19 dezembro 2009

... CONTINUE PROCURANDO, POR FAVOR


A obra: ‘Encontrar Você’, de Gladston Rosa. Lançada em 2008, obra contou com Júnior nos teclados, Beto Vasconcelos no baixo, Pelé nas guitarras e Chico Queiroga e Antônio Rogério nos violões e na direção artística.

Nota: 3,84

Indicado para: shhhhhhhhhhh... caladinhos, senão Rosa pode encontrar você.

A crítica:

Hein? Dica para animar a semana? Não, não, não, não. Página errada, amiguinho. Aqui, por enquanto, só temos fórmulas para estragá-la. E a mais nova pedida, última inovação no mercado, é essa obra acima. Todos os ingredientes necessários para a anulação absoluta do bom-humor, aumento de taquicardia e sonolência estão lá: anemia criativa, ordenação de faixas sem critério, desperdício de arranjos, letras hiperglicêmicas. O que pode atrapalhar um pouco o projeto de uma experiência ruim é a relativa competência vocal do cantor e a inteligência indiscutível da maioria dos arranjos. Mas nada que impeça seu dia de ser um desastre. Não tem erro: insatisfação garantida ou sua paciência de volta.

A destruição do dia alheio é atribuição quase que automática de uma obra esteticamente incipiente como ‘Encontrar Você’. Só que de algo ninguém pode acusá-la: de ter um título inadequado e pouco inventivo. É nele que se sustenta a completa desarrumação, a indecisão, a inconsistência de tudo. E é a partir dele que se infere que a obra não é o achado, mas o registro da busca. O problema é que essa inclinação, em vez de corresponder a um interessante experimento versatilidade acima, não passa de uma exposição confusa de referências e intenções. É assim que se tem exemplares de pop, pagode, soul, xote, reggae misturado com qualquer coisa, gotas de sertanejo e uma jarra cheia da afetada e prejudicial nova MPB. Atirando para todos os lados, Rosa acerta um ou outro projétil no alvo meio sem querer, sem saber onde está mirando, esperando que alguém diga ‘ai’ e lhe indique o caminho. O resto é bala perdida.

INÍCIO DA BUSCA: SILÊNCIO

As más idéias não fazem muita firula para aparecer. A abertura ‘Minha identidade é você’ já representa o compromisso discutível que foi dispensado à ordenação das faixas. Isso porque é interessante como a canção sofre com a péssima idéia de ter sido situada no início. Isolada de qualquer coisa, trata-se apenas da típica peça sem término, que gira com doentia insistência em torno de uma única estrutura. Mas como entrada de tudo, ‘Minha identidade é você’ é um tronco de jequitibá no meio de uma ruela, uma jamanta virada na pista do aeroporto, um rei Momo desmaiado na fila do supermercado – passar adiante, só munido de sobrehumana disposição. Pelo menos a solução timbrística dos teclados torna menos impiedoso o esforço de aturar a faixa por mais de três minutos, longuíssimos diante de sua anemia.

É simplesmente constrangedor constatar que toda a complexidade conceitual que parece se esconder no título da obra não se reflete em momento algum na faixa homônima. É bem verdade que ‘Encontrar você’ não é bem um problema de saúde pública: o esforço de torná-la exemplar fiel de inofensivas e facilmente esquecíveis fórmulas de reggae a transformam apenas em um hit chato e irremediavelmente grudento. Mas a ausência de sinapses neurais nas letras, ainda que não se aproxime do escândalo, merece menção pela dose de tédio que proporciona. As palavras giram e giram e giram em torno de uma vaga procura por uma fêmea. Pronto. Acabou. É isso. Agora aplausos, por favor – não para o autor, mas para quem se interessou pelo assunto.

ALGUM SINAL

Apesar da garapa nauseante que também compõe os versos de ‘A muralha’, o início acústico da faixa pode ser facilmente categorizado, paradoxalmente, como o trecho mais intenso do disco. É possível até crer que, no lugar da boçal ‘Minha Identidade é Você’, essa seria a peça adequada para recepcionar a todos na extremidade norte do trabalho. Só que quando a banda entra, logo se vê que a peça nunca vai além do rigoroso projeto de Rosa de cometer canções facilmente mastigáveis e imediatamente excretáveis. Quem quiser evitar certa inversão de fluxo nessa digestão deve manter distância nada desprezível da péssima ‘Felina’. A atmosfera pula-pula e cor-de-rosa faz com que a faixa, parceria de Rosa com Antônio Rogério, jamais passe de um temível jogo de paciência em que dificilmente haverá vencedores. Ao invés de se ter o cuidado de escutar tamanho equívoco próximo a calmantes, é menos trágico fingir que ela nunca foi feita.


Já por ‘Lulu’, Rosa não seria necessariamente homenageado com passeios em carros de bombeiro avenidas afora. Mas não há dúvidas de que a faixa representa um sinal de vida inteligente diante de tanta aridez criativa. Harmonicamente válida, sofisticada e com o romantismo levemente colorido pela irreverência, ‘Lulu’ representa aquilo de que Rosa é capaz quando deixa para trás o ecletismo desesperado e pateta. ‘Morenice’ é outro acerto. Nunca é demais ressaltar que qualquer outra coisa que Rosa e Antônio Rogério fizessem resultaria em algo melhor do que a inominável ‘Felina’. Mas o que acontece é que há valor absoluto na expressividade dessa outra parceria da dupla, um xote revestido de dramaticidade e dolência. Só que quem se anima com isso precisa esquecer a escolaridade e adquirir um Pense Bem para exercitar a memória. Isso porque, depois das exceções, nada se afasta da palidez característica da primeira metade da obra.

PERDA TOTAL DE CONTATO

‘Beijo Veneno’ simplesmente possui o mérito de parecer com tudo o que foi feito em termos de forró e, ao mesmo tempo, não ter absolutamente nenhum elemento para ser lembrado. Com um pouco de paranóia e muita falta do que fazer, é possível até estabelecê-la como uma das faixas mais niilistas desde a morte do Criador: não propõe nada, não pretende nada, não significa nada, não impressiona nada, não tem peso nenhum para figurar em repertório próprio e, no fim das contas... do que é que estávamos falando mesmo?

A cansativa ‘Por Acaso’ também não justifica a própria presença, e se situa apenas como a versão latinóide para a antipática e repetitiva vacância da primeira faixa. Ao investir no choro ‘Explode Coração’, Rosa não parece tanto estar fazendo reverência à velha guarda, mas ao pauperismo das fórmulas gastas até o osso de um Belo ou de um Vavá. E é com tudo já devidamente virado e azedado que o solista lança a ligeiramente relevante ‘Anne’. Aproveitando a nudez da canção e a expressividade do piano, o autor procura se estabelecer como intérprete, atribuição em que sua competência é pouco contestável. Mas é tarde demais. E as versões remix de duas das piores faixas do disco só revelam o quanto o protagonista se esforça para disseminar seu pior lado.

Esquecer uma obra como essa só não é algo recomendável por ser simplesmente improvável que outra coisa aconteça. E é lamentável constatar que, em meio a tamanho festival de impertinências, os ingredientes de um disco bem produzido estavam todos lá: bom vocal, arranjos bem pensados, malha equilibrada de instrumentos. Mas onde estão as boas idéias? Onde está a inventividade? Ao invés de buscar isso, Gladston Rosa quer encontrar alguém; alguém que diga ‘ai’ diante da esquizofrenia de seus tiros. Nesse caso, todo mundo quietinho.

05 dezembro 2009

PRÊMIO COCOMENTÁRIOS DO ANO – II


Esse tratado aqui embaixo é um artigo de Luis Antônio Giron sobre os prejuízos sonoros e culturais acarretados pelo MP3. Foi escrito em agosto, mas passou a circular recentemente em uma lista de e-mails e continua incomodando muita gente. Não chega a ter o mesmo nível de um Cocomentário como esse aqui, mas vou usá-lo mesmo assim pra fidelizar essa seção. Lá embaixo eu volto.

Delete o MP3 de sua vida

A música foi a única arte que perdeu em qualidade de reprodução com a evolução tecnológica. A morte do MP3 é a única saída para a regeneração da sensibilidade musical


LUÍS ANTÔNIO GIRON

Imagine-se na Capela Sistina, no Vaticano, perdido entre os afrescos de Michelangelo nas três dimensões daquele pequeno espaço que projetam o visitante para mundos assustadores e sublimes. É uma experiência única de contemplação. Agora, olhe para uma reprodução de um afresco da mesma Capela Sistina impressa num selo de correio, ou então reproduzida em thumb de jpeg no site do Museu do Vaticano. A Capela Sistina não é grande, mas miniaturizada perde toda graça. É o mesmo que assistir E o vento levou ou Cidadão Kane na tela de um tocador de MP4, como tentei fazer outro dia. A gente não consegue entender a beleza de Scarlett O'Hara (Vivien Leigh) diante daquela mosquinha vestida em traje de festa, rodopiando no baile nos braços de Rhet Butler (Clark Gable).

E não dá para respeitar o barão da imprensa Kane (Orson Welles), imponente qual pulga de circo. E o que dizer de condensar a Odisseia de Homero em 140 caracteres de twitter? Impossível. A tecnologia tem miniaturizado as artes. Mas nenhuma delas sofreu tanto quanto a música. É um escândalo o que acontece hoje. Todo mundo acha que é dono da Sistina, mas só tem um selinho vagabundo dela. Todo mundo pensa que ouve música, mas de fato está dando download a arquivos compactados e chapados, sem qualidade. É hora de parar com essa ilusão.


Outro dia encontrei em Miami o maestro Flávio Chamis, que mora e trabalha em Pittsburg, nos Estados Unidos. Ele me disse que tem feito palestras sobre o assunto, até porque está espantado com a indiferença com que o público anda tratando a música. Ele me olhou com uma expressão compungida e disse: "A música foi a única arte que involuiu por causa da tecnologia". A afirmação pode soar exagerada, mas pense comigo. Em primeiro lugar, vamos abordar a área da produção. Os meios eletrônicos, como sintetizadores e outros aparelhos só fizeram piorar a qualidade do conteúdo musical. Não há um Beethoven do hip hop, nem um DJ com o gênio de Mozart. Nem haverá. Porque o livre acesso a decupagem, mixagem e remixagem do patrimônio musical gerou apenas diluidores piratas, que usam o "sample" (a amostra sonora da música alheia) com se fosse de domínio público, como se não pertencesse a ninguém. A boa música é uma arte, um artesanato, um ofício, uma missão. A pirataria dos DJs e agora do público levou à depreciação do valor de uso da música, para não falar do valor de troca.


Isso nos conduz ao segundo aspecto que gostaria de considerar: a gravação. Ao longo do século XX, o mundo da música passou por uma metamorfose incrível, e sua transformação e popularização se deram quase na razão inversa de seu aperfeiçoamento sonoro. Assistir a um concerto de orquestra ou a uma récita de ópera constituíam uma experiência única. Não há nada como o "som" ultragrave (bass booster) do Festspielhaus de Bayreuth, o teatro criado por Richard Wagner em 1876 e até hoje a meca dos wagneritas mundiais. E não há acústica como a da sala moderna da Gewandhaus de Lepzig ou da velha sala do Musikverein em Viena. Como não se repetirá a acústica bela e encardida do incendiado teatro Cultura Artística de São Paulo. Não adianta chorar. Quem ouviu, ouviu, e me sinto privilegiado por ter estado em tantos lugares essenciais. Quando não havia meios de reprodução técnica do som, ouvir música nesses espaços era um momento ritualístico e também acústico.


Aí chegaram as gravações, e tomaram o espaço dos teatros, substituíram os teatros, aliás. Em 1877, Thoms Edison lançou o tin-foil e, em seguida, o fonógrafo, que tocava cilindros de cera. A grande revolução aconteceu em 1900, com a popularização do gramofone, que tocava discos de cera, com velocidade de 76 rotações por minuto. De lá até a morte do CD no início do século XXI, aconteceu a evolução tecnológica, e sua involução sonora.


Em abril de 1902, o tenor Enrico Caruso descobriu que o quarto do hotel onde estava hospedado em Milão era capaz de lhe dar mais fama que o teatro La Scala lotado. Foi num apartamento daquele hotel que aconteceram as sessões de gravação de estreia de Caruso, até hoje cultuadas. O estúdio improvisado montado pela companhia de Berliner (a Grammophone & Typewriter Company). Caruso ficou famoso no mundo todo, e suas aparições no Metropolitan Opera House de Nova York ou no teatro Municipal do Rio de Janeiro se converteram em meros suplementos de um produto mais poderoso: o disco. A acústica era precária na era mecânica, mas as máquinas falantes e o autofone eram suficientes para criar o primeiro herói do disco.

Se com som ruim Caruso ficou célebre, seria insuperável caso usasse um sistema melhor. Mas o tenor morreu em 1921, quatro anos antes do lançamento, pela Vitaphone, do disco elétrico e do processo de gravação pelo microfone. Até 1948, quando veio o estéreo e o LP (long playing), os discos elétricos de 78 rotações davam conta do recado, embora o som fosse igualmente ruim. O LP em vinil, com seu processo de ondas sonoras esculpidas em microssulcos, marcou o ápice da qualidade de gravações. E desde 1948 o som tem passado por uma decadência, conforme observou o maestro Chamis. O som estereofônico e quadrifônico com discos de vinil quase chegava ao nível das salas de concerto. As gravações das sinfonias de Beethoven com a Orquestra Filarmônica de Berlim, com Herbert von Karajan, realizadas entre 1961 e 1962 pela Deutsche Grammophon, são insuperáveis. E nem o ciclo repetido em 1983 pelo sistema digital e lançado em CD se comparou à versão em vinil.


A passagem do LP para o compact disc foi traumática para os melômanos. O som do CD pecava pelo exagero das dinâmicas e a limitação das frequências. Fomos jogados para a frente de uma caixa acústica bombástica, e perdemos a sutileza do som sulcado do vinil. Eu não consigo ouvir o Karajan digital. Prefiro meus LPs antigos. Ali é possível ouvir melhor as sutilezas da orquestra, os timbres, as dinâmicas. O CD empobreceu a audição. Mas nos rendemos à tecnologia e ao volume do som, que ampliava e distorcia o som das salas de concerto. O CD traz um som nítido e quase hiperreal. Nada a ver com a respiração e a atmosfera da música erudita sinfônica. Mas, enfim, era preciso adotar o som digital por conta de uma suposta nitidez. Uma nitidez que a música em si jamais possuiu ...


A volta da música à barbárie sonora das primeiras chapas de gramofone se deu com a disseminação do MP3, o arquivo de compactação de dados, que passou a dominar o comércio pirata de arquivos sonoros pela internet, principalmente a partir de 1999. Eis que nosso mundo de amantes da música caiu, estatelou-se e nunca mais voltou ao mesmo. Porque as pessoas não notaram nem notam mais a diferença entre um som superdefinido como o do CD e um som reduzido em até 90% em relação ao arquivo wma, usado na gravação digital. A música perdeu seu suporte mais importante, o compact disc, e foi jogada a um mundo de nanorressonâncias. Encolheram a música, cortaram as frequências graves e agudas, e ninguém notou, salvo os maestros, os músicos, os ouvintes acostumados com as sistinas sonoras do vinil, depois as hipersistinas do CD. O que me faz pensar que toda a corrida pela excelência do som que se deu no século XX foi inútil. Hoje a gente ouve pelos tocadores de MP3 um sonzinho tão ruim quanto os das chapas das máquinas falantes. Daí a involução por que passou a música.


Não gosto de me jactar, mas há vinte anos denunciei em artigo a queda de qualidade das gravações quando os registros históricos de música popular brasileira começaram a ser transpostos para o CD. Eu ouvia um som cavo, sem a clareza presente nos LPs e nas bolachas de 78 rotações. Um famoso jornalista musical declarou que eu tinha "um cérebro de ostra" para fazer tal afirmação. Hoje vejo que o cérebro de ostra era dele – ou, pelo menos, seu ouvido era de ostra no fundo do mar da ilusão tecnológica. Há sonhadores que creem na salvação da música pelo disco de vinil, que voltaria dotado de inovações tecnológicas.


Somente o bom e novo LP poderia salvar a música da pirataria indiscriminada – e, pior de tudo, do som de péssima qualidade que circula pela internet. Não sei se será possível. Mas as gravadoras deveriam tentar lançamentos de importância para ver no que dá. De minha parte, continuo curtindo minha coleção de LPs, prazer que nunca se repetiu no CD. Ouvir música no MP3 é ridículo. É como tentar apreender uma miniatura inaudível, uma orquestra tocada por... mosquitos. Minha plataforma agora é esta: se você gosta de música de verdade, delete o MP3 de sua vida.

MINHA VEZ

Foi muito difícil encerrar este texto e não imaginar Giron chupando um pirulito nabokovicamente enquanto o tal do Flavio Chamis tecia digressões pejorativas sobre nanorresonâncias. Claro que ao fundo dessa cena está tocando um Gotterdammerung de petróleo gravado por Karajan. Mas nessa minha construção, a agulha do toca-disco atropela algum cocô de ameba e salta no melhor momento da bolacha. Nesse mesmo momento hipotético, termino de baixar em casa, mesmo a 2 mbps e com um péssimo vídeo do Improváveis carregando no Youtube, todo o Ciclo do Anel wagneriano e, com alguma paciência extra, o Parsifal.

Esse intróito só serve para deslocar o mérito do texto para o tal do Flávio Chamis. Pois foi a partir de uma manifestação qualquer de seu natural e semiobrigatório purismo esquizofrênico de maestro que Giron deitou sua admiração embasbacada e teve o seu clique. O problema é que desse clique resultou um artigo que nunca se decide por onde transitar. Ora o problema é o mundo pós-vinil, ora o problema é o mundo pós-MP3, ora o problema é o mundo pós-48, ora o problema é a zaga do Palmeiras, ora o problema é o dedo mindinho do Lula, que não cresce.

Partamos então do título, que precisa condensar o significado de tudo. Ora, a defesa da morte do MP3 não é uma tese necessariamente esdrúxula. Mas isso a partir de um ponto de vista específico: o da real apreciação estética de peças ou canções. O formato comprimido e portátil não é o melhor para a audição de uma peça ou canção com a mesma plenitude com a qual foi concebida – a condição ideal para que alguem levante a cabeça para dizer que a ‘conhece’.

Logo, o MP3 é uma espécie de paliativo, de mostruário, de depósito que se converteu em uma mídia em si. Qual uma caixinha de Tic Tac que desbancou o chiclete. Graças à sua portabilidade, a música passa de experiência com alto grau de especificidade a acessório que sublinha o cotidiano e ameniza o horror coletivo pelo silêncio interno. Nesse aspecto, Giron está certo. Dentro de um ônibus, no meio da masturbação, debaixo d’água ou no fim de um salto de pára-quedas, muitos acordes, fraseados, timbres, linhas vocais, crescendos e decrescendos se escondem atrás da surdez da pressa.

Se a praticidade do MP3 torna os repertórios superindividualizados e imediatamente acessíveis, tambem os reveste de um frisson que nunca permite que a faixa se mostre por inteiro.
Só que isso não tem nada a ver com nanorressonância. Nem com freqüências minúsculas. Nem com ‘a sutileza do som sulcado do vinil’. Apenas lembra que um chiclete necessita de mais esforço que um Tic Tac, mas tambem promove prazer mais demorado. Mas aí vem Giron e desce a ripa tambem nos CD’s, argumentando que a bolachinha ‘empobreceu a audição’, pois ‘traz um som nítido e quase hiperreal’ que não tem nada a ver com a ‘respiração e a atmosfera da música erudita sinfônica’.

Aí acabou a charada, meu irmão. O chororô de Giron é o chororô dos ‘eruditófilos’ de ouvido absoluto – já que o predicado ‘melômano’ se relaciona à Música em geral. Trata-se do lamento de uma casta auditivamente superior que não reconhece como audível nada que tenha se desenvolvido depois de Varése
('a volta da música à barbárie sonora') – ou nem isso, estancando em um Rachmanninnoff . Quando se tem tal paixão pelo passado e tanto poder auditivo para microfrequências - e para agüentar Varése -, a negação do MP3 como recurso sonoro pode até fazer sentido. Mas há algo muito maior que foi assustadoramente esquecido por Giron em suas centenas de linhas: a acessibilidade de conteúdo permitida pelo desgraçado formato comprimido.

Se é para ficar limitado à realidade da música erudita, digamos que não existe uma só ópera, ou quarteto de cordas, ou concerto para piano e orquestra, ou missa, ou réquiem, ou polca ou valsa ou scherzo ou pollonaise ou concerto para pires e varal de roupa solo que não esteja na internet. Para Giron, o nome disso é pirataria. Para quem está um pouco longe das salas de concerto austríacas, o nome disso é conhecimento compartilhado ou cultura - finalmente - disponível.

Giron tem o direito de preferir um som que reflete sua autenticidade por meio de impurezas e de uma sonoridade ‘sulcada’, seja isso um passadismo subjetivo ou autêntico ardor tecnicista. Só que esse troço de defender a morte do MP3 é porre, afetadinho (a ‘linda’ e original metáfora da Capela Sistina que o diga) e ignora o fator ‘disponibilidade cultural’ tão caro a maestros, como Chamis, que tomam diariamente um elixir chamado ‘lamento eterno pela ignorância popular’. Ainda por cima, a melação homicida de Giron ainda atrapalha o argumento mais válido de seu texto: o que lembra que a grandeza da herança musical do ocidente vai passar, e só os chupadores de Tic Tac não vão ver.

29 novembro 2009

RATADA


A obra: ‘Ben’, de Michael Jackson. Lançada em 1972, obra traz composições de Berry Gordy, Smokey Robinson, Mel Larson, Jerry Marcellino.

Indicado para: quem se derrete com a faixa título e sai para comprar um hamster e um pôster em tamanho natural de Mussolini.

A Nota: 6,62

A crítica:

Expectativa é mesmo um negocinho muito complicado. Um troço angustiante. Intolerante. Massacrante. O Michael Jackson das bainhas na cintura levou essas constatações às últimas consequências, convertendo-se em um monstruoso entusiasta de ensaios e repetições estafantes. Mas onde realmente deve ter começado essa doidice? No cinto de Joe Jackson que lhe marcava o rabo? Em algum conselho mais enfático de Berry Gordy e seu imediato Smokey Robinson? No toco de pau de Joe Jackson que lhe sangrava o focinho? Quem souber a exata resposta que dê quatro piruetas e depois repete bem baixinho, com as mãos juntas, pra papai do céu: o-autor-da-resenha-tá-se-lixando-para-o-que-eu-sei.

É muita pretensão tentar entender alguem que se julgava capaz de usar um criminoso maiô dourado. Mas não é forçoso situar ‘Ben’ como fator decisivo para o desesperado senso de autosuperação desencadeada pelo moonwalker. A razão é simples: a obra é a seqüência razoável de um trabalho excepcional. Ou seja: é um erro. Um fracasso. Mesmo enquadrado na mesma fórmula de ‘Got to be There’ - e gravado sob a mesmíssima pressão e ambiente de esquizofrenia comercial -, ‘Ben’ chega arfando onde seu anterior ultrapassou acenando para a torcida. Nem mesmo as duas ou três canções acima da média que atravessam o repertório conseguem tapear o provável ambiente de pressa e preguiça que marcou sua concepção - atributos que também permearam o disco de estréia, mas que foram devidamente jogados para baixo do tapete por um repertório quase irretocável.

DIRETO DO ESGOTO

Que se admita que o fracasso relativo de ‘Ben’ não chega a eclipsar totalmente seu valor absoluto. Trata-se ainda de obra rarefeita de um artista peculiar, sublinhada por grande arrojo instrumental e um punhado de interpretações inalcançáveis. Exatamente os pontos que fizeram de ‘Got to be There’ o álbum definitivo do amiguinho de Macaulay Culkin. O problema é que já é preciso pular uma faixa para que ‘Ben’ comece a fazer sentido como uma obra razoavelmente aceitável. Porque a canção de abertura que dá nome à obra, senhores, é uma ratoeirada no saco.

Não interessa se a letra traça uma ode à amizade. Nem que o tal do Ben seja um rato. Nem que o tal do Ben seja um rato assassino, fascistóide, aliado de Hugo Chavez e persona non grata na redação da Veja. O que interessa é que a faixa é um exercício de melação, de lirismo harmônico inócuo, e, muito provavelmente, transmite leptospirose auditiva. Demasiadamente séria, acadêmica e sem graça, ‘Ben’ figura sem muito estardalhaço entre as piores canções já oferecidas para Michael Jackson.

É por isso que as presenças de ‘Greatest Show On Earth’e ‘People Make The World Go Round’ na seqüência podem ser sentidas como prazerosas brisas após esse intróito voltado para o esgoto. A primeira, furiosa, épica e festiva, é uma peça feita para titãs das apresentações ao vivo - com mais de 14 anos, naturalmente - que o guri masca sem dificuldade, contribuindo com as excelentes construções da canção. A segunda é outra pecinha explicitamente mais elaborada do que uma criança poderia entender, conduzida por uma linha vocal costurada em cima de tempos instáveis. Mas é claro que tudo isso é nada para o moleque, que engole a partitura e interpreta enquanto faz malabares, sem afetação ou esforço.

FOI MAL, NÃO DEU TEMPO

Há pouca coisa por aí mais perigosa do que realizar a reinterpretação de uma canção imortal. ‘My Girl’ de Smokey Robinson, por exemplo, é uma canção imortal. E a degustação de um belo egg’s estilete com molho de gilete parece ser tarefa bem menos ingrata do que superar a versão oficial que os desgraçados do The Tempations fizeram dela. Mas alguem achou que não. E enfiou a canção no meio do repertório desta obra. É verdade que, diante de demanda tão temerária, ‘little MJ’ não faz feio. Mas há um excesso de notas, de apêndices, de floreamento e de sofisticação que faz com que a canção caia na mesma vala comum de todas as versões mal sucedidas: a vala das roupagens que apenas induzem o audiente a querer voltar ao conforto que as originais transmitem.

Tirando ‘Everybody’s Somebody’s Fool’, um soul clássico em cada poro, as demais canções que constituem ‘Ben’ nunca ultrapassam o mediano. A circular ‘We’ve Got a Good Thing Going’, um dos equívocos da trupe de Berry Gordy, foi provavelmente metida de qualquer jeito na bolachinha. ‘What Goes Around Come Around’, um pouco superior, se sustenta sobre dois acordes com tanta insistência que acaba por ser longa demais para seus 3 minutos e meio.

Já a tal da ‘Shoo Bee Doo’ é tão anêmica e empacada que ofende a elasticidade interpretativa do guri. Mas o troféu ‘Jiló de Verdade’ vai para a repetição sem critério da mimosa ‘In Our Small Way’, uma das faixas de peso de ‘Got to be There’. Trata-se de um belo ‘não cumprimos o prazo’ riscado a piche na testa de Berry Gordy. Ou uma forma inovadora - e nada sutil - de ‘repetir as fórmulas’ do excelente disco anterior.

Mas se há algo que essa obra herdou diretamente do petardo que a antecedeu foi a preocupação com um fechamento apoteótico. Com seus desenhos clássicos de cordas e expressivas notas longas nos pontos culminantes do refrão, ‘You can cry on my Shoulder’ é uma das melhores baladas épicas do repertório do moleque. Os improvisos vocais dos últimos segundos da canção podem até passar despercebidos a alguns, mas são a coroação de um virtuose absoluto. É muito difícil não esperar que um pivete que conduz a faixa da forma como o faz não vá ser notável mais tarde.

Dilacerado por um desespero elevado ao quadrado – ocasionado tanto pela necessidade de lançar mais material da mina de ouro mirim quanto do medo de perdê-lo para as deformações vocais da puberdade -, ‘Ben’ só consegue sobreviver enquanto confirmação da excelência de ‘Got to be There’. Primeiro, porque tentou – como deveria tentar mesmo – segui-lo. Segundo, porque ficou abaixo dele. Terceiro, porque legou à posteridade uma das canções mais purgantes dos anos 70. E quarto, porque a identifica como carro-chefe e como título. Mas espere aí. Isso pode ser até uma contribuição positiva. Pois os mais instruídos, sabendo da presença da ode ao rato bolivariano, não sustentarão grandes expectativas. E todos saberão que o álbum não traz ‘ben’ o que tinha que estar lá.

Veja tambem:

Got to be There
ESPECIAL MICHAEL JACKSON - INTRODUÇÃO

29 outubro 2009

FEITO PARA REBANHO

A obra: ‘Vida De Gado’, de Antônio Carlos du Aracaju. Gravada em Recife e em Aracaju, disco contou com Jorginho, Moabe e Mongol no Baixo; Ravenghar, Mestrinho, Genaro e Alegria no acordeão; Ivo e Escurinho na Zabumba; Wellington e Raimundo na bateria.

Indicado para: quem consegue ouvir apenas o triângulo, a zabumba e a sanfona no meio de tanta chatice e previsibilidade.

Nota: 4,01

A crítica:

O posicionamento que Antônio Carlos Du Aracaju adota pra fazer forró é coisa para Globo Repórter ou Discovery Channel. É estranho, torto, desafiador, indefinido e, se não houver alguma forma de registro, ninguem vai acreditar. Ora, ‘Vida de Gado’ é esse registro. É estranho, é torto, é indefinido. E é também desafiador, só que da paciência e da noção de otimização de tempo. O problema é o negócio da crença. Encerrada a audição da obra, acredita-se em ainda menos coisas.

Não dá pra acreditar, por exemplo, que o forró é um estilo plural. Ou que o forró sergipano está levemente acima dos demais. Ou que é possível misturar qualquer coisa com forró. Ou que ainda é possível escutar algum disco desse sujeito sem achar ofensiva a imagem do plugue do som encaixado na tomada. Tudo isso porque ‘Vida de Gado’ é uma coleção de pequenos acertos potenciais transformados em bagulho. É uma soma nada atraente de um conservadorismo entediante com invencionices atabalhoadas. É um registro, enfim, do quanto Du Aracaju não maturou nem assumiu ainda o devido controle de sua proposta.

Quem tiver estômago que confira por si só. De cabo a rabo desse disco, o que se tem é uma coletânea mal acabada das menos atrativas e convencionais fórmulas de forró temperada com letras apocalípticas e teclados de churrascaria. Claro que a melhor forma de apreciar isso é forrozeando no salão, atividade que exige a audição como suporte mecânico, não como faculdade de apreciação. Mas com uma lata e um toco de pau também é possível pôr todo mundo pra botar a mão no joelho e dar uma agachadinha. Ou seja, Sheila Carvalho: um disco dançante está na mesma categoria de uma lata e de um toco de pau. Fundado em regras quadriláteras e na destruição de idéias potenciais para compor seu trabalho, esse ‘Vida de Gado’ só consegue ir mais longe que a lata e o toco de pau em um único atributo: na insistência em não acabar quando todos já imploram desesperadamente pelo seu fim.

Ê, ENTRADINHA

Que se faça justiça antes de mais nada. A primeira peça, ‘Em nome do Pai’, não é uma canção ruim. É uma canção desperdiçada. Harmonicamente, é coisa de quem de fato tem o que oferecer no forró. E melodicamente, ao menos em sua maior parte, tem lá seu valor. O primeiro problema é que a letra não consegue se decidir entre as aceitáveis e convenientes sertanices e os arroubos tresloucados de anarquismo de beira de estrada. Apenas em um disco como esse é possível encontrar uma canção em que o sujeito desce a ripa na política internacional e, em um espaço de cinco segundos ou menos, declama ‘ê boi’ sem nenhum constrangimento.

Mas quem dera isso fosse o pior. Lamentavelmente, o buraco é tão mais embaixo que resvala em Pequim, e o apodrecimento eterno de ‘Em nome do Pai’ é causado pelo inovador desempenho de Du Aracaju em certos trechos de sua própria melodia. Na verdade, nos mesmos trechos a canção inteira: quando assoma um acorde diminuto por lá, o cantor se estremece, dá cambalhota, faz careta, fuma cachimbo e apita, invoca o caboclo, bate palma, grita saravá, mas não consegue cantar afinado sobre a maldita harmonia em absolutamente nenhum momento. Para entornar de vez o banheiro químico, puseram a faixa como abertura. É simplesmente impossível acreditar que um deslize animalesco como esse tenha passado incólume sem que algo terrivelmente bizarro possa ter acontecido.

Já em ‘O Canto do Povo do Meu Lugar’ o autor se recupera em alguns aspectos. Com harmonia simples e arranjos básicos, sem firulas nem invencionices prejudiciais, Du Aracaju faz bem à canção, originalmente peça folclórica de Porto da Folha. No final, porém, sobra na curva, e começa a regurgitar em tom de comentário que a faixa é dedicada a essa e aquela outra personalidade, professor, vizinho, dono de bodega, sabe-se lá quem mais. Não é preciso muito esforço para constatar que os homenageados, muito provavelmente, devem zerar o volume da peça justamente no momento em que são citadas.

BRASÍLIA

A biográfica e extremamente lamentosa ‘Esta é minha história’, de Walfran Soares, é outra que não chega a despertar em ninguém o desejo de chutar o alto falante, mas também não impressiona. O interessante é que se trata de peça tão enegrecida pela desgraçada trajetória do eu lírico que dançar ao som disso torna-se, no fim das contas, quase que cinismo. Já a imediatamente esquecível ‘Casa de forró’, mesmo sem nada a agregar ao que já tem sido feito e continuará sendo infinitamente, cumpre integralmente sua tarefa de ser apenas dançante. O problema são as quatro buzinas de Brasília que insistem em se comportar como se fossem teclados e enterram de vez o que já não estava em pé direito.

A seguir, Du Aracaju vai ao banheiro e dá um espaçozinho pra sua irmã Cidinha. E mesmo com a ausência temporária do proprietário, a casa não cai. Afinada, sem afetação e sem lampejos de diva, a cantora administra de forma razoável a metida a salsa-xaxado ‘Nega Forrozeira’ e a mediana pós-porre alcoólico ‘Deixa de ser besta, coração’, mesmo sem conseguir ser necessariamente imprescindível ao conjunto da obra. Já o protagonista, quando volta, insiste pesado no binômio festa junina/jingle de prefeitura com a apenas animada ‘Forró de Areia Branca’. A letra funciona, a ritmia contagia, as buzinas de carro popular disfarçadas de teclado ficam mais comedidas, mas harmonia e melodia não saem nunca das convenções. ‘Forró de Areia Branca’ é tão passável que está fadada a sobreviver apenas durante a festa que homenageia.

ÉPICO

Lenta e algo paisagística, ‘Vida de Gado’ também não representa em si nenhum esforço de Du Aracaju para ser lembrado. Entretanto, a tentativa de casá-la com uma orquestra sinfônica, representada pela presença de cordas sintéticas ao fundo, tem lá alguma coisa de interessante. E isso mesmo com a sonoridade rascante do acordeão, que, com seus imensos acordes aparentemente feridos sem muito critério, toma a frente de tudo e joga areia no efeito da soma insólita. Em ‘Não Deixe o Véio Chico Morrer’, porém, a convivência do trio pé-de-serra com a ‘orquestra’ é, além de mais equilibrada, mais contributiva para o valor da faixa. Só que isso não quer dizer que a peça seja incrível: ‘Não Deixe o Véio Chico Morrer’ não vai a lugar nenhum com seu discursinho politizado sem graça e seu pálido conservadorismo.

Nada do que prende a anterior às fórmulas se encontra na irregular ‘Cheiro de Paraíso’. Pela primeiríssima vez em todo o disco, Du Aracaju não se mostra interessado em reverenciar ninguém nem em fazer balançar pezinho nenhum, apesar da força rítmica. A canção pulsa, fazendo que vai e não indo, e tudo em cima de uma proposta harmônica simples e eficiente. Mas lá vem a letra, insistente nessa coisa de se posicionar como adendo a qualquer acerto do autor. Com grandiosas, abiloladas e pouco sutis citações bíblicas, Du Aracaju parece estar convencido de que falar de qualquer tema sagrado, de qualquer jeito, agrega valor a qualquer coisa por si só. Só que uma atitude como essa acaba gerando um resultado muito mais inócuo e deslocado esteticamente do que o desenvolvimento original de qualquer um dos temas universais – de novo: universais - tratados no tal do Livro. A chatíssima ‘Bolo de feira’, por sua vez, é excretável com muito mais rapidez e facilidade do que a iguaria citada.

‘Vida de Gado’ é disco pra boi dormir. É um fracasso. É ruim demais. É até mesmo inferior a milhares de discos dançantes de forró tradicional espalhados por aí. Mas não é necessariamente o fim absoluto de Du Aracaju como compositor, embora dificulte seriamente quaisquer tentativas de concedê-lo algum crédito. Embora predominantemente intragáveis, as canções possuem uma certa base de competência, que revela o quanto o autor entende da estilística. Mas até agora o único resultado do exercício de seu conhecimento foi mostrar como dezenas de composições, arranjos e trocentos instrumentistas podem ter o mesmo valor, no fim das contas, de uma lata e um toco de pau.

23 outubro 2009

NA BOCA NÃO APRESENTA: ESPECIAL (TARDIO MA NON TROPPO) MICHAEL JACKSON


Ninguem aguenta mais falar de Michael Jackson. Ninguem aguenta mais ler sobre Michael Jackson. Ninguem aguenta mais ouvir falar nas brigas de quem sobreviveu a Michael Jackson. Ninguem aguenta mais ver o fantasma de Michael Jackson arrastando correntes pelo Youtube. Ninguem aguenta mais saber quem deu Cataflan ou elixir paregórico demais para Michael Jackson. Ninguem aguenta mais especular se o congelador que Berry Gordy emprestou cordialmente para preservar o moonwalker por uns dois meses era Consul ou Electrolux.

Mas apesar do detalhamento de todas as miudezas, de todas as extravagâncias alienígenas de um sujeito perturbado, do oportunismo confuso de sua família não menos bisonha e desse enfado generalizado altamente justificável, a miríade de dados sobre o sujeito esqueceu justamente daquilo que, ‘apenas’, transformou sua viagem sem volta para Neverland em algo publicamente relevante: sua obra. Talvez o foco tenha sido atrapalhado por um certo patrulhamento velado, uma vigilância de babacas ressentidos que viram hipocrisia na busca repentina e desesperada pelos discos do ex-pegador de Brooke Shields. “Só porque ele morreu que vocês estão escutando isso, não é? Se ele ainda estivesse lambendo criancinhas por aí, todos continuariam esquecidos de que ele existia” - seria o discurso em carros de som dessa organização internacional de iconoclastas ocasionais.

O problema é que o substantivo ‘morte’ não fica muito bem quando antecedido do advérbio ‘só’. Porque morrer é algo extraordinário. Está muito acima do nosso entendimento. Está muito abaixo do nosso desentendimento. É algo encravado em todas as nossas minúsculas preocupações. E, ainda assim, é a única coisa absolutamente real de que se tem notícia. Além disso, todos ficam insuperáveis e sobrehumanos quando mortos, pois ganhar cinco bilhões pela internet ou dormir com Jessica Biel continuam sendo absolutamente nada perto do alcance da superexistência ou da nadificação.
Morrer implica em ser lembrado de alguma forma.

Só que ainda não é isso o que legitima o frenesi de viúvas que pararam a internet atrás de arquivos do sujeito. O que o faz é a constatação de que o cidadão sem nariz não era somente um afroamericano com sorte para vender zilhares de discos: era uma instituição viva; um titã multimídia da era do LP; e a mais icônica lembrança pop de uma década pop. Ainda que muitos possam ter por Michael Jackson a mesma estima que têm por um prato de jiló fresco - e por qualquer razão que seja -, não precisarão da presença de um rifle para reconhecer que não surgiu, durante a época em que ele estava por aí, artista com trânsito midiático tão inalcançável, com presença tão opressiva na indústria da cultura e com uma capacidade tão megalomaníaca de se automitificar.


Graças a isso, muitos cresceram achando que o rapaz não era nem animal nem vegetal, mas um personagem da Disney. E ainda que um Bruce Springsteen ou um Eagles tenham vendido mais álbuns do que o moonwalker em algum momento, absolutamente nada poderia tirá-lo da altíssima torre que seu perfeccionismo e seu peculiar senso de autopropagação ergueram. É por isso que muitos poderiam até se rachar de rir diante de sua autodenominação como ‘rei do pop’, mas, sem sentir, se somavam aos zilhões que sabiam dela. A conta, agora, ficou simples: fascínio da morte + faraó da estética megalomaníaca e semideus das vendagens + facilidades quase constrangedoras da internet = download pra cacete e procuras hiperbólicas. Hipocrisia? Modismo fuleiro? Curiosidade imbecil? Nada. É que Michael Jackson sempre foi gigantesco mesmo. Qual um buraco negro - com vitiligo.

É claro que os mais apressadinhos subentenderão essa interpretação do gigantismo do sujeito como uma tentativa de canonização. Mas a imensidão incontrolável do nome de Michael Jackson não evitou sua firmação, ao longo dos anos, como uma aberração em todos os sentidos possíveis de se entender o termo e nos opostos bons e ruins do significado. Foi um suposto pederasta ao mesmo tempo em que foi um inacreditável prodígio. Foi um consumidor extravagante ao mesmo tempo em que foi um perspicaz construtor de hits. Foi um adulto mimado ao mesmo tempo em que foi um performer com insuperável presença de palco. Foi um exemplo agressivo do que não se fazer com a própria imagem ao mesmo tempo em que foi um produtor visionário.

O ruim é quando o lado ‘monstro’ desse Dr Jekyll aflora sozinho em uma sequência de incidentes ridículos sublinhada por uma fase artisticamente improdutiva. Aí, temos o silêncio, o ostracismo. Aí, temos o tédio, o esquecimento. Como Michael Jackson poderia até ser ‘o maior artista do planeta’, mas não o único, esvaiu-se. E, aos poucos, a audiência passou a se acostumar com o seu lento estado de putrefação.

A tragédia de uma podridão encerrada por outra é fascinante. E quando há em meio a esse enredo uma tentativa de não sucumbir a nenhuma das duas – como foram os ensaios extasiantes e letais da turnê ‘This is It’ - , o apelo humano quadruplica. Mas o que fez de Michael Jackson o tipo de notícia destinada ao fim do telejornal não foi sua trajetória, mas seu repertório. E foi justamente ele que resenhistas e sabichões de toda sorte esqueceram de discutir. O sujeito lançou dez discos solo. Vendeu quilhões deles. E, mesmo assim, ninguem conseguiu dizer algo além de despojos como ‘depois do ‘Thriller’ nada prestava’ ou ‘a melhor fase é a dos Jackson 5’ ou ‘Janet Jackson: gostosa’.

A análise discográfica que se inicia abaixo e será continuada em diversos instantes acima será uma tentativa homérica, hercúlea e por que não michaeljacksônica de jogar algumas pazinhas de areia nessa ‘profunda cratera de coisas ralas’. Porque o sujeito pode não ter sido o gênio onisciente e imbatível que talvez achasse ser. Mas foi ele quem teve um funeral em um estádio lotado e com sorteio de ingressos. Desafio qualquer sabichão aí a também ter um.

DE PRIMEIRA


A obra: ‘Got to Be There’, primeiro disco solo de Michael Jackson. Gravada em 1971, obra traz composições de Bill Withers, Elliot Willensky, Four Tops, Carole King e Jimmie Thomas.

Nota: 9,22

Indicado para: qualquer um que queira que o filho metido a cantor cale a boca e vá fazer jornalismo ou culinária.

A crítica:

Alguns acham bonitinho, outros acham super fofinho, uns acham que é a manifestação máxima da Beleza em seu estado puro - seja lá o que for isso. Mas a verdade é que criança cantando é um saco. E ninguém precisa assistir ao circo de horrores de Raul Gil para comprovar isso. Basta ter um videoquê em casa e constatar que a única forma de suportar o instinto de puxar um 38 e disparar solenes tiros pra cima é sendo pai ou mãe ou avó ou tia da pequena sirene. Há, no entanto, algo que consegue a temerária proeza de ser ainda mais chato que moleques interpretando canções: um disco com moleques interpretando canções.

Em partículas do inferno como Balão Mágico, Sandy & Júnior e Jordy, o que se tem são registros de um exibicionismo meramente circense, executado apenas para que audientes impressionáveis se dobrem diante da precocidade de um ser humano pequeno – como o que acontecia diante de um espantoso Mozart aos 5 anos de idade. Em si, essas obras não agregam nada a nada - o que é mais característica do que necessariamente um defeito - e, como complemento, enterram a 6 mil palmos do chão qualquer tentativa do mini pintassilgo de se tornar um intérprete respeitável no futuro. É diante desse cenário apocalíptico que algo como ‘Got to be There’ adquire uma importância assustadora.

Quando lançada, a bolachinha deve ter sido uma bordoada na cara de muita gente - não na dos remanescentes da Klu Klux Klan, mas em todos que se mordiscavam por uma sombra na própria gravadora Motown. Ora, lá estava um moleque sorridente e confiante, usando boina na capa, metido a cantor. Mas, por são Marvin Gaye, what´s going on em suas canções? Arranjos de cordas imensos, meticulosas linhas de madeiras, sequências de baixo inspiradas, guitarras bem medidas, cravos, vocais de apoio? Por que esse tratamento de luxo, que fazia qualquer disco de Smokey Robinson ou Jackie Wilson soar feitos em quintais, a um dos moleques daquele fabricado Jackson 5?

Porque Berry Gordy, presidente da Motown, ansiava por pagar suas extravagâncias. E porque Berry Gordy, sem precisar de Raul Gil, sabia que: 1) havia encontrado uma pequena e extraordinária aberração 2) seu pequeno alienígena era superior a qualquer integrante de seu valioso elenco 3) devia fornecer a ele todas as condições aceitáveis e inaceitáveis para embalar aquele talento bruto em mega profissionalismo 4) para que o maior número de pessoas tivessem a mesma opinião que a sua em relação ao pivete, ele deveria municiar o trabalho de estréia com um repertório de alcance e beleza universais. E, então, eis a primeira contribuição de Michael Jackson para o mundo: ter protagonizado o primeiro disco aparentemente infantil que muitos adultos gostariam de ter gravado – uma façanha que nem o nosso herói, em sua fase pós-púbere, conseguiria superar.

INDESAFINÁVEL

‘Ain’t no sunshine’ é o primeiro indício de que o lançamento do moleque como prodígio solo não era aposta baixa. Os arranjos, apurados e cuidadosos, são a reunião de boa parte do que os músicos disponíveis para a Motown sabiam fazer de melhor. Tudo é elaborado com tanto mimo que não há como notar, na peça, o oportunismo de uma obra gravada às pressas e sem o consentimento total do patriarca dos Jackson, compadre Joe. E a versão não surpreende apenas por ser consideravelmente ‘complexa’ para quem terá uma criança ao centro: ela é a melhor versão gravada da composição. É muito melhor, por exemplo, que a versão de Bill Withers, seu próprio autor. E é melhor que a de Sting, que é pior ainda que a de Withers. Além disso, a constatação de que o culpado por isso não é mais do que um sujeitinho imberbe que nunca havia gravado um disco sozinho é séria, amiguinhos, muito séria.

A faixa seguinte é uma demonstração ainda maior de virtuosismo técnico e interpretativo. Tanto que não será uma tarefa muito dócil encontrar meia dúzia de cantores que consigam levar até o fim uma peça repleta de crueldades tonais como ‘I wanna be where you are’. E Miguelzinho parecia saber disso quando, mesmo antes dos pêlos pubianos, entregou-se para transformá-la em um blockbuster pré-disco music de força quase que marvingayeana. A linha vocal tem atalhos modais de dar estrabismo a uma Barbra Streisand? O moleque joga o arreio nelas. Há necessidade de agudos praticamente inalcançáveis e quase que somente perceptíveis para hamsters e furões? O guri o faz enquanto coça a virilha desinteressadamente. Precisa-se de variações e improvisos sobre o refrão? Nem precisa pedir. O pivete nos traz uma penca de idéias para que ninguém se lembre que a canção acabou há muito tempo. E como se não bastasse a interpretação ‘anormal’, a composição de T-Boy Ross e Leon Ware é uma irretocável peça de ouriversaria das canções românticas desligadas de afetação.

Já ‘Girl dont take you love from me’ é o tipo de peça que talvez ficasse ainda melhor na fase pré-luva-de-lantejoulas de Miguelzinho – mais pela elegância do que pela temática da letra. Mas e daí. Mesmo não fazendo parte da penca de arrasa-quarteirões que o álbum traz, a peça funciona. E em certo trecho perdido entre os refrões, estabelece o pequenino como um instrumento vivo e ‘indesafinável’: quem quiser que tente sustentar um dó por mais de 10 segundos com grau tão nulo de oscilação que faz a voz se confundir, em pouco tempo, com um sopro sintetizado.


JEITINHO PEQUENININHO

Essa mania de iniciar canções com falas, sejam declamações da própria letra, sejam apêndices complementares de uma tal ‘mensagem’, é uma tremenda chatice - ainda que não necessariamente desvie em 180 graus a atenção para o que acontece ao fundo. Mas ‘In Our Small Way’ não consegue ser estragada nem por isso. Talvez nem mesmo um dueto com Wanderléa seria capaz de trincar uma canção como essa. Não há nada de mais em sua harmonia, em suas linhas melódicas, em seus arranjos. Mas é assim mesmo, no seu jeitinho pequenininho, que ela é cativante, doce e feita sob medida para interpretações femininas. E o guri praticamente esgota as possibilidades da faixa, interagindo com maturidade assustadora com o coro do apoio e, pela enésima vez, brincando de ‘olha-como-eu alcanço-essa-nota-que-não-dá-pra-escrever-normalmente-em-partituras-de-tão-alta-que-é’.

E por falar em excentricidades, já houve gente por aí que declarou ser ‘Got Be There’ uma canção tão esquisita que não poderia ter sido cantada por ninguém menos singular que Michael Jackson. É claro que essa singularidade refere-se, ainda, à sua monstruosa versatilidade interpretativa e à sua sensibilidade auditiva inumana. E é preciso frisar que esse argumento de quem quer que seja consegue ser ainda mais ridículo que o inaceitável maiô dourado que o futuro ‘dono’ dos Beatles usaria mais tarde. ‘Got to be There’ é um dos tiros mais certeiros e inspirados do compositor Elliot Willensky. Uma preciosidade do cancioneiro black setentista. E ela é, isso sim, de execução vocal quase inviável para aventureiros. É por isso que uma Pitty não a canta. É por isso que um Badauí não a canta. É por isso que Alicia Keys, mesmo com todo o potencial, precisa ser multada severamente a cada tentativa de torná-la minimamente audível. E não se trata apenas da amplitude tonal. Em termos modais, a faixa comporta-se como as gravuras antigravidade de Escher: mesmo sobre um cenário hostil, é possível sentir a fluidez do movimento. Tradução: o cenário harmônico é labiríntico. Mas a linha vocal, conduzida com intensidade pelo protagonista, é o caminho que dá sentido ao ‘caos’.

‘WHAT THE FUCK YOU TWO IS DOING HERE’

Até aqui, ‘Got to be There’, o disco, revela-se uma assustadora coletânea de faixas de altíssimo valor marcadas por desempenhos humilhantes. Mas alguém teve a corajosa idéia de frear o fluxo com as murchas ‘Rockin Robin’ e ‘Maria’. É claro que a primeira, um rockão a la Little Richard de Jimmie Thomas, mostra um pouco da adaptabilidade do moleque em outros terrenos. Mas sua retidão e repetitividade destoa do que foi apresentado e arremessa o repertório pra cima em um momento que ninguem pediu. E se fosse para pedir alguma coisa, seria pelo surgimento de, no mínimo, outra ‘I wanna be where you are’. A escura ‘Maria’, então, talvez fizesse menos estrago melando o repertório dos The Four Tops, que a cometeram em um provável acesso de preguiça. Mas em uma obra como essa, é uma furiosa mordida na língua em pleno deleite do rodízio. Levada por um cravo em dois acordes, a peça soa apenas como a longa introdução de algo que parece nunca começar – e, quando finalmente o faz, já é tarde demais para que não se deseje, com certa pressa, que termine.

Entre essas duas minas, entretanto, há ‘Wings Of Love’, criação de uma não-tão-enigmática-assim ‘The Corporation’ – nada mais do que Berry Gordy e seus últimos parceiros de buraco do fim de semana mais próximo. Com sua atmosfera de melação cinquentista, a peça vinga a queda rumo à mesmice que a dupla antidinâmica acima ameaçava promover e dispara entre as mais belas baladas do disco. A interpretação de Michael aqui, por outro lado, pega o ouvinte no contrapé do costume por coisas mirabolantes e revela-se comedida. Mas ainda assim está longe de ser burocrática.

‘Love is here and now you’re gone’, por sua vez, é o tipo de canção que deveria ter sido duplicada no repertório, empurrando ‘Rock’n’Robin’ para algum disco ruim de Elton John. Todo o arranjo da faixa foi baseado na versão das Supremes. Mas, ao mesmo tempo, trabalhada para superá-la – o que foi alcançado. Pulsante e harmonicamente convincente, a peça é liderada por um Miguelzinho em firme timbre feminil e sem medo de levar umas boas palmadas da titia Diana Ross, claramente relegada a apenas alguem que ‘tambem’ interpretou a canção.

A peça anterior já seria um bom encerramento para a obra. Mas algum ser, provavelmente de sensibilidade extraterrena, achou que só valeria a pena se fosse excelente. E eis ‘You’ve Got a Friend’ na versão que Carole King nunca conseguiu arrancar de si mesma. Só que o mérito não se limita ao desempenho acima da média do intérprete central. Assim como todo o disco, a faixa é resultado de um esforço caro de reembalar canções alheias com arranjos e adornos inalcançáveis. Das cordas a la Paul Mauriat da introdução à condução fundamentada no baixo e na meia lua, tudo converge para estabelecer a faixa como o ponto alto da obra – e no local em que o ápice geralmente mais causa impacto: no fim.

Há muitas especulações acerca da pressa e do desespero de cunho pecuniário que envolveram ‘Got to be There, já que, mesmo sendo uma jóia, o moleque era um investimento sem sustentabilidade (a fase voz-de-arara-com-febre que acomete todos os pivetes na puberdade o aguardava dali a prováveis poucas horas para interromper seu registro feminino). Mas essa constatação de correria desenfreada apenas valoriza ainda mais o passe do disco. Porque é de se aplaudir que, de uma só vez, Berry Gordy e sua patota tenham concebido um clássico do trabalho coletivo - o mérito é tão do protagonista do álbum quanto de quem decidiu cobri-lo de louros - , um clássico da Motown de todos os tempos e, ainda, o lançamento definitivo do último gênio em miniatura que se viu por aí.

08 outubro 2009

PRÊMIO ‘COCÔMENTÁRIO DO ANO’ - I


Muito bem baixinhos, hoje estrearemos uma nova seção neste antro de maledicências. Trata-se do prêmio ‘Cocômentário do Ano’, destinado às reações mais notavelmente esquizofrênicas e apaixonadas diante dessas ‘humildes’ resenhas. Nosso primeiro candidato é um rapaz (?) tímido chamado Anônimo, que tratou de deixar a marca de sua patinha na resenha ‘O Homem que Não Estava Lá’ sobre o indigerível ‘À Flor da Pele’, de João Moura. Leiam. Volto depois (obrigado, R. Azevedo).

"É impressionante o quanto aqueles que menos sabem, se arvorarem a tecer criticas horrendas e asquerosas contra simples mortais que apenas buscam um lugar em seu reduzido universo nordestinado. As elites sempre se pautaram na leveza da vida fácil, às custas dos esforços dos mais humildes, e, quando um destes intenta alçar vôos mais altos, é certo que surgirá um deles a subjulgar o talento popular e se arvorar a sabedor dos caminhos que conduzem à luz. Pequenos de espírito são os que sobrevivem do sangue e suor alheios, como os mais perfeitos parasitas, como este crítico, que beira a imbecilidade para atacar uma obra de que deveria sentir orgulho. Isto por várias razões, más ao invés, prefere agradar aos "mentes vazias" que ostentam o glamour de uma sociedade em abissal decadência. Critique. Critique sempre. Malhe o dom dos outros, pois a você, senhor crítico, foi reservado pelo universo a gerar os fatos que deleitaram os donos da corte, da qual vossa pessoa é, senão, o elegante bôbo. Felicidades na medida do seu merecimento".

AGORA EU.

Tenho alguma desconfiança bem fundamentada acerca da identidade de quem escreveu esta pérola subromântica acima. Talvez tenha sido alguem que, depois de ter lido a orelha de alguma obra de Eça de Queiroz, tenha achado tudo muito lindo e decidido brincar de adivinhar o significado de algumas palavras e o posicionamento de algumas vírgulas. Mas lá no fundo mesmo, já resvalando no meu tédio - como faço em quaisquer comentários desse naipe que me aparecem por aqui -, a identidade deste incomparável gênio das letras não me interessa. Mesmo assim, palmas. Muitas palmas para o sr. Anônimo. Porque eis que, por trás de sua retórica machadiana (de seu Machado, simpático vendedor de inhame das feiras de sexta daqui perto), nosso bardo atingiu um feito tão inacreditável que se tornou muito difícil a recomendável tarefa de ignorá-lo: conseguiu ser mais entediante que o próprio disco de João Moura.

Comecemos pela classificação do artista em questão como um arauto da humildade. Ou como um pobre operário artístico. Ou como um comedor de PF dos teatros. Ou como um bravo gari de casas de espetáculo. Coitadinho. Brasileiros e brasileiras: João Moura está pedindo socorro. A falta de patrocínio e de infraestrutura afetou sua inventividade para compor e arranjar e, por isso, nosso herói não alcançou as ‘condições ideais’ para gravar o seu disquinho. Vamos nos sensibilizar e adquirir imediatamente toda sua obra antes que ele comece a vendê-la nos ônibus - para completo desespero dos próprios usuários e da concorrência, formada por vendedores de canetas, adesivos e chicletes. Seguremos então nas mãos de Deus. E vamos... para o próximo parágrafo.

Ora, fazer carinha de choro não dá mais graça, pois a luta de um artista pelo seu reconhecimento não é uma qualidade individual de João Moura ou de qualquer outro. É um aspecto inerente à tortuosa trajetória (bocejo) de qualquer um que se arrisque a ganhar seu pão - ou seu farelo - tocando, cantando, compondo, dançando, romanceando, poetando ou filmando por aí (coma sonífero). O uso da dificuldade como argumento é a admissão da incapacidade de ser versátil e criativo – porque as dificuldades nunca impediram a inventividade, isso quando não a intensifica – e, por extensão, é a admissão da falência da própria obra.

Uma acusação engraçada é a de que a crítica é um exercício de quem se acha conhecedor dos ‘caminhos da luz’. Caminho da luz, pra mim, é a estradinha de barro que vai dar na Energisa, a empresa que administra a rede elétrica daqui. Isso porque não existem fórmulas ditadas por Deus para uma obra de arte perfeita. E essa é a grande graça da Arte. E é o que nos deixará versando e brincando de entender dela até os dinossauros voltarem de seu já demorado passeio extradimensional. Na verdade, talvez o sr Anônimo tenha confundido ‘pregação’ com ‘opinião’.

Não acabou. Ainda há o indispensável ‘tem pena d’eu’, que assoma vez ou outra em discursos do tipo acima qual bravios ‘marinheiros’ em descarga mal dada. Ao frisar expressões como ‘apenas buscam um lugar em seu reduzido universo nordestinado’ e ‘obra de que deveria sentir orgulho’, nosso Augusto dos Anjos está argumentando que, ‘apesar de ser nordestino e viver no salci-fufu do mundo, João Moura conseguiu ser músico e compositor, e isso é um mérito que se basta’. Não é não. Ora, o Nordeste é de fato o fim da picada. É - ainda - o lixão de um país que, por sua vez, é um aterro sanitário. Mas a fome, a cólera e a miséria, ainda que possam atrapalhar a construção daquele hospital, o financiamento daquele projeto ou o leite daquelas criancinhas, não justificam a anemia cultural. Dois pontos aqui: na Arte - com algumas reservas ao dispendioso Cinema -, não existem justificativas socioeconômicas para quem é apenas pura e simplesmente ruim.

O que é ainda mais temerário é que a linha argumentativa do coitadismo é compartilhada por uma patota numerosa que realmente se leva a sério. Isso significa que aqueles que se referem a si mesmos como artistas ‘apesar’ de nordestinos ou habitantes de um ‘reduzido universo nordestinado’ também se auto estabelecem paladinos de uma tal identidade cultural local (que rima com pega no meu p...). Mas esse assunto é tão chato e circular que nunca-na-história-deste-país alguem chegou a algum lugar, ganhou dinheiro ou sequer conquistou alguma garota com ele. Já estou suando frio para encerrar logo toda essa verborréia.

Então que se diga de uma vez por todas que: o atributo ‘humildade’ não interessa, nunca interessou e nunca interessará a quem quer que venha a analisar um trabalho artístico qualquer com o discernimento um pouco maior que o de uma galinha. Arrogante ou simples, irascível ou maleável, machão ou baitola, afetado ou cool, conservador ou relativista, experimental ou nostálgico, o protagonista tem que mostrar a que veio dentro dos malditos 60 minutos que lhe são disponibilizados na mídia de vinil ou de acrílico. É lá que ele tem de se justificar. E já está tarde para reforçar que, ao se gravar um disco, é preciso trocar essa humildade broxa por coragem e vergonha na cara, pois ‘imortalizar-se’ em uma gravação é coisa de quem está colocando o lindo rostinho a prêmio. Quem sente pena de si mesmo que não cometa o desgraçado erro de disseminar-se, poupando o mundo de sua autocomiseração, de sua preguiça e de sua miséria criativa.

Quem não consegue compreender que a resenha estética de um disco precisa ignorar o processo de manufatura para se concentrar no produto não sabe em que se meteu. Está perdendo tempo no meio artístico, quando poderia, por exemplo, reforçar a venda de inhames em feiras populares afora. É o que se recomenda ao nosso amigo acima, uma vez que é preciso fazer um esforço mastodôntico para arrancar de suas poucas linhas algum argumento válido. Nem mesmo o mote de que a ‘sociedade está em abissal decadência’ é algo digno de reflexão. Porque a sociedade não está em decadência. A sociedade, ao contrário, já se tornou um imenso show de calouros, onde gênios e aberrações têm espaço garantido. E a maior prova disso é alguem como João Moura ter conseguido gravar um disco - apesar não de ser nordestino, mas de ser detentor de uma inesgotável capacidade de não ter absolutamente nada para mostrar. Isso, amiguinhos, é ser feliz muito acima de seu merecimento.

25 setembro 2009

FORÇA FAMILIAR


A obra:
Justificar
‘Algum Alguém’, de Lula Ribeiro. Lançada em 2006 e gravada no Rio de Janeiro, obra contou com Luiz Meira no violão, Claudio Infante e Marcos Kinder na bateria, Arthur Maia no baixo e na produção.

Indicado para: quem acha que Caetano Veloso, como compositor, tem sido um ótimo pai de família.

Nota: 8, 86

A crítica:

Lula Ribeiro foi mais longe que muita gente, mas jamais conseguiu emplacar em lugar nenhum. E a razão para seu fracasso de propagação é facílima de constatar: trata-se, claramente, inexoravelmente e inevitavelmente, da escandalosa semelhança timbrística de sua voz com a de Caetano Veloso. Está aí um negócio extra-científico. Magnificamente constrangedor. Doidamente infeliz. Espetacularmente deprimente. E se esse predicado genético o ajudou em algum momento de sua carreira, hoje contribui para que o autor jamais consiga evitar que seu trabalho, mesmo autoral, tenha a inscrição ‘cover’ tatuada na testa imediatamente. Essa situação reflete um caso pouco comum de inversão de valores referenciais. Isso quer dizer que, se antes Ribeiro tinha Veloso como herói e agulha de sua bússola, hoje o tem como sua grande sina; sua âncora de vinte e sete toneladas; sua manada de hipopótamos dormindo no meio da estrada; sua Brasília com problema no radiador. Desse jeito, Ribeiro amarga a condição de ser a cópia que o camelô não quis. Ou pior: de ser a Cláudia Leitte que não deu certo.

Só que nada disso impediu o autor-intérprete de levar ainda mais a sério os elementos que compõem a obra de seu mestre e ir muito além da provocação de uma curiosidade mórbida na audiência. Ainda que não mude a vida de ninguém, ‘Algum Alguém’ é um dos mais brilhantes filhotes da estética velosiana lançados por aí. E é o tipo de disco que, inclusive, lembra o quanto o ex-tropicalista esqueceu de fazer o papel de si mesmo para virar um babão de João Gilberto muito mais interessado em revestir lixo de algum valor intelectual do que revestir a si mesmo de um pouco de vergonha. Se para alguns Caetano Veloso acabou, Lula Ribeiro sugere o que aconteceria se, no terreno harmônico-melódico-rítmico, o baiano cabeçudo não tivesse virado as costas para o próprio legado. E é sempre importante destacar esse trinômio com quinze hífens acima, uma vez que, no quesito letra, ‘Algum Alguém’ está no calabouço do porão do chão em que o filho de dona Canô pisa. Assim sendo, a saúde da estilística caetânica se resume a duas atitudes: Veloso quietinho sem violão; Ribeiro devidamente ‘iletrado’ entoando ‘lá-lá-lás’; e a platéia roendo unha, esperando que cria e criatura se encontrem, se somem e deixem tudo ficar Odara.

CAMINHANDO COM O VENTO

O início do disco é que é um dilema. Mesmo longe de ser um desastre, a faixa-título não deixa de transmitir incômodo e estranheza como abertura. É bem certo que, em alguns trechos, ‘Algum Alguém’ até se justifica como entrada. Mas quando o negócio se entorta para um estudo de reggae com um sublinhar de bandolins de vez em quando, um penico é arremessado na parede. A canção perde força, se superficializa e dilui o que havia de supreendente na harmonia e na melodia com uma irreverência inadequada e meio pateta. Diante dessa realidade, é soado um alerta geral ao ouvido alheio diante de tudo o que se virá a seguir.

Só que Ribeiro parece não estar nem aí, e desafia o senso de defesa que a primeira faixa encoraja em qualquer um com algo chamado ‘Te Amo Aracaju’. Com um título de campanha publicitária de prefeitura como esse, é impossível estancar a desconfiança e não temer que tudo descambe, sem pena, para uma lista infindável de endereços enfiados em imagens poéticas tão profundas quanto um rascunho. Sem falar na solução estilística geralmente empregada para esse fim, que sempre converte o que deveria ser uma homenagem em frio assassinato do tempo e da paciência de cidadãos inocentes. Mas essa ‘Te Amo Aracaju’, para alívio de todos, é uma canção e tanto. É pulsante. É ousada. É excelentemente arranjada. E além de ser mais caetânica do que muitas coisas que o próprio Caetano fez ultimamente, dá um abraço nos bons momentos de Djavan. Tudo é tão maduro que é simplesmente incompreensível a decisão de Ribeiro de acrescentar uma estúpida e poluidora enumeração falada de bairros e lugarejos da capital lá pelo fim – como preconiza a estética ‘cajueiro-dos-papagaios’. O que conforta é que, exatamente por tudo ser maduro, não há como considerar essa ‘jequice soberanóide’ como algo significativamente prejudicial a tudo.

SEM LENÇO E COM DOCUMENTO

É simplesmente assustador como a execução de ‘Congênito’, de Luiz Melodia, remete ao tal do ex-ex-marido de Paula Lavigne. Está tudo lá: flertes com fusion nos estrofes iniciais, refrão grudento, batuque paralelo à ritmia convencional do pop. Trata-se simplesmente da versão de Veloso para a peça se o adestrador do Leãozinho fosse submetido a uma produção mais modernosa e menos violonística. Já ‘O Amor Presente’, autoral, é o casamento do viés romântico do amiguinho de Gilberto Gil com um jazz classudo e afastado da assepsia harmônica graças à escuridão das intervenções pianísticas. É peça feita por quem sabe o que é elegância não do ponto de vista do discursinho fuleiro, mas do ponto de vista prático.

Já ‘Entender’ entra arrasadora nos arranjos e abraça para junto de si todas as expectativas. Mas não se desenvolve tanto como se espera. As evoluções são comedidas, as estruturas não se destacam muito e, no fim das contas, coisa alguma sai do lugar. Mesmo assim, segue como uma aula de arranjos e timbrística. ‘Milagre’, por sua vez, faz jus ao título e realmente traz dentro de si uma extraordinária fatalidade: seu anonimato. Ágil, moderna, extremamente radiofônica e, principalmente, bem construída, uma faixa como essa tem mais cara de hit do que muitas flatulências de produtor que se convertem em próximo sucesso antes que alguém tenha excretado o anterior.

ELE SEMPRE FOI À ESCOLA

Conduzida por uma equilibrada e sensível levada jazzística, ‘Pra Lua’ sem dúvida alguma figuraria entre as três amostras utilizadas por Ribeiro e seu parceiro Arthur Maia na hipotética oficina ‘Arranjos de disco: primeiro módulo’. É bem verdade que, se o romantismo boboca e sub-bossa-novista do binômio natureza-metáfora jogar um toco de pau naquela moita ali, a letra dessa faixa corre e traz o troço na boca abanando o rabinho. Mas também é necessário ter seis litros de bílis no sangue para considerar esse aspecto como algo relevante diante da riqueza e profundidade do que é apresentado. E por sua atmosfera arrastada e distante que remete a algo que se esvai, ‘Pra lua’ estaria mais à vontade como cartucho de despedida do trabalho.

O dever de casa que papai Veloso passou é feito com esmero, notas de rodapé e bibliografia, mantendo a regularidade das boas idéias. Assim, o trabalho prossegue com a obscura, tribal e semi-flamenca ‘Procura-se’; com a versão intimista da simplória ‘Pai e Mãe’, de Gilberto Gil; com a dançante, recortada e escrachada ‘Dama Diet’; com a impressionantemente velosiana e memorável ‘Não há mais nobreza’; e com o encerramento ainda mais caetânico da percussiva e aérea ‘Vem bonita’.

Ninguém gosta de ser cópia de nada. Diante da constatação de que seu trabalho é filhote do que quer que seja, um criador é capaz de xingar a própria mãe para defender suas intenções de independência ou mesmo de originalidade. Mas é necessário ser uma ameba ambulante para estabelecer ‘Algum Alguém’ como um trabalho autônomo. Enquanto Caetano Veloso for vivo no imaginário do cancioneiro tupiniquim, Lula Ribeiro será uma de suas sombras imediatas. Só que da mesma forma que o mestre é o eclipse que obscurece o aprendiz, também é a fonte de suas boas idéias – o que impede que Ribeiro se converta em uma ‘simulação’ desnecessária, brochante e esquecível. Assim, mesmo caminhando sob o sol, ele é um algum alguém.


10 setembro 2009

COM TODAS AS CONTRA INDICAÇÕES



‘A Voz do Sentimento’, de João Moura. Gravada em 1999, obra contou com Moura nos pianos e teclados, Evandro Shiruder na guitarra e no violão, Moabe Hasem no baixo, Anderson Batista na bateria, Pedrinho Mendonça na percussão e Márcio Mercena nos teclados adicionais.


Nota: 4,13

Indicado para:
quem corre emocionado pro banheiro a cada vez que a Ana Maria Braga termina de ler suas mensagens matinais.

TRILHA: ‘A FORÇA DO CORAÇÃO’

A inspiração foi pro ralo? Não sabe mais o que dizer? Seccionou o vaso sanguíneo da inventividade? Está desesperado para pegar algumas gatinhas? ‘Vem pra cá, vem pra cá, vem pra cá’, porque seus problemas acabaram. Chegou ‘Poetex’, a primeira emulsão destinada à falta desesperante de boas idéias em qualquer manifestação artística. Com apenas uma colherada, Poetex garante que você imagine e conceba, em questão de minutos, coisinhas bonitinhas e imediatamente assimiláveis para a platéia média. Se você é diretor de cinema, corra: elabore roteiros com muita troca de fluidos e situações absurdas para um público de australopitecos com uma simples dose. Se você é cronista, não perca tempo: impressione sua meia patota de toupeiras pré-românticas e sub-literatas com um textinho afetadinho e perca sua vontade de quebrar bares como um vândalo. Se você é compositor, se apresse: grave um disquinho instrumental com títulos açucarados e pecinhas amargas de ouvir com uma simples engolida. Nunca foi tão fácil tratar o público como um bando de imbecis. Peça já o seu Poetex. Libere o ‘poeteiro’ que existe em você.

Mesmo que a gororoba acima não exista – pois é, ‘poeteiro’, largue o telefone –, muita gente por aí ficaria muito bem na telinha vestindo uma camisa com os dizeres ‘Tomei’ em um comercial. Muita gente, menos João Moura. Ele, não. E não pela hipotética recusa do compositor em participar da divulgação, mas porque, graças a esse ‘A Voz do Sentimento’, seu nome já estaria na bula ao lado do efeito colateral por doses cavalares. Sem muitos rodeios, essa obra é uma tigela de ki-suco com cinco frascos de adoçante boiando abertos. Um cubo maciço de açúcar do tamanho de um armário vagando a esmo sobre uma piscina de mel.

Doeu no baço? Ainda não é suficiente. Com seu sub-romantismo e sua superficialidade estilística que quase nunca sai de fórmulas rasteiras e primárias de maciez sonora, ‘A Voz do Sentimento’ é a obra ideal para quem se emociona com comerciais de fralda. Mas o fator mais escandaloso não é nem seu caráter excessivamente, digamos, ‘apolíneo’, mas o fato de toda uma banda girar em torno de um solista que não sola e de um protagonista que não toma a frente. Mesmo crescendo de expressão no final, o álbum não consegue se redimir dos equívocos mergulhados até o pescoço na melação e no insensível desperdício de uma banda dedicada. Definitivamente, não é necessário oferecer remediozinho pra quem já é xarope.

HIPERGLICEMIA PURA

A resistência do sistema digestivo alheio é seriamente experimentada logo no início. Cansativa, desinteressante e marcada por uma bateria sempre suspensa, ‘Em Sintonia com o Sol’ não se desenvolve nunca. Nada cresce, nada se desenvolve, nada se transforma. E tudo transmite a impressão de ser apenas uma introdução esticada que gira em torno de si mesma com burocracia e hesitação, como se prenunciasse algo superior. Mas após quase três minutos, o que se percebe como algo indubitavelmente superior à peça é, exatamente, o silêncio. A seguir, o artificialismo escancarado dos timbres de videokê de ‘A Luz da Lua’ irrita, mas não impede que a faixa seja superior à anterior.

Infelizmente, porém, uma constatação como essa não ajuda muito. Se no início a peça flerta com o ambiente pretensamente onírico do New Age, no meio mergulha na rasteirice, na vacância e na indecisão estética típicas de trilhas de recepção de festa. Tudo parece ter sido construído com tanto desinteresse e mecanicidade que harmonia e melodia, mesmo casando com rigidez matemática, competem uma com a outra para ver quem chama menos atenção. O resultado é claro: empate técnico, pois a canção não tem um único trecho digno de lembrança.

Na seguinte ‘Aos meus irmãos’, os temas são ainda mais trabalhados que os de suas antecessoras. Mas é simplesmente impressionante como Moura não consegue esconder a descomunal força que faz para brincar de ‘virtuose’ em sua própria composição. Sublinhada por temas que parecem emperrar e por trechos que soam como se executados diante de uma partitura mal lida, ‘Aos meus irmãos’ é a peça que enterra o autor de uma vez por todas como intérprete pianístico. Em ‘Canção pela paz’, por sua vez, o título extrassacarose pode até anunciar uma sessão gratuita de sono comatoso. Mas eis que a versão chapada da banda americana Kansas entra no estúdio, desce a mão nos instrumentos e acrescenta algum valor à ingenuidade da pecinha, elevando-a mesmo que minimamente. De forma contraditória, é a levada ágil que descansa a audição alheia da ultragarapa inicial, ainda que sublinhada por um tema apenas esforçado sobre uma harmonia apenas simpática. Não é nada que mereça ser regravado pela sinfônica de Londres, mas leva o troféu ‘Ufa’ por se afastar com alguma força do material sofrível que compõe grande parte do trabalho.

DEIXA O MESTRE

Até aqui, já se sabe que Moura aplica o rock apenas precariamente, ignora o jazz, vira as costas para o fusion, faz careta para trilhas sonoras e dá uma lambidinha no New Age – não no de um Yanni ou de um Corciolli, mas nos que vêm acoplados a algum livro bufão de autoajuda. Diante disso, não há surpresa alguma quando se constata que ‘Minha terra’ é um breganejo instrumental – e com uma participação de coral de crianças para deixar titio Milton Nascimento sorrindo. Mas ainda mais absurdo que o interesse que Milton Nascimento poderia ter por um disco desses é o coeficiente de melação da faixa, nunca inferior ao nível ‘i’ - de ‘insuportável’. E é nessa peça que estão relacionados quase todos os elementos constituintes do impraticável ‘Manual João Moura’ de composição: linha melódica transparente de tão pálida, arranjos entorpecentes de tão sonolentos e harmonia bestialmente previsível. Em ‘Ontem garotos’, porém, o oferecimento de tal chorume se restringe ao tema impreciso do início. Ao longo da faixa, os arranjos vocais ajudam consideravelmente a erguê-la da pieguice tecladística, ainda que fiquem isolados pelo amontoado de estruturas que pululam como se fossem idéias extraordinárias.

A partir desse ponto, ‘A Voz do Sentimento’ resvala na superfície da membrana da ameba que rasteja sobre a relevância. A regra que rege todas as faixas do bloco final, porém, é a inconsistência. Não há uma única peça que se encerre sem algum excesso ou alguma falta. A faixa-título, por exemplo, se inicia bem e consegue se manter em nível não tosco por até um minuto. Só que, lá pelo meio, o desencontro entre piano e linhas de coral simplesmente não passa de uma soma a esmo de um background feito às pressas com um pianinho apenas esforçado – junção que, no fim das contas, serve apenas para a completa anulação dos dois elementos em si mesmos. ‘Cabelos Soltos ao Vento’ é outra faixa que se abre com idéias razoáveis, mas não cresce a ponto de sair de suas três ou quatro notas ou do arroz com purê da linha melódica. Ao menos se deve prestar o devido reconhecimento à corajosíssima atitude de Moura de permitir a entrada de um violão solo, correndo assim o risco de ser sumariamente engolido e ofuscado. Mas o violonista, comedido, vai ficando quietinho e deixando o ‘mestre’ trabalhar.

‘Na mira do teu olhar’, por sua vez, até assusta pelo intróito levemente virtuosístico nos arranjos, mas logo descamba para a retidão. Já ‘A Voz Interior’, essa sim absolutamente entregue ao New Age, revela-se um interessante exercício timbrístico, onde a força atmosférica consegue maquiar o raquitismo inventivo de suas bases. Mas a chatíssima e purgante ‘Um velho viajante’ e a bitolada e fundada sem pudor sobre clichês baratos ‘A força do coração’ são duas baleias azuis prenhes firmemente acorrentadas em qualquer tentativa de alçada estética do trabalho, predominantemente ralo.

Não é necessário esforço ou ingestão de energético nenhum para gravar um disquinho bonitinho e piegas. Basta esquecer que o mundo girou. Ou considerar a platéia um bando de chimpanzés. Ou simplesmente não ter aprendido praticamente nada que valha a pena ser mostrado. Mas Moura não se deu apenas ao luxo de não precisar tomar ‘Poetex’. Sua dieta durante as gravações de ‘A Voz do Sentimento’ também envolveu a abstinência de um comprimido que, geralmente, apodrece em atacado: ‘Vergonhol’.

19 agosto 2009

SAMBAIÃO DO GRUPO DOIDO



A obra:
‘Naurêa apresenta: o Sambaião’, da Naurêa, disco lançado em 2006. Banda é Abrãao Gonzaga nas guitarras, Alex Sant’Anna no triângulo e nos vocais, Aragão no cavaquinho, Betinho Caixa D’água na percussão, Léo Airplane no acordeon, Márcio de Dona Litinha na zabumba e nos vocais e Patricktor4 nos pandeiros e surdo.


A Nota: 3,93

Indicado para: fãs da Cláudia Leitte. Ou para qualquer um que está se lixando para o que é originalidade ou repetição e quer mais é sentir o tambor, beijar na boca e ser feliz daqui pra frente. Pra sempre.

A crítica:

Os simpáticos à humildade que se desesperem: pretensão e presunção são forças-motrizes mais do que nobres para a criação artística. E é pouco contestável que, ao lado da cuidadosa lerdeza e da exigência semi-psicopata, os dois elementos citados compõem os ingredientes fundamentais para a concepção de uma obra que queira estar entre o minimamente suportável e o estupendamente genial. Ninguém sabe se lentidão e intransigência nas decisões foram a tônica das gravações deste trabalho – além, é claro, da própria Naurêa. Mas ninguém com o jardim de infância concluído terá a menor dúvida de que o álbum pode ser estabelecido como presunçoso antes mesmo de ser executado. Isso porque, a não ser sob a forma de piada, algo intitulado ‘Naurêa apresenta: o Sambaião’ está muito longe de ser simples: trata-se de ousadíssima proposição de algo novo. É nessa hora que, perplexa e absorta, a platéia bate palmas só de ver o pano fechado. Mas eis que a desgraça desse espetáculo é, pasmem, sua própria apresentação. Por quê? Porque esse disco é um saco.

Mais: um fracasso. É o pisoteamento das expectativas por uma manada de elefantes – montados por hipopótamos prenhes. É a experiência anulada e negada como queda de energia antes do anúncio do assassino. É a pulverização da paciência em micro-partículas. E o é justamente por não converter a imensa e saudável presunção da capa e do título em um repertório com substância, inventividade e força suficientes para alicerçar o tal do novo ‘caminho’ proposto. É importante reconhecer que há algo que de fato parece fazer força para surgir de toda a massa de tons e superfícies gerida pela Naurêa. Mas foi provado que não será da cloaca do septeto que sairá esse ovo. Ao término de quinze faixas repletas de tum-tum-tums, toin-toins, pi-pi-pis, fon-fon-fons e letras com gracinhas pop de pouquíssimo ou nenhum efeito, a única reação possível é aquela em que o sujeito olha para um lado, olha para o outro, toma consciência do tempo que perdeu e resume todo seu entendimento a um perdigoto simultaneamente interrogativo e exclamativo de cortante poder de síntese: ‘sim, e daí?!’

CATARRO

Entre os atributos pouco discutíveis da Naurêa nesse trabalho está aquele que é apresentado logo na primeira faixa: pressa em frustrar. Peculiarmente irritante, ‘Compay Segundo’ é tão convidativa na entrada quanto uma sopa fria de quiabo. É sempre válido destacar que isso não tem nada a ver com o pretenso ecletismo da canção, que brinca de amarelinha em diversas convenções já sepultadas com a denominação ‘brega’ tatuada na testa. Até porque essa recorrência, na realidade, é o único recurso interessante da faixa, que se equilibra com muita tensão entre estudo irreverente e lambada de quintal. Mas é simplesmente inacreditável a insistência no pauperismo melódico e a esquizofrênica repetição do verso ‘eu quero’ até a enxaqueca do mais equilibrado ermitão. Depois disso, o único projeto seguramente mais pretensioso que o disco é o exercício de continuar escutando-o.

A coragem é logo compensada com a válida ‘Sexta-feira’. Apesar da repetição abusiva do tema – que não tem lá essa força toda para ser explorado até o ribossomo, como algo merecedor de reforço –, é muito difícil deixar de notar a inteligência dos arranjos. Mas é brutalmente covarde o dueto entre Silvério Pessoa e Alex Sant’Anna. Não tanto pela interpretação do pernambucano, que faz o arroz com feijão e se esforça apenas para não atrapalhar, mas pela quase sempre péssima performance do outro. Sem conseguir sustentar um único e simples fraseado sem derrapar ou inspirar pigarro em quem quer que seja, Sant’Anna demonstra ser o pesadelo-mor dos otorrinolaringologistas – desnecessário citar professores de canto.

ISSO, AQUILO, AQUILO OUTRO DE NOVO

Já em ‘Dona Lalinha’ é que se começa a perceber a obsessão da Naurêa pelo repeteco frasal. Alguém levantou o braço querendo uma demonstração. Então, vejamos: em uma, temos ‘eu quero ser isso, eu quero ser aquilo’; em outra temos ‘minha vida é isso, minha vida é aquilo’; em uma terceira constam um punhado de ‘a fome é isso, a fome é aquilo’; em uma quarta puseram ‘me diga se é isso, me diga se é aquilo’. Na burocrática ‘Dona Lalinha’, a doentia recorrência papagueia uma mão cheia de ‘amar é isso, amar é aquilo’, dando início ao abuso de um recurso que, se é simpático na primeira vez, vira pura pentelhação formulaica e metafórica na vigésima terceira. Ora: se o assunto acabou, é melhor aproveitar a linha melódica com um assobio. ‘Álcool ou Acetona’, por sua vez, funcionaria melhor na entrada do que a débil ‘Compay Segundo’. Irreverente, intensa e levemente obscura, a faixa exala a convocação. Mas é o tipo de coisa mais fácil de se agüentar em apresentações ao vivo – onde há zilhões de estímulos visuais disfarçando a duração desnecessária das faixas – do que na apreciação introspectiva de um disco.

SIM, CADÊ?

Até aqui, assoma de vez um questionamento que não consegue se segurar por muito tempo: mas que diabos é o Sambaião? Se for a convivência da sanfona com o cavaquinho, não é lá muita coisa, já que o segundo tem presença tímida demais para ter relevância no mosaico percussivo. Se for a convivência do pandeiro com a zabumba, a pertinência é ainda menor, já que o que realmente doma tudo é a ritmia forrozeira do primeiro. A única peça que ensaia se aproximar da proposta de bater samba e baião no liquidificador é a teatral ‘João do Valle’, que sustenta a melodia de forró com uma batucada miscigenada e levemente indecisa.

É assim que nada de novo é identificado na péssima ‘Novena de São Bill Gates’ – prova de como até hoje ninguém no cancioneiro nacional conseguiu contextualizar de forma inteligente os novos tempos – nem na curiosa mas estranhamente socialóide ‘A Fome’; nem na apenas genérica ‘Vc Toda’; nem na doidice desinteressante de ‘Genival Lacerda’; nem na cansativa ‘Luiz não morreu’, absolutamente feita em cima de convenções desgastadas. Por outro lado, não é preciso esforço para descobrir certo valor na instrumental ‘Hoje só amanhã’, simpático estudo que casa choro com Caribe, e na rude e curiosamente arranjada ‘Dengo’. O prêmio ‘desperdício de ouro’, porém, vai para ‘Dorival Caymmi’, que, apesar do início promissor, não parece ter sido realizada com o mesmo excesso de ponderação com que o homenageado tratava suas criações, e peca pela insistência esquizofrênica em uma única estrutura – isso para não falar na insuportável interpretação de certo vocalista.

O fracasso da Naurêa nesse trabalho é ainda mais catastrófico quando se vislumbra sua proposta e todo o complexo de grandeza a ela inerente. Se o lançamento de uma obra como essa coincide com o nascimento do próprio Sambaião, quinze faixas depois já temos seu sepultamento – e essa é a perspectiva otimista. A realista é a que vislumbra que não aconteceu absolutamente nada, e tamanha ‘novena’ se resumiu a um bando de sujeitos batendo em peles com alguma noção percussiva, pouquíssima noção harmônica e nenhuma noção de como lidar com a própria vontade de transgredir. Apesar disso, ‘Apresenta o Sambaião’ é um raro espetáculo de aplausos garantidos: na entrada, celebra-se sua presunção; na saída, seu fim – pois é junto com ele que todo o sofrimento, definitivamente, acaba.