07 agosto 2011

ENTRE VISTAS E PISCADELAS I

A partir de hoje, neste blog esquecido por Deus e pelo seu próprio proprietário - não de Deus, mas do blog; mas entendam como quiser -, darei um jeito de fornecer uma mínima sobrevida a coisas que faço como editor de cultura do jornal Cinform, daqui de Aracaju. Como isso aqui não é espaço para a tortuosa ética ‘releaseira’, ou para sorrisos amarelos, compadrio, agrados, mimos, jabás, simpatias, ‘humildes sugestões’ e outras bajulações que me satisfazem muito, optarei por algumas entrevistas.

Ney Matogrosso


Foto: Arnon Gonçalves
Comecemos pelo senhor Ney de Sousa Pereira. Que é um sujeito cabeçudo, afetado, desconfiado e relativamente cansado de certas coisas. Mas que não deixou de responder perguntas. Não tinha não-me-toques temáticos, nem pediu por-favor-isso-não ou pelo-amor-de-deus-não-toque-nesta-merda-de-assunto. Sequer água pediu. Na verdade ela simplesmente chegou até ele – não, é claro, sem que nosso protagonista avaliasse o invólucro e a procedência do líquido com uma fitada de murchar autoestimas. O que interessa é que 40 anos de carreira, de mídia, de entrevistas e declarações de contramão deixaram nosso complexo frontman tão amaciado que não há questionamento que ele não digira em quatro ou cinco frases bem conectas. O que é ótimo para um jornalista, péssimo para uma transcrição, horrível para uma diagramação e excelente para o leitor, que descansa de imbecilidades que saem todos os dias de quem finge dizer alguma coisa. 

"Ser intérprete é uma vantagem"

Aflições e estímulos de um dos mais respeitados e inquietos artistas do país


Por Igor Matheus

(Publicado no Cinform em 16 de maio de 2011)

Plumas, brilhantes, um riscado mourisco no passo, gestos largos e afetados, minuciosa feminilidade vocal. Não seria fácil atribuir a alguém que se faz de instrumento da extravagância há quase 40 anos - intercalando com outras propostas, é bem verdade - razoáveis índices de lucidez. Mas é exatamente isso o que Ney Matogrosso transmite quando está desvinculado de seu alter ego de palco. Sem fazer pesar seus quase 70 anos, o intérprete esbanja consciência de si mesmo, dos atuais descaminhos da indústria fonográfica - embora confesse ignorar o que seja a 'atual MPB' - e não se poupa das sempre longuíssimas e requisitadas turnês que faz. Uma delas é justamente a atual 'Beijo Bandido', trazida a Aracaju no último dia 11 para um repleto Teatro Tobias Barreto.


O curioso é que mesmo tendo permanecido boa parte da carreira à sombra da lembrança do grupo que o catapultou – o Secos e Molhados – e transitado por inúmeras estéticas – o que aumenta seriamente suas chances de erro –, Ney Matogrosso conseguiu extrair da crítica uma privilegiada condescendência, que pode ser confundida, até, com veneração. Mesmo assim, a situação não o impede de ser um dos mais produtivos artistas de uma geração que hoje em dia apenas se requenta. Em entrevista para o Cinform realizada um dia antes de sua apresentação em Aracaju, o cantor falou de seu novo trabalho, de sua suposta 'solidão' no cenário musical nacional e revelou estar aberto a obras de compositores sergipanos. Acompanhe.

Cinform - O show 'Beijo Bandido' fará quase dois anos em cartaz. Fora a bilheteria, o que mais o instiga a permanecer tanto tempo na estrada?
Ney Matogrosso - Minha primeira meta nunca é a bilheteria. É a realização artística, é apresentar um trabalho que estou percebendo que as pessoas gostam. Não sou movido pelo dinheiro. Não vou dizer que o rejeito, que o renego, mas ele não é minha primeira meta. O que me instiga é o prazer de mostrar e de ver que ainda há gente querendo ver o trabalho que mostro. E tem mais: nunca é igual. Cada show que faço é para um público diferente. Portanto, tenho estímulos diferentes a cada dia.

Cinform - Certa vez o cineasta John Ford foi questionado sobre o significado da 'mensagem' na arte e respondeu que, se quisesse realmente passar uma, enviava um telegrama. Você acha que o artista deve ter compromisso com a transmissão de uma mensagem ou o público deve ter liberdade até para não pensar?
NM - Não quero público que não pense. Não me interessa isso. Ofereço estímulos conscientemente, e as pessoas que façam o que quiser com eles. E na medida em que elas se dedicam a se tocar pelo que eu envio, recebo uma resposta que também me estimula. Então é algo que vai e que vem. É um ciclo.

Cinform - 'Beijo Bandido' não é performático como 'Irreversíveis', último show que você
trouxe a Aracaju. Você o definiria como mais formal e comedido?
NM - Formal sim, mas não careta. 'Beijo Bandido' não é um recital. Ele até tem um repertório que poderia ser de um recital. Mas é mais do que isso. É um show de música romântica pop, em formato pop.

Cinform - Em entrevista recente, você disse que não tem costume de escutar música com regularidade. Como explicaria esse relativo 'distanciamento'?
NM - Não sei se é um 'distanciamento'. Apenas não tenho o hábito de escutar música com frequência. Tem gente que acorda, liga o som, fica o dia todo ali. Não sou assim. Gosto de silêncio, de ficar no silêncio. Não preciso de algo o tempo todo me estimulando. Fico muito bem sozinho. Quando estou procurando um repertório, aí sim, me entrego e me dedico com disciplina. Tenho uma sala em casa onde pego tudo o que quero ouvir, me sento e ouço.

Cinform - E como você avalia o atual momento da música brasileira?
NM - Não sei dizer, porque não ando escutando nada. Ouço rádio quando estou dirigindo. Então a informação que tenho do que está acontecendo é o que passa no rádio. Mas ele também não corresponde à realidade. Para tocar em rádio, os artistas precisam passar por inúmeros obstáculos. O que toca lá é o que conseguiu chegar, o que passou por todas as barreiras. Por isso que, como intérprete, vou atrás de gente que ninguém nunca ouviu: para ser um veículo de exibição de gente interessante que nunca teria a oportunidade de chegar lá. É um compromisso que criei para mim. É algo que, por sinal, não é um favor. Faço porque gosto. Faço por admirar o que me é mostrado, e não por ser bonzinho. Isso traz frescor para o meu trabalho.

Cinform - Não há artistas desenvolvendo trabalhos similares ao seu no atual cenário musical nacional. Você se considera esteticamente 'sozinho'?
NM - Não me considero nem sozinho nem acompanhado. Sou essa pessoa, esse artista, esse intérprete aqui. E ser intérprete, para falar a verdade, é uma vantagem, porque tenho a oportunidade de desfrutar de tudo o que a música brasileira pode me oferecer. Lembre-se de que não sou preconceituoso em relação a estilos musicais. Gravei forró em uma época em que cantores de MPB viravam a cara para ele.

Cinform - Tem conhecimento de algum compositor de Sergipe?
NM - Conheço a Joésia Ramos. Mas os que não conheço podem se aproximar. A Luli (da dupla Luli e Lucina) me falava de pessoas daqui. De vez em quando, peço para ela me colocar em contato com essas pessoas, para me mandar discos locais.

Cinform - Antes de cantar, você flertou com várias manifestações artísticas, que iam da pintura ao teatro. Ainda exerce alguma delas?
NM - Voltei a desenhar há muito pouco tempo. Depois que comecei a cantar, não fiz mais nada. Teatro não dá. É tão absorvente quanto a música, pois ensaia-se dois meses para ficar um ano em cartaz. Mas tenho feito algumas experiências em cinema e acabei de dirigir uma peça baseada em dois contos de João do Rio. Não me interessa ser só um cantor. Tudo o que eu achar que dá pra fazer, farei. Por sinal, foi lendo o João do Rio que entendi o Nelson Rodrigues.

Cinform - Você entrou na banda Secos e Molhados com 30 anos, uma idade relativamente avançada para quem se insere no mundo da música. Essa entrada, quando já maduro, o ajudou a fazer escolhas de forma mais criteriosa?
NM - Claro. Eu era consciente, já era um adulto pensante que vivia sozinho desde os 17 anos. Então, sabia o que me interessava e o que não me interessava. E eu simplesmente odiava aquela ditadura militar. Tudo o que fiz era frontalmente contra aquilo. Você não podia expor o que pensava, três pessoas não podiam se juntar em uma esquina, não se podia raciocinar de forma diferente de quem comandava. E eu era absolutamente contra tudo aquilo, e deixava claro que era. Por outro lado, nunca fiz política partidária, que não me interessa. Entrei nessa exigindo, sobretudo, minha liberdade de expressão. E o fiz fingindo e ignorando que vivíamos sob uma ditadura.