18 novembro 2008

BLOCO DO 'SOU' SOZINHO


A obra:

‘Sou’, de Marcelo Camelo. Lançada em 2008, obra contou com a participação de Mallu Magalhães, Clara Sverner e do grupo Hurtmold, que contribuiu como banda base.

A crítica:

Indicado para: quem decorou o ‘4’ do Los Hermanos

Nota: 7,97

‘Ai, será que vai parecer com Los Hermanos?’ ‘Ai, será que vai ser o quinto disco do Los Hermanos?’ ‘Ai, será que vai ser tão bom quanto Los Hermanos?’ Treze em cada dez pessoas se perguntaram sobre o potencial parentesco desse disco com o repertório da sepultada banda carioca. E quanta besteira por metro quadrado. Quanta jequice. Quanto excesso de pudor diante de obras anteriores. Não é preciso nem ter muito ânimo mental para desvendar essas inacreditáveis charadas, pois a resposta está riscada à sangue nesse trabalho: é claro que ‘Sou’ parece Los Hermanos. É claro que trata-se do quinto disco dos Los Hermanos. É claro que tudo pretende se levantar e partir do mesmo lugar em que o quarteto caiu e morreu. Por quê? Porque Camelo é o Los Hermanos.

Quem se levantou aí e disse que não? Põe aquele chapéu em que está escrito ‘Bocó’, vai pr’aquele canto ali e repete mil vezes o refrão de ‘Ana Júlia’ – mas para si mesmo. Prestemos mais atenção, por favor, e admitamos que todo o aparato estético da banda partiu da cabeça de Camelo. Acompanhou sua evolução. Brotou sobre sua ingenuidade. E se expandiu com a bandeira de sua posterior genialidade. Rodrigo Amarante, a outra cabeça pensante do grupo, era justamente o discípulo mais original e ousado das investidas do compositor principal. E até ensaiou uma síndrome de George Harrison no último trabalho do quarteto, tão fulminante que foi seu crescimento qualitativo. Mas não houve tempo para que a banda se encerrasse como soma de duas escolas diferenciadas e independentes de criação. Camelo firmou-se como o Jimmy Page da coisa toda, levando embaixo do braço todas as planilhas e cálculos que dão sustentação ao rock (?) sem sub-denominação da banda carioca.

Por isso não há surpresa alguma ao se constatar que ‘Sou’ é sim um diabo d’um disco do Los Hermanos, mas um disco do Los Hermanos feito sem pressão, sem ansiedade, sem muito palpite externo e com alguma preguiça. É também irregular na inspiração das canções, experimental sem terrorismo e marcado por arroubos tão violentos de introspecção que chegam a abraçar o silêncio - atributos que o aproximam do disco derradeiro do quarteto. ‘Sou’, portanto, é obra para quem sobreviveu ao hermetismo de ‘4’ – com o trocadilho valendo – e esperava um ‘5’ ainda mais cabeçudo, truncado e solitário. É obra, também, para quem sabe o quanto o Los Hermanos não apenas dependia de Camelo, mas, sobretudo, se confundia com ele.

ELOQUÊNCIA

Suspensa, repleta de espaçamentos e pontuada por arranjos hesitantes, a abertura ‘Téo e a Gaivota’ foi feita para assustar os mais afoitos. O efeito causado é muito semelhante à de ‘Dois Barcos’, do ‘4’: cheia de firulas e instigante, a peça é um intimidante cartão de visitas, ainda que não encerre em si a definição do álbum inteiro. As texturas de guitarra, por sua vez, prosseguem fincadas no mesmo raciocínio los hermânico, onde distorções e harmonia de tetracordes convivem, digamos, em ‘melodia’. A posterior ‘Tudo passa’ já é mais contida na deliberada indecisão rítmica que marca a primeira. E o refrão, marcado pelo entoar dolorosamente melancólico da oração-título, se destaca como um exercício de eloqüência sintética que não se verá tão cedo por aí.

Com aroma de improviso, a pouco atraente ‘Passeando’, por sua vez, parece ter sido gravada de primeira. Cada acorde aparenta ter sido pensado ali mesmo, no instante da gravação, na doidice e na espontaneidade. O processo só é interrompido pela linha melódica cheia de arestas que Camelo entoa, talvez para justificar as partículas poéticas que escreveu enquanto desistia - de novo - de relembrar como era seu queixo antes da moda Talibã atraí-lo. É peça tão fechada em si que, em um futuro não muito distante, sua lembrança só interessará mesmo ao seu próprio autor.

VIRGINDADE E TROPICALIDADE

Já a inocência de ‘Doce Solidão’ tem os dois pés no indie rock de um Belle and Sebastian ou de seu correlato holandês Sondre Lerche. Tanto que Camelo a situou ao lado de ‘Janta’, sua parceria com a pré-acne e precoce de doer Mallu Magalhães. Aqui, o autor larga o jeitão litorâneo e se volta de vez para um ambiente virginal, alvo, intocado e, para não perder o costume, pra baixo, mermão, bem pra baixo. A solução harmônica para a melodia é simples, mas de bela obscuridade. E a junção do protagonista com sua convidada pré-adolescente é coisa que não demora um segundo sequer para dar certo.

Se alguém ainda insiste em estabelecer ‘Sou’ como algo muito personalizado e distante da herança do quarteto carioca, que vá pra casa escutar ‘Mais Tarde’. Essa aí permite até que se visualize o clipe: Amarante com blusa rosa fazendo impraticáveis passinhos de dança; que corta para um pé-de-graviola qualquer filmado em Super 8; que corta para o baterista Rodrigo Barba, que surra as peles da caixa até fazer pular os confetes; que corta para Amarante e sua performance simpaticamente prejudicial. ‘Mais Tarde’, enfim, está muito provavelmente entre as canções que Camelo não teve tempo de incluir em ‘4’. A tropicalidade, os arranjos econômicos, o tecladinho vagabundo, a dupla de guitarras que leva nas costas toda a inventividade, a pujança harmônica, o casamento de uma vaga irreverência com uma explícita tristeza, está tudo lá. ‘Mais tarde’ é tão escancaradamente Los Hermanos que tem até os mesmíssimos escorregões de harmonia que algumas das canções da banda carioca traziam e que, para espanto de Julio Medaglia, não as atrapalhavam. É sentar e aguardar a canção do Amarante começar.

SOBE-DESCE

‘Saudade’, por sua vez, soa como a típica canção instrumental que, de uma hora para outra, ganhou uma linha vocal. A imensa presença do dedilhado violonístico poderia ter sido mais respeitada: se na essência ‘Saudade’ é um estudo, na superfície comporta-se como uma sub-canção, sem o mesmo brilho das demais. A pianista Clara Sverner percebeu isso e, em uma espécie de faixa bônus, converteu a peça em um exercício de melancolia e escuridão muito mais eficiente que a versão de Camelo.

A partir de então, o disco entra em um pequeno redemoinho de peças inventivas, mas nunca fundamentais. Em ‘Santa Chuva’, Camelo executa com preguiça algo que Maria Rita praticamente esgotou. ‘Menina Bordada’, folclórica e repleta de guitarras envolventes, é a resposta imediata a isso. Mas logo Camelo providencia outro declive, com a ingênua e sem grandes atrativos ‘Liberdade’, para depois oferecer um aclive com a carnavalesca e harmonicamente saudosista ‘Copacabana’. A última ‘Vida Doce’, finalmente, é ainda mais Los Hermanos que todas as anteriormente citadas. Composta pela união de maracatu com folia de reis e sublinhada pela atmosfera da salsa, a canção derradeira de ‘Sou’ é mais do que um aceno para a obra pré-carreira-solo do autor: é um abraço em seus dias de Hermano.

Mais importante do que especular acerca da continuidade do Los Hermanos em ‘Sou’ é descobrir de onde Camelo tira forças para suportar seu horrível visual de tuaregue refugiado, caracterizado, principalmente, pela angustiante mata que esconde metade de seu rosto. O papinho que reprova a herança de repertório – algumas vezes sustentado sob a acusação incompreensível de auto-plágio - é brocha aqui justamente por não vislumbrar que o compositor sempre foi o detentor dos moldes estéticos de sua antiga banda. O que quer dizer que não é ‘Sou’ que é los-hermânico. É o Los Hermanos, na verdade, que é camelístico.

04 novembro 2008

Nem palafita, nem arranha-céu


A obra: 'Aldeia', de Amorosa. Lançado em 2002, disco contou com Tovinho nos teclados, Itu na bateria, Genaro no acordeon e Luciano Magno nas guitarras e violão.

A crítica

Nota: 6,92

Já faz algum tempo que a aleijada Música Popular Brasileira sinaliza não precisar mais da estética de uma Elba, de uma Amelinha, de uma Marinês, tamanho o desejo das intérpretes atuais de se converter em perdigotos de Marisa Monte. Tanto que foi necessário ser gravado o tal do ‘Grande Encontro’, projeto caça-níqueis que consistiu no revestimento de um repertório já em vias de desgaste por inúmeras referências além-Nordeste. O resultado deu certo. Mas ao mesmo tempo em que forneceu um pouco mais de oxigênio para o cancioneiro dos cânones comerciais nordestinos, o tal do encontrão esgotou praticamente todas as possibilidades do estilo: não há graça nenhuma em ouvir mais versões de coisas como ‘Táxi Lunar’, ‘Princípio do Prazer’ ou ‘Ai que Saudade d’ocê’ depois do que fizeram. Acabou. Morreu. Já era. Não se despediu adequadamente? Problema seu. Mas lá vem Amorosa a trotes domando sua ‘cavalaria’ composta por 11 jegues – ‘jegaria?’ –, cada um carregando ‘uma ruma’ de patuás e rendas em cestos de palha. “Não está meio tarde pra isso?”, alguém pergunta à condutora da carruagem. Resposta: “Nóis é jeca, mas é jóia”.

Só que ‘Aldeia’ não é jóia coisa nenhuma. Talvez tenha relevância insuperada dentro da longeva trajetória da intérprete, alçada à categoria de patrimônio máximo da cultura local com perigosa unanimidade. Mas quem gosta de carreira é biógrafo. Descascada até a última mitocôndria, a obra em si é apenas um curioso exercício de absoluta teimosia. Em plena era pós-Grande Encontro, Amorosa decidiu lançar candidatura à corte dos ‘pernaibanos’ que passaram um bom tempo no centro nacional das atenções. Não que teimar em ser mais do mesmo seja algo reprovável. Até porque fazer o contrário e tentar peitar a força da indústria, atitude geralmente vista como heróica e transgressora, não passa de outra forma de também querer ser notado e, por extensão, querer ser completamente absorvido por ela. Mas o risco que Amorosa correu foi o de passar somente por cantora recém-surgida em um duríssimo mercado pretendendo fazer reverência a Elba, a Amelinha, a Marinês, e sem a força do repertório do trio. É como se, ao invés de dizer ‘cheguei’ e bater o pé no salão com o solado duro da alpercata, a intérprete apenas caminhasse dentre botinas com os pés descalços.

Mas entre cabeçadas na parede e acertos pouco contestáveis no repertório, um atributo em particular sobreviveu ofegante, porém incólume: a extrema versatilidade da cantora – completa a ponto de conseguir doar sangue a canções feridas pela repetição e a multiplicar o valor absoluto de pequenas pérolas que andavam escondidas por aí. E ao mesmo tempo em que apresenta um padrão timbrístico facilmente reconhecível como afeito ao cancioneiro nordestino, Amorosa não parece arremedo, nem ensaio, nem imitação de absolutamente ninguém. Entretanto, o que bastou para garantir a sobrevivência de sua trajetória como cantora não foi suficiente para transformar ‘Aldeia’ em uma obra fundamental.

Está escrito na embalagem do chiclete: errar é humano. Mas deve ser imediatamente encaminhado ao Congresso algum projeto de lei que incrimine quem estraga canções logo nos seus primeiros dez segundos. A pena para o acusado: passar um mês preso em uma sala com um único alto-falante a reproduzir sem parar seu próprio erro. É claro que o tecladista Tovinho, o responsável, pode recorrer. Afinal, tambem é dele a sucessão de excelentes idéias que percorrem o trabalho. Mas não há explicação científica para o uso de um timbre espacial e futurista para abrir uma obra alicerçada na rusticidade e na regionalidade. Para alívio da população, que já sofre tanto, a aterrissagem dessa panela de pressão dura apenas os citados dez segundos. Depois disso, tudo começa a fazer mais sentido, e ‘Alto do Tempo’ se transforma em peça quase épica. Consciente disso, Amorosa talhou uma adequada interpretação empostada, com direito a erres escarrantes de uma Maria Bethânia.

Pra quebrar de vez o gelo, a intérprete lança mão da brincalhona ‘Salada Tupiniquim’, canção despretensiosa e mais concentrada na troça e no folguedo. Aqui, Amorosa inicia imediatamente o exercício de versatilidade e deixa a diva sertaneja da faixa anterior para trás. O sotaque exagerado e o timbre áspero são elementos conscientemente recorridos para teatralizar ou até mesmo ‘clemildizar’ a peça irreverente de Ismar Barreto sobre auto-afirmação da identidade. E o resultado, sustentado no assustador equilíbrio dos arranjos, é o melhor possível. Já ‘Nóis é Jeca mas é jóia’, outra peça com os dois pés na irreverência, é inferior e mais anêmica, mas conta com uma interpretação impagável da cantora e permite que se identifique o primeiro acerto do trabalho: a recorrência à graça para abordar a nordestinidade. O lado verborrágico, engajadóide e politicóide do assunto que fique com os acadêmicos de shopping center, rappers e chorões mendicantes de Secretaria de Cultura.

Mas nem tudo é cisterna nessa incursão sertão adentro. É preciso esforço, por exemplo, para estabelecer ‘Mel e Aveloz’ como exercício do viés romântico da cantora. Isso porque a primeira coisa que se percebe é que a faixa se trata, apenas, de uma versão mais pálida e burocrática da original. ‘Forró Ligeiro’, então, não possui um único atrativo que justifique sua presença no repertório. Não é canção simples. É pobre. E é absolutamente igual a zilhões de outros forrós que não precisam de letra para conseguir o mesmo e fundamental e único efeito: ser dançante. ‘Em todos nós’, por sua vez, é facilmente identificável como um filhote das fórmulas sombrias de Zé Ramalho. Mas essa constatação não ajuda em nada: a faixa é burocrática, pretensiosa, cansativa demais para seus parcos três minutos, e consegue extrair da intérprete uma performance forçada. Um soco em todos nós.

Já ‘Ciúme D’ocê’, composição da cantora, é a prova inconteste de que o negócio de Amorosa é mesmo cantar. Não porque a faixa é uma demonstração rascante de genialidade interpretativa, mas sim porque é um acidente de trem enquanto criação. E essa coisa de declamar poema no meio, como foi feito, funciona muito raramente. É claro que ‘Ciúme D’ocê’ se soma ao lado majoritário dessa estatística. Ao menos a rica ‘Tempero Moreno’, a muito bem escolhida ‘Toada’, a arriscada pelo desgaste mas bem-sucedida ‘Sabiá’ e o excelente encerramento ‘Serigy’ equilibram a obra e a mantém em um nível razoável de relevância, ainda que não a posicionem como clássico de nada.

‘Aldeia’, por fim, não é bem um conjunto habitacional, só que também não chega a ser uma invasão de palafitas. Mas é mais confortante pensar nessa obra como um primeiro passo para algo maior. Para avançar, no entanto, não é tão necessário para Amorosa ter os livros holísticos de Elba Ramalho, o telefone da Amelinha ou o autógrafo da Marinês. É mais importante ter uma alpercata - não para teimar em ser chamada para o Grande Encontro, mas para pisar com força no pé do responsável pelos erros de seu repertório. Até lá, entretanto, a Amorosa dessa ‘Aldeia’, embora não seja jeca, também não é jóia: é só ‘marromeno’.