19 maio 2009

MISÉRIA EM QUALQUER CANTO/CANTO COM QUALQUER MISÉRIA


A obra: ‘Cor de Laranja’, de Chico Queiroga. Gravado em 1990 em Recife, obra contou, entre outros, com Antônio Rogério no baixo, Pedrinho do Recife na bateria, João Neto nas guitarras e Sérgio Kirillo nos teclados.

A Nota: 7,78

Indicado para: quem acha que a aridez criativa é culpa do panorama político-econômico – o que obrigaria o elemento a ter um pôster do milagreiro Delfim Netto nu, em tamanho real, na porta do quarto.

A crítica :

Ainda não saiu no Linha Direta a identidade do primeiro gênio a argumentar que escassez de recurso e excesso de dificuldade justificam ausência de boas idéias artísticas. Mas não é necessário o auxílio da Scotland Yard para rastrear o alvo: basta fuçar o porão das casas dos chorões, parasitas e mendicantes de órgãos públicos de Cultura. É lá que se encontrará um busto esculpido em mármore do sujeito, guardado com esmero, rodeado de louros e patuás e ornado com inscrições em latim sobre a necessidade de investimentos na produção local. Só que é no canto mais sujo e escroto do mesmo porão, soterrado por quilos e mais quilos de apostilas sobre leis de incentivo cultural, que provavelmente também estará escondido um dos pouquíssimos porém suficientes antídotos a essa apaixonada veneração do fracasso. E sim, é essa obra com um indivíduo rindo forçosamente no invólucro.

‘Cor de Laranja’ é um trabalho precário, mal gravado, com mixagem duvidosa e tecnicamente correspondente a uma época em que onde havia lama, coqueiro e leptospirose, hoje há estúdios empilhados – mesmo em Recife. Mas as boas idéias se sobressaem às limitações e fazem com que a obra seja, esteticamente, um sucesso. E essa é uma constatação gravíssima, uma vez que o êxito e conseqüente sobrevivência de uma obra tão incipiente metralham todo o coitadismo implicante de quem substitui o reconhecimento da própria mediocridade pelo apontamento de um panorama apocalíptico. Nesse ambiente inóspito de negação e privação, não dá pra compor bem, não dá pra gravar bem, não dá pra interpretar bem e não dá pra arranjar bem, pois o studio do Quincy Jones é longe, caro e ninguém custearia um investimento desses. Buá, buá, buá.

Quem pensa assim já está tão cansado de ser irremediavelmente ruim que resolveu apelar para uma absurda inversão de valores, que é: em vez de causa de possíveis investimentos pecuniários, a criação artística passa a ser conseqüência. Que coisa linda seria abrir informativos governamentais e ver que alguns compositores, de bolso cheio, atravessam sua fase mais inspirada. Mas há algo indicando que mesmo que metade do PIB seja voltado para a cultura, a inspiração não virá: arte e dinheiro não foram feitos um para o outro, não se compensam e por vezes até se repelem. A razoável excelência de expressividade dentro da capenguice técnica de ‘Cor de Laranja’ é simplesmente um carimbo na testa dos espantalhos que esperam cheques de boca aberta e representa a prova inconteste de que ninguém precisa contratar a Filarmônica de Boston para dar vazão a grandes propostas. É por isso que dinheiro em arte não é necessariamente investimento: é, sobretudo, aposta.

POUCO PAPO, MUITA AÇÃO

Ninguém pode negar que os timbres de metal de ‘Transbrasileiro’ doem no fígado e remetem aos piores jingles noventistas de mercadinho. Mas é ainda mais difícil negar que isso não tem tanta importância diante do valor geral da composição, um estudo afro-latino harmônica e melodicamente irretocável e com uma performance não menos que definitiva de Queiroga.
O único elemento que impede a faixa de alcançar a excelência absoluta é a referência final ao tema instrumental de ‘Asa Branca’, espécie de reforço à excelente citação já efetuada no refrão, mas que soa óbvia e ao mesmo tempo deslocada demais. Quem teve a idéia de fazer tamanha inserção precisa ter seu nome incluído perpetuamente no SPE – Serviço de Proteção ao Êxito.

Interessado em ser arrebatador logo no início, Queiroga não dá trégua e arremessa logo a mezzo-caribenha ‘A Mestiça’. Ainda que inferior à primeira e dependente mais do que o desejável da força dançante e harmônica do marcante refrão – a repetição beira o cansaço –, a peça é carismática e composta por uma variação de malhas rítmicas que dialogam bem. Já a nada convidativa ‘Noite Morena’, tentativa precária de reggae, parece ter sido incluída apenas para que o tecladista mostrasse como se estraga uma canção. Ao menos a faixa funciona como pretexto para a inventividade de Queiroga como criador de linhas vocais.

AS ‘FAB FOUR’

Mas logo se verá que o momento anterior era exatamente o vale profundo da obra. Isso porque, logo depois, ‘Cor de Laranja’ adentra um quarteto de faixas em fulminante ‘crescendo’ em termos de expressividade e absoluto desprezo pelas limitações instrumentais. Quem interrompe imediatamente a Viagem ao Centro do Fracasso que ‘Noite Morena’ proporciona é a faixa-título, peça com progressões harmônicas tão quilométricas que remetem à complexidade dos jogos estruturais de um Tavinho Moura. Já ‘Rio em Cores de Cinema’ escapa da repetitiva, passível de multa e doentia recorrência à bossa para retratar a cidade do Redentor, ainda que os cinco minutos de peça tenham sido abusivos. Aqui, o baixo é conduzido por quem de fato entendeu a melancolia harmônica pensada por Queiroga, que contrasta aparência exaltadora com pessimismo.

Introduzida por um dedilhado pretensamente virtuosístico, ‘Fim de Primavera’ é a típica composição de uma estrutura só, o que é bom: enquanto muitas canções dependem do refrão, essa não depende de coisa alguma: toda ela é clímax. Mas é interessante notar que, já no primeiro minuto, o baixista resolveu registrar uma experiência intitulada ‘o que acontece se eu puser uma nota completamente fora de todo esse campo harmônico’. Quem respondeu ‘já sei: Atlântida emergirá’ concorrerá a um disco solo do tal instrumentista repleto de exercícios similares. Mas para desespero dos super-relativistas que vêm beleza na imundície e para alívio dos que vêm imundície em muita ‘beleza’, nenhum desses equívocos resultantes de pressa ou coceira no meio da gravação se repete ao longo da peça.

MENOS É MAIS AINDA

Cabe à surpreendentemente épica ‘Desculpe o Modo’ o fechamento do quarteto fundamental do disco. A inventividade da peça, que transita entre Alceu Valença e Clube da Esquina, mas ao mesmo tempo não simula nenhum dos dois, é assustadora. É o ponto alto do trabalho após a absoluta ‘Transbrasileiro’. E ninguém precisou marcar hora em Abbey Road ou ligar para o produtor e campeão de tiro Phil Spector: para Queiroga, bastou um baixo simples, dois teclados meia-boca, violão e guitarras básicos, percussão pra lá de primária. O que pesou no resultado? Idéias, formulações abstratas geralmente oriundas da cabeça.

Ainda que um degrau abaixo do nível da quadra anterior, as faixas finais não permitem que ‘Cor de Laranja’ faça uma visitinha à mediocridade. A rural ‘A Madrugada’ é um competente estudo da sonoridade do centro-oeste. ‘Chuva de Verão’ é a variação de ‘Fim de Primavera’ que deve ter feito Antônio Rogério salivar e se debruçar sobre sua ‘Serpente’. Já ‘Trem do Destino’, mais uma incursão sem graça pelo terreno traiçoeiro do reggae, é repleta de dissonâncias sem critério algum e está a quilômetros de ter capacidade para fechar um trabalho desse calibre. Mas não chega a azedar tudo.

Os mendigos culturais de porta de Assembléia Legislativa irão chorar, mas a verdade é que apreciação artística não é CPI. Não interessa o quanto foi empregado. Não interessa de que conta saiu o dinheiro. Não interessa quem pediu, quem passou, quem deixou de passar, quem ainda está de boca aberta esperando. A única coisa que interessa, na riqueza ou na miséria, é o resultado. E Queiroga soube aplicar isso. Repleto de boas idéias, seu disco resultou do absoluto desinteresse em saber o que está no vermelho ou no azul. O único esforço que realmente importou foi o de deixar tudo, no fim das contas, com cor de laranja.

06 maio 2009

RUGE, MAS NÃO MORDE


A obra: ‘Leoa’, de Gwendolyn Thompson. Disco foi lançado em 2004 e contou com Mongol no baixo, Carlinhos na bateria, Lu Bahia nas guitarras e Tovinho na direção musical.

A crítica:

Nota: 6,96

Indicado para: quem batuca com algum entusiasmo as releituras bossa-novísticas que tocam em restaurantes caros enquanto a picanha não chega.

Atenção, classe: é hora de soletrar o nome desta senhora. G-w-e-n-d-o-l-y-n. Mais uma vez: G-w-e-n-d-o-l-y-n. Outra, só para deixar ainda mais abusivo o número de caracteres: G-w-e-n-d-o-l-y-n. Pronto. Lá se foi a experiência mais insólita, exótica e transgressora dentre as que decorrem do contato com este ‘Leoa’. Sim, pois o prêmio Nobel de Originalidade não quis sequer sentir o cheiro da mobília da intérprete. “É obrigatório ser original?”, questiona o menino com pirulito na boca. Nunca é, guri. Principalmente se esse pirulito aí for de uva.

O problema é que, 'lamentavelmente', so há uma coisa capaz de distinguir o criador X e o intérprete Y da turba que almeja desesperadamente por uma abordagem de Sílvio e Vesgo na saída de alguma festa badalada: o desvio, o diferencial, a referência retrabalhada, relida, rebuscada ou embrutecida que só a ousadia é capaz de conceber. Todavia, é difícil saber a princípio o que fazer com esse disco de G-w-e-n-d-o-l-y-n Thompson. Nos momentos mais pretensiosos, quase tudo dá errado. Nos momentos seguramente previsíveis, quase nada é decididamente marcante para justificar outra audição. Mas, no fim das contas, descobre-se como a obra deve ser lembrada antes de ser guardada em alguma gaveta por tempo indeterminado: como prova inconteste da excelência técnica e timbrística de uma intérprete.

É inacreditável o número de casos em que o sujeito que assina a responsabilidade pelo trabalho e põe a cara a tapa na capa – bom trava-língua, esse – se converte, em poucos minutos de audição, no encosto que esculhamba e atrapalha sua própria proposta. Mas esta senhora de nome passível de repetição para ser entendido, não. Em cada uma das 13 faixas, Gwendolyn deixa mais do que estabelecido que a atração principal é mesmo ela. Isso no bom e no mau sentido, pois a parcela de atenção que deveria ser dedicada à construção de um repertório menos previsível ou artificial foi abocanhada pela necessidade de exibi-la fazendo qualquer coisa.

Por isso faltaram apenas três milímetros para que uma ‘Chega de Saudade’ fosse enfiada lá; dois milímetros para que ‘O Barquinho’ ganhasse sua bilionésima versão; e menos de um milímetro para que ‘Desafinado’ fizesse pout-pourri com ‘Garota de Ipanema’. Espere aí. ‘Garota de Ipanema’ está lá, como trecho incidental. Um a zero pra chatice.

É inevitável, portanto, situar boa parte de ‘Leoa’ como trilha sonora de aeroporto ou de restaurantes para executivos. Mas não é qualquer uma que pode embalar gringos em check-ins. Não é qualquer uma que pode sublinhar o barulho de magnatas estripando bifes sangrentos. É preciso ter alguma dose de finesse, de segurança e uma coloração vocal capaz de valorizar toda a malha instrumental em volta, por mais videoquê que seja. E essa cantora com nome que desafia as leis de separação de sílabas tem todos os atributos elencados. Mas então o que faltou, finalmente? Atenção para o maior bocejo da história: repertório p-e-r-t-i-n-e-n-t-e.

UM BANQUINHO E UM SINTETIZADOR

Pode parecer mandinga, mas não são muitos os discos que iniciam bem com a canção-título. Se a peça intitula a obra, é porque tem patente alta no repertório, é um clímax. Eis então que colocá-la no pára-choque da frente não significa mais do que antecipar esse clímax e, por tabela, transmitir a idéia de que depois daquilo ali a brincadeira acabou e todos podem ir pra casa.

A peça ‘Leoa’ não é necessariamente o ponto alto da atração. Mas situá-la na proa de tudo não foi uma idéia tão boa quanto aparenta. Mesmo classuda, rica e feita sob medida para grandes interpretações femininas, a faixa de abertura não possui a mesma força convidativa de uma ‘Há tanto tempo’, mesmo sendo, em valores absolutos, muito superior. O que torna essa observação menor do que deveria é a performance de Gwendolyn, límpida, correta sem ser mecânica, madura sem soar datada e perfeitamente encaixada aos excelentes arranjos. Não será a coisa mais fácil do mundo encontrar por aí alguém que consiga fazer uma versão melhor.

É praticamente impossível que uma cantora com registro timbrístico tão delicado e intimista esqueça que a bossa nova existe. E Gwendolyn não faz diferente, dedicando ao movimento um bloco correspondente a um terço de seu trabalho. O dilema é saber o que a judiada ‘Carolina’ estava fazendo lá. Com um inventário de canções de Chico Buarque facilmente adaptáveis à roupagem gilbertiana-jobiniana – quando já não o são escancaradamente submissas a ela –, Thompson não apenas tropeça na escolha dolorosamente óbvia como recorre a uma das mais maçantes composições do carioca. A banda também não contou as colheres de açúcar, e errou a mão com um andamento que deixou a canção ainda mais arrastada e sonolenta do que já é.

‘Woman’, a faixa seguinte, foi outra que não deu certo – o que é estranho, pois a transposição de uma balada para a bossa não deveria necessariamente soar como algo tão deslocado. Mas as cicatrizes da mutilação estética estão claras, predominando a sensação de que tudo mudou e a linha vocal persiste tentando se encaixar nos trilhos. Diante disso, é desejável que Lennon esteja muito mais ocupado em seu provável projeto póstumo com George Harrison do que interessado em saber como se comportam seus tributários terrenos.

Mas a recuperação é imediata, e se dá no próprio bloco ‘banquinho e banda com sintetizador’. A abordagem de ‘Dói Dói’, de João Melo, foi feita por Gwendolyn com o ataque de quem se dedica a cravar uma interpretação definitiva. E é exatamente o que acontece: apoiada por arranjos que enaltecem o preciosismo das harmonias, a intérprete costura tudo com a segurança de quem canta árias pra relaxar. Já ‘Dindi’, assim como ‘Carolina’, também vinha com a tatuagem da escolha mais do que mascada. Mas nem mesmo os timbres de teclado para coquetéis conseguem diminuir a força de arranjos nada interessados em diluir a construção harmônico-melódica da canção. E é claro que a breguice e o artificialismo instrumental não têm importância alguma perto da execução irrepreensível de Gwendolyn.

‘UHHHH’

Só que é justamente no meio de tanto êxito que o repertório é ameaçado por um tabu: Freddie Mercury. É simplesmente assustador como esse sujeito esgotou as possibilidades das próprias canções, mantendo-as inalcançáveis e rebaixando à categoria de escândalo quaisquer tentativas de cobiça alheia. A interpretação de Gwendolyn para ‘Love Of My Life’ está muito longe de ser um escândalo, mas está ainda mais longe de ser um êxito. O problema de ‘Oh Darling’ é praticamente o mesmo. Aqui, a intérprete deixa a peça polida e correta demais, a anos-luz da expressividade e do desespero nada reproduzíveis de Paul McCartney. O momento mais característico da leitura da cantora é certo ‘uhhh’: se em McCartney a partícula é um comentário deliberadamente deslocado e irreverente, em Gwendolyn tudo soa como se um clarinete tivesse surgido do nada absoluto.

Tudo volta aos trilhos com as bem-sucedidas ‘Há tanto tempo’, ‘O amor é narciso demais’ e a esquecível mas pouco prejudicial ‘Serra do luar’. Só que é em plena linha de chegada que a cantora tropeça e cai em cima dos espectadores. Quando tudo deveria ter se encerrado com a excelente ‘Can´t Take My Eyes Off You’, elegante e mais do que adequada para o arremate final, Gwendolyn desenterra de algum lugar a infinitamente deglutida e excretada ‘Pro dia nascer feliz’, de Cazuza. Implora-se: alguém precisa avisar a todos que o ex-Barão já goza de paz suficiente. Quem ainda precisa de sossego é o público.

É quando a poeira assenta, porém, que se torna possível vislumbrar que o real propósito do álbum foi atingido: com versatilidade e experiência, Gwendolyn Thompson não mostrou apenas extremo domínio de seus atributos vocais, como também assinalou que não tem medo de muita coisa.