29 outubro 2009

FEITO PARA REBANHO

A obra: ‘Vida De Gado’, de Antônio Carlos du Aracaju. Gravada em Recife e em Aracaju, disco contou com Jorginho, Moabe e Mongol no Baixo; Ravenghar, Mestrinho, Genaro e Alegria no acordeão; Ivo e Escurinho na Zabumba; Wellington e Raimundo na bateria.

Indicado para: quem consegue ouvir apenas o triângulo, a zabumba e a sanfona no meio de tanta chatice e previsibilidade.

Nota: 4,01

A crítica:

O posicionamento que Antônio Carlos Du Aracaju adota pra fazer forró é coisa para Globo Repórter ou Discovery Channel. É estranho, torto, desafiador, indefinido e, se não houver alguma forma de registro, ninguem vai acreditar. Ora, ‘Vida de Gado’ é esse registro. É estranho, é torto, é indefinido. E é também desafiador, só que da paciência e da noção de otimização de tempo. O problema é o negócio da crença. Encerrada a audição da obra, acredita-se em ainda menos coisas.

Não dá pra acreditar, por exemplo, que o forró é um estilo plural. Ou que o forró sergipano está levemente acima dos demais. Ou que é possível misturar qualquer coisa com forró. Ou que ainda é possível escutar algum disco desse sujeito sem achar ofensiva a imagem do plugue do som encaixado na tomada. Tudo isso porque ‘Vida de Gado’ é uma coleção de pequenos acertos potenciais transformados em bagulho. É uma soma nada atraente de um conservadorismo entediante com invencionices atabalhoadas. É um registro, enfim, do quanto Du Aracaju não maturou nem assumiu ainda o devido controle de sua proposta.

Quem tiver estômago que confira por si só. De cabo a rabo desse disco, o que se tem é uma coletânea mal acabada das menos atrativas e convencionais fórmulas de forró temperada com letras apocalípticas e teclados de churrascaria. Claro que a melhor forma de apreciar isso é forrozeando no salão, atividade que exige a audição como suporte mecânico, não como faculdade de apreciação. Mas com uma lata e um toco de pau também é possível pôr todo mundo pra botar a mão no joelho e dar uma agachadinha. Ou seja, Sheila Carvalho: um disco dançante está na mesma categoria de uma lata e de um toco de pau. Fundado em regras quadriláteras e na destruição de idéias potenciais para compor seu trabalho, esse ‘Vida de Gado’ só consegue ir mais longe que a lata e o toco de pau em um único atributo: na insistência em não acabar quando todos já imploram desesperadamente pelo seu fim.

Ê, ENTRADINHA

Que se faça justiça antes de mais nada. A primeira peça, ‘Em nome do Pai’, não é uma canção ruim. É uma canção desperdiçada. Harmonicamente, é coisa de quem de fato tem o que oferecer no forró. E melodicamente, ao menos em sua maior parte, tem lá seu valor. O primeiro problema é que a letra não consegue se decidir entre as aceitáveis e convenientes sertanices e os arroubos tresloucados de anarquismo de beira de estrada. Apenas em um disco como esse é possível encontrar uma canção em que o sujeito desce a ripa na política internacional e, em um espaço de cinco segundos ou menos, declama ‘ê boi’ sem nenhum constrangimento.

Mas quem dera isso fosse o pior. Lamentavelmente, o buraco é tão mais embaixo que resvala em Pequim, e o apodrecimento eterno de ‘Em nome do Pai’ é causado pelo inovador desempenho de Du Aracaju em certos trechos de sua própria melodia. Na verdade, nos mesmos trechos a canção inteira: quando assoma um acorde diminuto por lá, o cantor se estremece, dá cambalhota, faz careta, fuma cachimbo e apita, invoca o caboclo, bate palma, grita saravá, mas não consegue cantar afinado sobre a maldita harmonia em absolutamente nenhum momento. Para entornar de vez o banheiro químico, puseram a faixa como abertura. É simplesmente impossível acreditar que um deslize animalesco como esse tenha passado incólume sem que algo terrivelmente bizarro possa ter acontecido.

Já em ‘O Canto do Povo do Meu Lugar’ o autor se recupera em alguns aspectos. Com harmonia simples e arranjos básicos, sem firulas nem invencionices prejudiciais, Du Aracaju faz bem à canção, originalmente peça folclórica de Porto da Folha. No final, porém, sobra na curva, e começa a regurgitar em tom de comentário que a faixa é dedicada a essa e aquela outra personalidade, professor, vizinho, dono de bodega, sabe-se lá quem mais. Não é preciso muito esforço para constatar que os homenageados, muito provavelmente, devem zerar o volume da peça justamente no momento em que são citadas.

BRASÍLIA

A biográfica e extremamente lamentosa ‘Esta é minha história’, de Walfran Soares, é outra que não chega a despertar em ninguém o desejo de chutar o alto falante, mas também não impressiona. O interessante é que se trata de peça tão enegrecida pela desgraçada trajetória do eu lírico que dançar ao som disso torna-se, no fim das contas, quase que cinismo. Já a imediatamente esquecível ‘Casa de forró’, mesmo sem nada a agregar ao que já tem sido feito e continuará sendo infinitamente, cumpre integralmente sua tarefa de ser apenas dançante. O problema são as quatro buzinas de Brasília que insistem em se comportar como se fossem teclados e enterram de vez o que já não estava em pé direito.

A seguir, Du Aracaju vai ao banheiro e dá um espaçozinho pra sua irmã Cidinha. E mesmo com a ausência temporária do proprietário, a casa não cai. Afinada, sem afetação e sem lampejos de diva, a cantora administra de forma razoável a metida a salsa-xaxado ‘Nega Forrozeira’ e a mediana pós-porre alcoólico ‘Deixa de ser besta, coração’, mesmo sem conseguir ser necessariamente imprescindível ao conjunto da obra. Já o protagonista, quando volta, insiste pesado no binômio festa junina/jingle de prefeitura com a apenas animada ‘Forró de Areia Branca’. A letra funciona, a ritmia contagia, as buzinas de carro popular disfarçadas de teclado ficam mais comedidas, mas harmonia e melodia não saem nunca das convenções. ‘Forró de Areia Branca’ é tão passável que está fadada a sobreviver apenas durante a festa que homenageia.

ÉPICO

Lenta e algo paisagística, ‘Vida de Gado’ também não representa em si nenhum esforço de Du Aracaju para ser lembrado. Entretanto, a tentativa de casá-la com uma orquestra sinfônica, representada pela presença de cordas sintéticas ao fundo, tem lá alguma coisa de interessante. E isso mesmo com a sonoridade rascante do acordeão, que, com seus imensos acordes aparentemente feridos sem muito critério, toma a frente de tudo e joga areia no efeito da soma insólita. Em ‘Não Deixe o Véio Chico Morrer’, porém, a convivência do trio pé-de-serra com a ‘orquestra’ é, além de mais equilibrada, mais contributiva para o valor da faixa. Só que isso não quer dizer que a peça seja incrível: ‘Não Deixe o Véio Chico Morrer’ não vai a lugar nenhum com seu discursinho politizado sem graça e seu pálido conservadorismo.

Nada do que prende a anterior às fórmulas se encontra na irregular ‘Cheiro de Paraíso’. Pela primeiríssima vez em todo o disco, Du Aracaju não se mostra interessado em reverenciar ninguém nem em fazer balançar pezinho nenhum, apesar da força rítmica. A canção pulsa, fazendo que vai e não indo, e tudo em cima de uma proposta harmônica simples e eficiente. Mas lá vem a letra, insistente nessa coisa de se posicionar como adendo a qualquer acerto do autor. Com grandiosas, abiloladas e pouco sutis citações bíblicas, Du Aracaju parece estar convencido de que falar de qualquer tema sagrado, de qualquer jeito, agrega valor a qualquer coisa por si só. Só que uma atitude como essa acaba gerando um resultado muito mais inócuo e deslocado esteticamente do que o desenvolvimento original de qualquer um dos temas universais – de novo: universais - tratados no tal do Livro. A chatíssima ‘Bolo de feira’, por sua vez, é excretável com muito mais rapidez e facilidade do que a iguaria citada.

‘Vida de Gado’ é disco pra boi dormir. É um fracasso. É ruim demais. É até mesmo inferior a milhares de discos dançantes de forró tradicional espalhados por aí. Mas não é necessariamente o fim absoluto de Du Aracaju como compositor, embora dificulte seriamente quaisquer tentativas de concedê-lo algum crédito. Embora predominantemente intragáveis, as canções possuem uma certa base de competência, que revela o quanto o autor entende da estilística. Mas até agora o único resultado do exercício de seu conhecimento foi mostrar como dezenas de composições, arranjos e trocentos instrumentistas podem ter o mesmo valor, no fim das contas, de uma lata e um toco de pau.

23 outubro 2009

NA BOCA NÃO APRESENTA: ESPECIAL (TARDIO MA NON TROPPO) MICHAEL JACKSON


Ninguem aguenta mais falar de Michael Jackson. Ninguem aguenta mais ler sobre Michael Jackson. Ninguem aguenta mais ouvir falar nas brigas de quem sobreviveu a Michael Jackson. Ninguem aguenta mais ver o fantasma de Michael Jackson arrastando correntes pelo Youtube. Ninguem aguenta mais saber quem deu Cataflan ou elixir paregórico demais para Michael Jackson. Ninguem aguenta mais especular se o congelador que Berry Gordy emprestou cordialmente para preservar o moonwalker por uns dois meses era Consul ou Electrolux.

Mas apesar do detalhamento de todas as miudezas, de todas as extravagâncias alienígenas de um sujeito perturbado, do oportunismo confuso de sua família não menos bisonha e desse enfado generalizado altamente justificável, a miríade de dados sobre o sujeito esqueceu justamente daquilo que, ‘apenas’, transformou sua viagem sem volta para Neverland em algo publicamente relevante: sua obra. Talvez o foco tenha sido atrapalhado por um certo patrulhamento velado, uma vigilância de babacas ressentidos que viram hipocrisia na busca repentina e desesperada pelos discos do ex-pegador de Brooke Shields. “Só porque ele morreu que vocês estão escutando isso, não é? Se ele ainda estivesse lambendo criancinhas por aí, todos continuariam esquecidos de que ele existia” - seria o discurso em carros de som dessa organização internacional de iconoclastas ocasionais.

O problema é que o substantivo ‘morte’ não fica muito bem quando antecedido do advérbio ‘só’. Porque morrer é algo extraordinário. Está muito acima do nosso entendimento. Está muito abaixo do nosso desentendimento. É algo encravado em todas as nossas minúsculas preocupações. E, ainda assim, é a única coisa absolutamente real de que se tem notícia. Além disso, todos ficam insuperáveis e sobrehumanos quando mortos, pois ganhar cinco bilhões pela internet ou dormir com Jessica Biel continuam sendo absolutamente nada perto do alcance da superexistência ou da nadificação.
Morrer implica em ser lembrado de alguma forma.

Só que ainda não é isso o que legitima o frenesi de viúvas que pararam a internet atrás de arquivos do sujeito. O que o faz é a constatação de que o cidadão sem nariz não era somente um afroamericano com sorte para vender zilhares de discos: era uma instituição viva; um titã multimídia da era do LP; e a mais icônica lembrança pop de uma década pop. Ainda que muitos possam ter por Michael Jackson a mesma estima que têm por um prato de jiló fresco - e por qualquer razão que seja -, não precisarão da presença de um rifle para reconhecer que não surgiu, durante a época em que ele estava por aí, artista com trânsito midiático tão inalcançável, com presença tão opressiva na indústria da cultura e com uma capacidade tão megalomaníaca de se automitificar.


Graças a isso, muitos cresceram achando que o rapaz não era nem animal nem vegetal, mas um personagem da Disney. E ainda que um Bruce Springsteen ou um Eagles tenham vendido mais álbuns do que o moonwalker em algum momento, absolutamente nada poderia tirá-lo da altíssima torre que seu perfeccionismo e seu peculiar senso de autopropagação ergueram. É por isso que muitos poderiam até se rachar de rir diante de sua autodenominação como ‘rei do pop’, mas, sem sentir, se somavam aos zilhões que sabiam dela. A conta, agora, ficou simples: fascínio da morte + faraó da estética megalomaníaca e semideus das vendagens + facilidades quase constrangedoras da internet = download pra cacete e procuras hiperbólicas. Hipocrisia? Modismo fuleiro? Curiosidade imbecil? Nada. É que Michael Jackson sempre foi gigantesco mesmo. Qual um buraco negro - com vitiligo.

É claro que os mais apressadinhos subentenderão essa interpretação do gigantismo do sujeito como uma tentativa de canonização. Mas a imensidão incontrolável do nome de Michael Jackson não evitou sua firmação, ao longo dos anos, como uma aberração em todos os sentidos possíveis de se entender o termo e nos opostos bons e ruins do significado. Foi um suposto pederasta ao mesmo tempo em que foi um inacreditável prodígio. Foi um consumidor extravagante ao mesmo tempo em que foi um perspicaz construtor de hits. Foi um adulto mimado ao mesmo tempo em que foi um performer com insuperável presença de palco. Foi um exemplo agressivo do que não se fazer com a própria imagem ao mesmo tempo em que foi um produtor visionário.

O ruim é quando o lado ‘monstro’ desse Dr Jekyll aflora sozinho em uma sequência de incidentes ridículos sublinhada por uma fase artisticamente improdutiva. Aí, temos o silêncio, o ostracismo. Aí, temos o tédio, o esquecimento. Como Michael Jackson poderia até ser ‘o maior artista do planeta’, mas não o único, esvaiu-se. E, aos poucos, a audiência passou a se acostumar com o seu lento estado de putrefação.

A tragédia de uma podridão encerrada por outra é fascinante. E quando há em meio a esse enredo uma tentativa de não sucumbir a nenhuma das duas – como foram os ensaios extasiantes e letais da turnê ‘This is It’ - , o apelo humano quadruplica. Mas o que fez de Michael Jackson o tipo de notícia destinada ao fim do telejornal não foi sua trajetória, mas seu repertório. E foi justamente ele que resenhistas e sabichões de toda sorte esqueceram de discutir. O sujeito lançou dez discos solo. Vendeu quilhões deles. E, mesmo assim, ninguem conseguiu dizer algo além de despojos como ‘depois do ‘Thriller’ nada prestava’ ou ‘a melhor fase é a dos Jackson 5’ ou ‘Janet Jackson: gostosa’.

A análise discográfica que se inicia abaixo e será continuada em diversos instantes acima será uma tentativa homérica, hercúlea e por que não michaeljacksônica de jogar algumas pazinhas de areia nessa ‘profunda cratera de coisas ralas’. Porque o sujeito pode não ter sido o gênio onisciente e imbatível que talvez achasse ser. Mas foi ele quem teve um funeral em um estádio lotado e com sorteio de ingressos. Desafio qualquer sabichão aí a também ter um.

DE PRIMEIRA


A obra: ‘Got to Be There’, primeiro disco solo de Michael Jackson. Gravada em 1971, obra traz composições de Bill Withers, Elliot Willensky, Four Tops, Carole King e Jimmie Thomas.

Nota: 9,22

Indicado para: qualquer um que queira que o filho metido a cantor cale a boca e vá fazer jornalismo ou culinária.

A crítica:

Alguns acham bonitinho, outros acham super fofinho, uns acham que é a manifestação máxima da Beleza em seu estado puro - seja lá o que for isso. Mas a verdade é que criança cantando é um saco. E ninguém precisa assistir ao circo de horrores de Raul Gil para comprovar isso. Basta ter um videoquê em casa e constatar que a única forma de suportar o instinto de puxar um 38 e disparar solenes tiros pra cima é sendo pai ou mãe ou avó ou tia da pequena sirene. Há, no entanto, algo que consegue a temerária proeza de ser ainda mais chato que moleques interpretando canções: um disco com moleques interpretando canções.

Em partículas do inferno como Balão Mágico, Sandy & Júnior e Jordy, o que se tem são registros de um exibicionismo meramente circense, executado apenas para que audientes impressionáveis se dobrem diante da precocidade de um ser humano pequeno – como o que acontecia diante de um espantoso Mozart aos 5 anos de idade. Em si, essas obras não agregam nada a nada - o que é mais característica do que necessariamente um defeito - e, como complemento, enterram a 6 mil palmos do chão qualquer tentativa do mini pintassilgo de se tornar um intérprete respeitável no futuro. É diante desse cenário apocalíptico que algo como ‘Got to be There’ adquire uma importância assustadora.

Quando lançada, a bolachinha deve ter sido uma bordoada na cara de muita gente - não na dos remanescentes da Klu Klux Klan, mas em todos que se mordiscavam por uma sombra na própria gravadora Motown. Ora, lá estava um moleque sorridente e confiante, usando boina na capa, metido a cantor. Mas, por são Marvin Gaye, what´s going on em suas canções? Arranjos de cordas imensos, meticulosas linhas de madeiras, sequências de baixo inspiradas, guitarras bem medidas, cravos, vocais de apoio? Por que esse tratamento de luxo, que fazia qualquer disco de Smokey Robinson ou Jackie Wilson soar feitos em quintais, a um dos moleques daquele fabricado Jackson 5?

Porque Berry Gordy, presidente da Motown, ansiava por pagar suas extravagâncias. E porque Berry Gordy, sem precisar de Raul Gil, sabia que: 1) havia encontrado uma pequena e extraordinária aberração 2) seu pequeno alienígena era superior a qualquer integrante de seu valioso elenco 3) devia fornecer a ele todas as condições aceitáveis e inaceitáveis para embalar aquele talento bruto em mega profissionalismo 4) para que o maior número de pessoas tivessem a mesma opinião que a sua em relação ao pivete, ele deveria municiar o trabalho de estréia com um repertório de alcance e beleza universais. E, então, eis a primeira contribuição de Michael Jackson para o mundo: ter protagonizado o primeiro disco aparentemente infantil que muitos adultos gostariam de ter gravado – uma façanha que nem o nosso herói, em sua fase pós-púbere, conseguiria superar.

INDESAFINÁVEL

‘Ain’t no sunshine’ é o primeiro indício de que o lançamento do moleque como prodígio solo não era aposta baixa. Os arranjos, apurados e cuidadosos, são a reunião de boa parte do que os músicos disponíveis para a Motown sabiam fazer de melhor. Tudo é elaborado com tanto mimo que não há como notar, na peça, o oportunismo de uma obra gravada às pressas e sem o consentimento total do patriarca dos Jackson, compadre Joe. E a versão não surpreende apenas por ser consideravelmente ‘complexa’ para quem terá uma criança ao centro: ela é a melhor versão gravada da composição. É muito melhor, por exemplo, que a versão de Bill Withers, seu próprio autor. E é melhor que a de Sting, que é pior ainda que a de Withers. Além disso, a constatação de que o culpado por isso não é mais do que um sujeitinho imberbe que nunca havia gravado um disco sozinho é séria, amiguinhos, muito séria.

A faixa seguinte é uma demonstração ainda maior de virtuosismo técnico e interpretativo. Tanto que não será uma tarefa muito dócil encontrar meia dúzia de cantores que consigam levar até o fim uma peça repleta de crueldades tonais como ‘I wanna be where you are’. E Miguelzinho parecia saber disso quando, mesmo antes dos pêlos pubianos, entregou-se para transformá-la em um blockbuster pré-disco music de força quase que marvingayeana. A linha vocal tem atalhos modais de dar estrabismo a uma Barbra Streisand? O moleque joga o arreio nelas. Há necessidade de agudos praticamente inalcançáveis e quase que somente perceptíveis para hamsters e furões? O guri o faz enquanto coça a virilha desinteressadamente. Precisa-se de variações e improvisos sobre o refrão? Nem precisa pedir. O pivete nos traz uma penca de idéias para que ninguém se lembre que a canção acabou há muito tempo. E como se não bastasse a interpretação ‘anormal’, a composição de T-Boy Ross e Leon Ware é uma irretocável peça de ouriversaria das canções românticas desligadas de afetação.

Já ‘Girl dont take you love from me’ é o tipo de peça que talvez ficasse ainda melhor na fase pré-luva-de-lantejoulas de Miguelzinho – mais pela elegância do que pela temática da letra. Mas e daí. Mesmo não fazendo parte da penca de arrasa-quarteirões que o álbum traz, a peça funciona. E em certo trecho perdido entre os refrões, estabelece o pequenino como um instrumento vivo e ‘indesafinável’: quem quiser que tente sustentar um dó por mais de 10 segundos com grau tão nulo de oscilação que faz a voz se confundir, em pouco tempo, com um sopro sintetizado.


JEITINHO PEQUENININHO

Essa mania de iniciar canções com falas, sejam declamações da própria letra, sejam apêndices complementares de uma tal ‘mensagem’, é uma tremenda chatice - ainda que não necessariamente desvie em 180 graus a atenção para o que acontece ao fundo. Mas ‘In Our Small Way’ não consegue ser estragada nem por isso. Talvez nem mesmo um dueto com Wanderléa seria capaz de trincar uma canção como essa. Não há nada de mais em sua harmonia, em suas linhas melódicas, em seus arranjos. Mas é assim mesmo, no seu jeitinho pequenininho, que ela é cativante, doce e feita sob medida para interpretações femininas. E o guri praticamente esgota as possibilidades da faixa, interagindo com maturidade assustadora com o coro do apoio e, pela enésima vez, brincando de ‘olha-como-eu alcanço-essa-nota-que-não-dá-pra-escrever-normalmente-em-partituras-de-tão-alta-que-é’.

E por falar em excentricidades, já houve gente por aí que declarou ser ‘Got Be There’ uma canção tão esquisita que não poderia ter sido cantada por ninguém menos singular que Michael Jackson. É claro que essa singularidade refere-se, ainda, à sua monstruosa versatilidade interpretativa e à sua sensibilidade auditiva inumana. E é preciso frisar que esse argumento de quem quer que seja consegue ser ainda mais ridículo que o inaceitável maiô dourado que o futuro ‘dono’ dos Beatles usaria mais tarde. ‘Got to be There’ é um dos tiros mais certeiros e inspirados do compositor Elliot Willensky. Uma preciosidade do cancioneiro black setentista. E ela é, isso sim, de execução vocal quase inviável para aventureiros. É por isso que uma Pitty não a canta. É por isso que um Badauí não a canta. É por isso que Alicia Keys, mesmo com todo o potencial, precisa ser multada severamente a cada tentativa de torná-la minimamente audível. E não se trata apenas da amplitude tonal. Em termos modais, a faixa comporta-se como as gravuras antigravidade de Escher: mesmo sobre um cenário hostil, é possível sentir a fluidez do movimento. Tradução: o cenário harmônico é labiríntico. Mas a linha vocal, conduzida com intensidade pelo protagonista, é o caminho que dá sentido ao ‘caos’.

‘WHAT THE FUCK YOU TWO IS DOING HERE’

Até aqui, ‘Got to be There’, o disco, revela-se uma assustadora coletânea de faixas de altíssimo valor marcadas por desempenhos humilhantes. Mas alguém teve a corajosa idéia de frear o fluxo com as murchas ‘Rockin Robin’ e ‘Maria’. É claro que a primeira, um rockão a la Little Richard de Jimmie Thomas, mostra um pouco da adaptabilidade do moleque em outros terrenos. Mas sua retidão e repetitividade destoa do que foi apresentado e arremessa o repertório pra cima em um momento que ninguem pediu. E se fosse para pedir alguma coisa, seria pelo surgimento de, no mínimo, outra ‘I wanna be where you are’. A escura ‘Maria’, então, talvez fizesse menos estrago melando o repertório dos The Four Tops, que a cometeram em um provável acesso de preguiça. Mas em uma obra como essa, é uma furiosa mordida na língua em pleno deleite do rodízio. Levada por um cravo em dois acordes, a peça soa apenas como a longa introdução de algo que parece nunca começar – e, quando finalmente o faz, já é tarde demais para que não se deseje, com certa pressa, que termine.

Entre essas duas minas, entretanto, há ‘Wings Of Love’, criação de uma não-tão-enigmática-assim ‘The Corporation’ – nada mais do que Berry Gordy e seus últimos parceiros de buraco do fim de semana mais próximo. Com sua atmosfera de melação cinquentista, a peça vinga a queda rumo à mesmice que a dupla antidinâmica acima ameaçava promover e dispara entre as mais belas baladas do disco. A interpretação de Michael aqui, por outro lado, pega o ouvinte no contrapé do costume por coisas mirabolantes e revela-se comedida. Mas ainda assim está longe de ser burocrática.

‘Love is here and now you’re gone’, por sua vez, é o tipo de canção que deveria ter sido duplicada no repertório, empurrando ‘Rock’n’Robin’ para algum disco ruim de Elton John. Todo o arranjo da faixa foi baseado na versão das Supremes. Mas, ao mesmo tempo, trabalhada para superá-la – o que foi alcançado. Pulsante e harmonicamente convincente, a peça é liderada por um Miguelzinho em firme timbre feminil e sem medo de levar umas boas palmadas da titia Diana Ross, claramente relegada a apenas alguem que ‘tambem’ interpretou a canção.

A peça anterior já seria um bom encerramento para a obra. Mas algum ser, provavelmente de sensibilidade extraterrena, achou que só valeria a pena se fosse excelente. E eis ‘You’ve Got a Friend’ na versão que Carole King nunca conseguiu arrancar de si mesma. Só que o mérito não se limita ao desempenho acima da média do intérprete central. Assim como todo o disco, a faixa é resultado de um esforço caro de reembalar canções alheias com arranjos e adornos inalcançáveis. Das cordas a la Paul Mauriat da introdução à condução fundamentada no baixo e na meia lua, tudo converge para estabelecer a faixa como o ponto alto da obra – e no local em que o ápice geralmente mais causa impacto: no fim.

Há muitas especulações acerca da pressa e do desespero de cunho pecuniário que envolveram ‘Got to be There, já que, mesmo sendo uma jóia, o moleque era um investimento sem sustentabilidade (a fase voz-de-arara-com-febre que acomete todos os pivetes na puberdade o aguardava dali a prováveis poucas horas para interromper seu registro feminino). Mas essa constatação de correria desenfreada apenas valoriza ainda mais o passe do disco. Porque é de se aplaudir que, de uma só vez, Berry Gordy e sua patota tenham concebido um clássico do trabalho coletivo - o mérito é tão do protagonista do álbum quanto de quem decidiu cobri-lo de louros - , um clássico da Motown de todos os tempos e, ainda, o lançamento definitivo do último gênio em miniatura que se viu por aí.

08 outubro 2009

PRÊMIO ‘COCÔMENTÁRIO DO ANO’ - I


Muito bem baixinhos, hoje estrearemos uma nova seção neste antro de maledicências. Trata-se do prêmio ‘Cocômentário do Ano’, destinado às reações mais notavelmente esquizofrênicas e apaixonadas diante dessas ‘humildes’ resenhas. Nosso primeiro candidato é um rapaz (?) tímido chamado Anônimo, que tratou de deixar a marca de sua patinha na resenha ‘O Homem que Não Estava Lá’ sobre o indigerível ‘À Flor da Pele’, de João Moura. Leiam. Volto depois (obrigado, R. Azevedo).

"É impressionante o quanto aqueles que menos sabem, se arvorarem a tecer criticas horrendas e asquerosas contra simples mortais que apenas buscam um lugar em seu reduzido universo nordestinado. As elites sempre se pautaram na leveza da vida fácil, às custas dos esforços dos mais humildes, e, quando um destes intenta alçar vôos mais altos, é certo que surgirá um deles a subjulgar o talento popular e se arvorar a sabedor dos caminhos que conduzem à luz. Pequenos de espírito são os que sobrevivem do sangue e suor alheios, como os mais perfeitos parasitas, como este crítico, que beira a imbecilidade para atacar uma obra de que deveria sentir orgulho. Isto por várias razões, más ao invés, prefere agradar aos "mentes vazias" que ostentam o glamour de uma sociedade em abissal decadência. Critique. Critique sempre. Malhe o dom dos outros, pois a você, senhor crítico, foi reservado pelo universo a gerar os fatos que deleitaram os donos da corte, da qual vossa pessoa é, senão, o elegante bôbo. Felicidades na medida do seu merecimento".

AGORA EU.

Tenho alguma desconfiança bem fundamentada acerca da identidade de quem escreveu esta pérola subromântica acima. Talvez tenha sido alguem que, depois de ter lido a orelha de alguma obra de Eça de Queiroz, tenha achado tudo muito lindo e decidido brincar de adivinhar o significado de algumas palavras e o posicionamento de algumas vírgulas. Mas lá no fundo mesmo, já resvalando no meu tédio - como faço em quaisquer comentários desse naipe que me aparecem por aqui -, a identidade deste incomparável gênio das letras não me interessa. Mesmo assim, palmas. Muitas palmas para o sr. Anônimo. Porque eis que, por trás de sua retórica machadiana (de seu Machado, simpático vendedor de inhame das feiras de sexta daqui perto), nosso bardo atingiu um feito tão inacreditável que se tornou muito difícil a recomendável tarefa de ignorá-lo: conseguiu ser mais entediante que o próprio disco de João Moura.

Comecemos pela classificação do artista em questão como um arauto da humildade. Ou como um pobre operário artístico. Ou como um comedor de PF dos teatros. Ou como um bravo gari de casas de espetáculo. Coitadinho. Brasileiros e brasileiras: João Moura está pedindo socorro. A falta de patrocínio e de infraestrutura afetou sua inventividade para compor e arranjar e, por isso, nosso herói não alcançou as ‘condições ideais’ para gravar o seu disquinho. Vamos nos sensibilizar e adquirir imediatamente toda sua obra antes que ele comece a vendê-la nos ônibus - para completo desespero dos próprios usuários e da concorrência, formada por vendedores de canetas, adesivos e chicletes. Seguremos então nas mãos de Deus. E vamos... para o próximo parágrafo.

Ora, fazer carinha de choro não dá mais graça, pois a luta de um artista pelo seu reconhecimento não é uma qualidade individual de João Moura ou de qualquer outro. É um aspecto inerente à tortuosa trajetória (bocejo) de qualquer um que se arrisque a ganhar seu pão - ou seu farelo - tocando, cantando, compondo, dançando, romanceando, poetando ou filmando por aí (coma sonífero). O uso da dificuldade como argumento é a admissão da incapacidade de ser versátil e criativo – porque as dificuldades nunca impediram a inventividade, isso quando não a intensifica – e, por extensão, é a admissão da falência da própria obra.

Uma acusação engraçada é a de que a crítica é um exercício de quem se acha conhecedor dos ‘caminhos da luz’. Caminho da luz, pra mim, é a estradinha de barro que vai dar na Energisa, a empresa que administra a rede elétrica daqui. Isso porque não existem fórmulas ditadas por Deus para uma obra de arte perfeita. E essa é a grande graça da Arte. E é o que nos deixará versando e brincando de entender dela até os dinossauros voltarem de seu já demorado passeio extradimensional. Na verdade, talvez o sr Anônimo tenha confundido ‘pregação’ com ‘opinião’.

Não acabou. Ainda há o indispensável ‘tem pena d’eu’, que assoma vez ou outra em discursos do tipo acima qual bravios ‘marinheiros’ em descarga mal dada. Ao frisar expressões como ‘apenas buscam um lugar em seu reduzido universo nordestinado’ e ‘obra de que deveria sentir orgulho’, nosso Augusto dos Anjos está argumentando que, ‘apesar de ser nordestino e viver no salci-fufu do mundo, João Moura conseguiu ser músico e compositor, e isso é um mérito que se basta’. Não é não. Ora, o Nordeste é de fato o fim da picada. É - ainda - o lixão de um país que, por sua vez, é um aterro sanitário. Mas a fome, a cólera e a miséria, ainda que possam atrapalhar a construção daquele hospital, o financiamento daquele projeto ou o leite daquelas criancinhas, não justificam a anemia cultural. Dois pontos aqui: na Arte - com algumas reservas ao dispendioso Cinema -, não existem justificativas socioeconômicas para quem é apenas pura e simplesmente ruim.

O que é ainda mais temerário é que a linha argumentativa do coitadismo é compartilhada por uma patota numerosa que realmente se leva a sério. Isso significa que aqueles que se referem a si mesmos como artistas ‘apesar’ de nordestinos ou habitantes de um ‘reduzido universo nordestinado’ também se auto estabelecem paladinos de uma tal identidade cultural local (que rima com pega no meu p...). Mas esse assunto é tão chato e circular que nunca-na-história-deste-país alguem chegou a algum lugar, ganhou dinheiro ou sequer conquistou alguma garota com ele. Já estou suando frio para encerrar logo toda essa verborréia.

Então que se diga de uma vez por todas que: o atributo ‘humildade’ não interessa, nunca interessou e nunca interessará a quem quer que venha a analisar um trabalho artístico qualquer com o discernimento um pouco maior que o de uma galinha. Arrogante ou simples, irascível ou maleável, machão ou baitola, afetado ou cool, conservador ou relativista, experimental ou nostálgico, o protagonista tem que mostrar a que veio dentro dos malditos 60 minutos que lhe são disponibilizados na mídia de vinil ou de acrílico. É lá que ele tem de se justificar. E já está tarde para reforçar que, ao se gravar um disco, é preciso trocar essa humildade broxa por coragem e vergonha na cara, pois ‘imortalizar-se’ em uma gravação é coisa de quem está colocando o lindo rostinho a prêmio. Quem sente pena de si mesmo que não cometa o desgraçado erro de disseminar-se, poupando o mundo de sua autocomiseração, de sua preguiça e de sua miséria criativa.

Quem não consegue compreender que a resenha estética de um disco precisa ignorar o processo de manufatura para se concentrar no produto não sabe em que se meteu. Está perdendo tempo no meio artístico, quando poderia, por exemplo, reforçar a venda de inhames em feiras populares afora. É o que se recomenda ao nosso amigo acima, uma vez que é preciso fazer um esforço mastodôntico para arrancar de suas poucas linhas algum argumento válido. Nem mesmo o mote de que a ‘sociedade está em abissal decadência’ é algo digno de reflexão. Porque a sociedade não está em decadência. A sociedade, ao contrário, já se tornou um imenso show de calouros, onde gênios e aberrações têm espaço garantido. E a maior prova disso é alguem como João Moura ter conseguido gravar um disco - apesar não de ser nordestino, mas de ser detentor de uma inesgotável capacidade de não ter absolutamente nada para mostrar. Isso, amiguinhos, é ser feliz muito acima de seu merecimento.