sem a graça.

PEGADOR

O exercício mais escancarado da teatralidade brocha e da poética escolar dessa obra é justamente a introdução. ‘Amadurecência’ é constituída por dois minutos de declamação de partículas sub-literárias que até arrancariam um risinho de quem tenta racionalizar o que é dito – ou seja, ‘entender’ tudo como se fosse um enredo ou um conjunto de frases de auto-ajuda. Só que toda aquela metafísica de brinquedo é um saco. É claro que um catatau chamado ‘Segundo ato’ de um trambolho denominado ‘Teatro Mágico’ jamais entraria de sola nas canções, de tão explícita que é a proposta de se emular em áudio um espetáculo circense. Mas nem a previsibilidade faz com que a primeira faixa seja espantosamente porre, artificial e teatralóide.

A seguinte ‘O Mérito e o Monstro’ está algo longe de ser uma canção com ‘C’ maiúsculo, mas tem surpreendente força. Trata-se de pop sofisticado e repleto de estruturas, com letra longuíssima e excelentes arranjos. É exatamente o que o paulista Jay Vaquer faria se não tivesse a profundidade lírica de pré-vestibulando de um Badauí. Mas é a crescente e muito bem arranjada ‘Cidadão de papelão’ que inaugura uma série de faixas que, se separadas da antipática e mal-sucedida pretensão circense do grupo e do lirismo xoxo das letras, poderiam ter sua indiscutível qualidade intrínseca potencializada. Inserida nesse grupo, ‘Pena’ traz arranjos tão bem calculados que chega a piscar o olho para o milimétrico rock progressivo americano atual – estilística que, na verdade, terminou de destruir o progressivo, ainda que com alguma classe.

‘Sina Nossa’ é que leva a sério demais esse troço de ser ‘canção pra pegar gatinha’ tão descaradamente característica das composições de Anitelli. Que ninguém repreenda o sujeito de querer se dar bem no breu dos becos com as fãs mais exaltadas – dá-lhe, tigrão. Mas a economia mundial agradeceria se o Don Juan reservasse todo o açúcar e os passarinhos pousando no seu ombro apenas para a zona de abate do camarim ou da esquina da pegação. ‘Sina Nossa’ é chatinha com força, ainda que tenha sido gravada com grande competência pelos envolvidos. Depois da partícula hindu e pró-mensagem subliminar ‘Si Atromiso’, há uma quebra algo brusca para a sofisticada ‘Criado Mudo’. É uma das faixas em que se percebe o quanto Anitelli é extraordinariamente ajudado pela banda que o acompanha. O apoio instrumental nunca se repete nas idéias, trazendo ótimas referências de arranjo mesmo para as propostas mais simples de composição. Nessa faixa em particular, há lampejos explícitos de uma Dave Matthews Band encaixados sem escândalo.

QUER TENTAR, É?

A inventividade e a expressividade harmônica não são e nunca serão atributos marcantes deste ‘Segundo ato’. Mas não é muito sensato ignorar o esforço do grupo em ‘Sonho de uma flauta’. Lá, os acordes abertos e de baixo invertido dos estribilhos amaciam a linha vocal e preparam bem o terreno para um refrão escurecido e marcante. Claro que tudo tem que esbarrar na letrinha, toda amarrada por pequenas metáforas de salão que surgem e desaparecem enganchadas umas nas outras. Já no sambinha ‘Eu não sou Chico mas quero tentar’, Anitelli parece mesmo ter se dedicado com força para justificar a primeira metade do título, tão patética e irritantemente primária que é a peça. E a jocosidade que deveria estar por trás do carioquês no fim de cada frase nunca acontece. No trecho final, um personagem bêbado assume os vocais e termina de avacalhar tudo com o que se pode identificar como uma ode a Benito de Paula. E terminou por funcionar mais como homenagem do que a tentativa anterior.

É a partir daqui que ‘Segundo Ato’ passa a fazer por onde ser sumariamente desligado. As canções não se contentam em ter excessos, mas se convertem, elas mesmas, em excessos do repertório. ‘Abaçaiado’, por exemplo, não consegue ser salva nem mesmo por Silvério Pessoa. Cansativa e comum, a canção parece ter investido na percussividade nordestina só para atrair a participação. Já ‘Xanéu no. 5’ é o rompimento definitivo da banda com tudo o que foi construído com algum cuidado até aqui. Ainda que marcada por arranjos acima da média, a faixa é ferida por um monólogo poético que aparenta ter saído de algum esquete de sinal de trânsito, tamanha a afetação com que se aborda a crítica à televisão. Graças a essa faixa, Anitelli ganha o título de ‘Mané-strel do ano’, cuja premiação é uma inscrição para uma oficina de malabares no diretório estudantil da universidade mais próxima.

O quarteto final não evita em nenhum momento a morte lenta do trabalho. ‘Insetos Interiores’ ora parece uma narração do Discovery Channel, ora parece uma versão piorada da gracinha poética da faixa anterior. ‘A primeira Semana’ não tem mais do que já foi apresentado. A presença de um suspiro de peça de Chopin – pelos míseros dezessseis segundos – surge do chão sem muito critério. E a derradeira ‘...’, embora seja ainda mais Dave Matthews do que a bem-sucedida ‘Criado Mudo’, é um retrato do cansaço.

A imensa comoção em torno de uma banda dessas é um escandaloso índice de como o público juvenil anda preguiçoso, desinteressante e espantosamente impressionável. ‘Teatro Mágico’ é uma soma esquizofrênica e mal-sucedida de manifestações artísticas que não necessariamente se repelem, mas não foram casadas com a empatia que deveriam ter. As canções são uma coisa, as letras são outra, o circo é ainda outra, cada uma amarrada a um cavalo diferente para ser esquartejada e imediatamente arrancada de qualquer coerência. Ao menos no quesito teatralidade, a banda realmente se dá bem. Sob o papel de trupe, o Teatro Mágico interpreta uma estética de mentirinha, faz de conta que tem profundidade e finge que inova.

Estado de Calamidade


A obra: ‘15 anos no País do Forró’, de Rogério. Obra foi gravada em 98 e contou com Mongol no baixo, Carlinhos na bateria, César e Severo no acordeon e Tovinho na direção musical.

A crítica:

Nota: 5,74

Pergunta valendo um milhão de CDs ‘15 anos no país do Forró’, de Rogério: o que é pior? Uma diversão que não começa, uma tarefa que não termina ou uma coletânea repleta de sucessos regravados que nem começa nem termina? Periguetes e pré-adolescentes desesperados por uma gota de suor da Pitty ficarão com a primeira opção. Pluricelulares assexuados que só vêm o sol no reflexo da área de trabalho do computador talvez abracem a segunda. Mas a resposta não está nas alternativas que o Gugu leu. A solução mais sábia, na verdade, é uma outra pergunta: posso trocar de prêmio?

Sinal vermelho aqui. Antes de ser iniciada a sessão descarrego, é importante deixar metais e objetos pontiagudos ali, por favor, que o detector apitou. Porque é necessário que se diga que sim, o mundo será destruído, mas não necessariamente pelos raios imperceptíveis que possam sair de ‘15 anos no país do Forró’. Em português corrente: a obra não é uma hecatombe, um xingamento, uma coisa indizível e indigna de menção. Mas também não se trata de uma ‘apenas’ mal-sucedida coletânea de sucessos rearranjados e escolhidos a dedo pelo autor. O trabalho é, isso sim, uma ‘estranhamente’ mal-sucedida coletânea de sucessos rearranjados e escolhidos a dedo pelo autor.

O significado da ênfase é claro. Quando uma gravadora faz coletâneas, o negócio é depenar a obra do sujeito, selecionando-a por arrecadação de divisas. Não há nada demais na temática veladamente pecuniária – isso para o autor que de fato tem o que mostrar. Mas regravar sucessos dá trabalho. E para se ter trabalho com algo, é preciso ter, antes de mais nada, certeza. E é particularmente intrigante a certeza de Rogério acerca da representatividade das canções escolhidas para celebrar seus 15 anos de trajetória. Fora duas ou três escalações racionalmente incontestáveis, o disco soa como um imenso banco de faixas-reserva ou contundidas ou que passaram pela peneira apenas porque o pai é o dono do time. Em suma: ainda que profissional, ‘15 anos no País do Forró’ é monótono, linear, insípido e não presta o devido serviço, enquanto repertório, ao peso estético de um sujeito que se arriscou sem hesitar a misturar o forró com a tecnocracia oitentista.

Não é necessário reproduzir a obra de trás pra frente para identificar seu real e implícito significado. Ela está em cada poro da estranha ‘Dança no interior’, a faixa de abertura. É aqui que se encontra a maior concentração por metro quadrado de um elemento que assoma absoluto na impressão final acerca do trabalho: repetição. Dura melodicamente, a faixa não passa de um monólito com pouco mais de três minutos sem que haja uma única estrutura de maior destaque. Não que seja obrigatório a ninguém enfiar um refrão em tudo. Mas é muito pálida a idéia de transitar de uma estrutura a outra com uma microscópica variação frasística lá na cauda da linha vocal. Se fossem suprimidas umas duas notas, ‘Dança no interior’ passaria de forró sonolento a um dos raps mais bem arranjados da História. E não, isso não seria uma promoção.

Em seguida, com ‘Romeiro do som’, Rogério mostra o que sabe fazer. O teclado sinfônico e escandaloso no início assusta e poderá causar reações desesperadoras para os mais exaltados fiéis do forró tradicional. Mas logo se verá que a discrepância entre o instrumento e a estilística é logo resolvida pela bem construída linha vocal, fazendo com que o que antes era barulho passe a ser, digamos, uma ornamentação apoteótica. A excelência das construções e a própria letra, que versa sobre o primeiro contato do autor com seus ídolos, simplesmente fazem com que a faixa, ao invés do experimento de entorpecimento pelo sono de ‘Dança no interior’, seja a mais adequada para abrir o trabalho.

Dói no corpo a obviedade da presença de ‘País do forró’ na obra, mesmo em pout-pourri, mas fazer o quê. A peça é a ‘Garota de Ipanema’ de Rogério, sua ‘Emoções’, sua ‘Ruas de Ará’, sua ‘Pretty Woman’. E ao contrário de muitos autores que preferem exorcizar sucessos insuportavelmente requisitados e tocar pra frente, Rogério os tatua na testa, costura-os pelo corpo, bate no peito e diz que é dele, e daí. Isso é bom, é ruim? Nenhum dos dois: é oportuno. Por ‘País do forró’, canção cuja segunda estrutura é um remendo luis-caldiano feito para encher salame, Rogério não ganhará nenhum Nobel pela contribuição ao cancioneiro ocidental – pelo menos em vida. Mas com certeza alimentará muita gente ainda só por ter sido pai do hino absoluto dos festejos juninos – ou melhor, da propaganda dos festejos juninos – desses rincões.

Com a apenas genérica ‘O fole roncou’, começa a cansar a recorrência de Rogério ao forró como solução para tudo. A batida sempre é a mesma, os arranjos, ainda que equilibrados, são copiosamente iguais, a tessitura do cantor não se altera mais que milímetros. É um desafio prosseguir interessado após esse desfile industrial de mesmice. ‘Profissão sonhar’, por sua vez, poderia ser uma corda jogada ao poço se a expressividade de sua primeira metade fosse multiplicada. Essa matemática, porém, passou batida pelo compositor, que mostra ser capaz de iniciar as canções que quiser, mas incapaz de concluí-las com o mesmo esmero.

Todavia, há uma ou outra pecinha que contribui para tornar suportável a baixíssima versatilidade do repertório. ‘Embolada’, convidativa desde o início, é rica e inventiva o suficiente para ter qualquer letra. Se Rogério escolheu um eu-lírico de ‘cabra-da-peste’ para discorrer sobre coragem, como o fez, pouco importa: enquanto nada atrapalhar a expressividade harmônico-melódica da canção, as fichas ainda estarão valendo. ‘Rosa de sol’, por sua vez, é surpreendentemente complexa, mesmo com duração limitada. Ora contida, ora ágil, a faixa é bem-sucedida em todas as suas estruturas.

Mas é claro que um autor que dedica letras a seus ídolos não deixará passar a oportunidade de dedicar-lhes versões. E é aí que Rogério, que já andava meio torto em cima do jegue, cai de vez em cima de um robusto mandacaru. A releitura de ‘Enquanto engomo a calça’, de Ednardo, não acrescenta em nada à memória da canção. O segundo trecho – esse grande tabu de Rogério – parece ter sido recortado e colado em estúdio com a delicadeza de um legista de IML, tamanha a desconexão com o corpo da faixa. Ah, como é triste essa nossa vida de ouvinte. Já ‘Moça bonita’, de Geraldo Azevedo, é comum demais para justificar sua presença.

O que agrava a mediocridade de um trabalho como ‘15 anos’ é o encarte. Lá, ao lado de fotos de infância e dos pais, Rogério abraça um Nando Cordel acordado no susto e conversa com uma Xuxa muito mais interessada em algo que se suspeita ser uma coxinha de frango. O mais importante, porém, não é tanto o senso de ridículo meio suspenso das imagens, mas o estabelecimento de que o trabalho é de fato um apanhado de sua carreira. Eis a questão: como um autor capaz com 15 anos de trajetória e alguns apertos de mão na Marlene Matos só pode ter rendido um amontoado de forrós meio assim meio assado? Os universitários que respondam. Até lá, arrumem outro brinde, por favor.