28 novembro 2010

ESCURO COMO A TARDE

O quê: “Bicicletas, Bolos e Outras Alegrias”, de Vanessa da Mata (2010). Participaram os músicos Gustavo Ruiz, Donatinho, Stephane San Juan e Kassin, que também produziu.    

Nota: 7,83

Vanessona é uma festa. Não tem pintassilga mais simpática do que ela por aí. E a culpa não é daquele sorrisão de desarmar minas terrestres. Nem do magnetismo que a qualifica a dar umas aulas de carisma pra Claudia Leitte, Teresa Cristina e Mariana Aydar. É da honestidade do seu som. E isso é muito na era mais academicista, asséptica, revisionista, e paulista do cancioneiro nacional. É muito, também, diante do intimismo e de certo ressentimento que predomina em ‘Bicicletas, Bolos e Outras Alegrias’. Porque lançar um trabalho de feição mais comedida, sem carros alegóricos como um ‘Ai ai ai’, no auge de uma carreira marcada pela consistência qualitativa, é correr o risco – ainda mais – de arranhar a lataria nos choramingos de Marisa Monte – que só funcionam com a própria cria de Nelson Motta. Mas Vanessa, que não é paulista, tem brilho próprio. É um vórtice de organicidade. E seja por isso, seja pela competente turminha de musiqueiros que conseguiu recrutar, nossa querida varapau conseguiu entregar uma das obras nacionais mais fáceis de digerir bem dos últimos anos.

Só não é extraordinária. Tem lá seus dois ou três equívocos – alguns deles (provavelmente) decorrentes do excesso de condescendência da própria protagonista. Mas não se configuram em pás de cal pra riba de todo o resto. Certo ou errado, é trabalho sedutor e despretensioso. Não é um disco de verão sobre temas perenes, mas um trabalho perene sobre temas de verão. Mas a descrição mais fidedigna é esta: se fosse uma hora, ‘Bicicletas, Bolos e Outras Alegrias’ seria cinco e onze da tarde. É o instante em que ainda se tem algum sol, mas não se quer mais saber de tanta algazarra. Ou: se ‘Essa Boneca tem Manual’ é uma competição de surf, ‘Bicicletas, Bolos e Outras Alegrias’ é um passeio de pedalinho. 

Crescendo

Poderia, porém, começar com mais força. Não que ‘O Tal Casal’ seja algo nulo e insípido. Estão lá o protagonismo de um baixo de reggae pulsante e matemático, excelentes timbres de guitarra vintage e a consolidação de nossa heroína como alguém que não precisa mais provar sua habilidade como costureira de linhas vocais aderentes. Mas essa pecinha é morna demais para um intróito. E iniciar sem pretensões, de cabeça baixa, pedindo licença com as mãos pra trás, é quase sempre uma forma de fazer a audiência considerar a decisão de prosseguir ou não.

A tarefa da abertura talvez coubesse melhor à chorosa ‘Te Amo’. Uma vez na proa de tudo, ela definiria com correção o idioma do resto do trabalho. Claro que nunca será demais notar que, despida da atmosfera indie da cozinha, essa faixa soaria como um típico queixume marisamontesco. Mas seu posicionamento logo após a colorida e jocosa ‘Fiu Fiu’ obriga a população a um exercício de senso de humor. De modo que, muito mais do que um aparente discurso a respeito da resistência do romantismo, ‘Te Amo’ é só uma faixa ‘fofinha’, de brinquedo.

O irônico é que a brincadeira acaba, por um tempo, com algo nomeado ‘Meu Aniversário’. Nas mãos de qualquer um, algo com essa razão social poderia soar como um encontro de destruição em massa entre Balão Mágico e Patati e Patatá. Mas nossa protagonista e sua turminha têm absoluta noção dos ingredientes que devem usar. ‘Meu Aniversário’ é um pop vertical, anti-gravidade, mas não como algo que lembre uma ciranda. É fechada, amarga, muito mais um expurgo de coisas ruins do que um inventário de boas vibrações. E é soberbamente bem arranjada e construída. Não demoraria a virar um hino para a ocasião que celebra.

‘Vê se fica bem’, por sua vez, forma com a anterior a verdadeira dupla de ataque da obra. Ambas são o ápice de todo o trabalho. O flerte com o brega – escolha sempre perigosa e muito mais controversa do que acreditam os para-acadêmicos da populice –, não atrapalha. Até porque o que dita tudo é a organicidade dos instrumentos, a imensa sombra do baixo e a transformação de uma levada caribenha em um pós-reggae de muita personalidade. O refrão, excelente, é o mais sofisticado do disco até aqui. E apesar da letra pesadamente ressentida, a ironia dos timbres não permite que se caia um minuto na cilada da dor. Em Vanessa da Mata, tristeza é um elemento meramente cênico. É uma lágrima pintada no rosto com tinta guache.

Ai, ai , ai...

Embora não seja nenhuma regra que após um grande aclive venha sempre um vale, lá vem barranco. E ele vem sob a forma de um xaxado elétrico nomeado ‘Bolsa de grife’. Feita a mão para festivais, o que nunca fez mal a ninguém – principalmente a Vanessa, atual rainha do horário nobre da bicho-grilagem –, eis uma pecinha que está ligeiramente abaixo daquela que já estava ligeiramente abaixo das outras. É uma extravagância (digamos que) recifense para manter a plateia animada na chuva. Mas só. Em um disco com o formato que foi apresentado até aqui, uma coisa dessas só funciona no tranco. Ou nem funciona.

Como uma coisa ruim nunca vem sozinha, ‘Bolsa de Grife’ vem de braço dado com o formulaico soft reggae ‘As Palavras’ e a apenas estranha ‘Vá’. Na primeira, a ausência de esforço da produção para variar fórmulas românticas combina com o excesso de esforço da audiência para lembrar da peça alguns segundos após sua execução. A segunda, timidamente mais feliz, é até regida por um baixo inventivo de deprimido background harmônico. Mas a doce decisão de colocar alguém descendo a ripa na percussão o tempo todo transformou tudo em um imenso estribilho. Daí passarem-se dois minutos de faixa com a sensação temporal de terem sido, na verdade, oito. 

Mas lá pelas últimas, Vanessona se redime com a excepcional ‘O Masoquista e o Fugitivo’, a coisa mais Rodrigo Amarante que Rodrigo Amarante não fez. Por que, hein? Por que é uma rumba? Não. Porque é uma rumba soberbamente harmonizada e riscada por linhas vocais capazes de entristecer comerciais das Casas Bahia. Como se não bastasse isso, ela ainda é arranjada com aquela mesma tropicalidade contida que anda fazendo falta graças a essa grande bosta quente que o Los Hermanos chama de recesso. Mesmo exitosa, porém, a faixa, uma das últimas, não tem aquela feição de encerramento de nada. Só que esqueceram de avisar a alguém que ‘Quando Amanhecer’ também não tem. E é justamente esse troço, que traz Gilberto Gil em participação especial, que encerra o trabalho.

O problema é que ‘Quando Amanhecer’, completamente acústica e com sonoridade deslocada do resto do disco, soa como algo que foi enfiado lá nos últimos pigarros da mixagem. A presença do ex-ministro não quer dizer absolutamente nada, mas Vanessa parece se esforçar para significar que sim. Tanto que, em uma demonstração de devoção cega ou surda, posiciona-se agachada o tempo todo, mantendo sua voz ligeiramente mais baixa que a do seu parceiro de dueto. E a canção em si não é nada demais que justifique uma gravação. Nos bons momentos, aparenta ser uma faixa pouco inspirada de Jorge Vercilo. Nos ruins, parece ser um esboço de algo que não foi – e talvez nem deve ter sido – terminado.

Mas a atual cena nacional ainda é isso: um amontoado de gente deslumbrada. Gente deslumbrada com artistas históricos, com propostas históricas, com idéias há muito esgotadas, com objetivos há muito alcançados, com canções há muito feitas, com carreiras há muito já traçadas. É necessário um pouco mais de arrogância e soberba. É necessário chutar algumas bundas canônicas por aí. Mas é muito pedir isso a Vanessa da Mata. Ela é um amor. E consegue ser uma excelente intérprete ao mesmo tempo, a despeito de sua capacidade de sorrir para o baiano que quase melou sua obra. Mas só quase.  Porque é preciso muito mais do que alguém com alguma preguiça pra estragar um passeio de pedalinho às cinco e onze da tarde.

03 novembro 2010

Discografias - DEATH



Quem não gosta de metal pesado pode parar de ler por aqui e dar o fora. Post pra frutinha é lá embaixo, onde está minha entrevista. Não vou admitir aqui quem não se incomode de ignorar o que seja o Death. E quem diz que escuta Heavy Metal e não os conhece já está autorizado a ter uma camisa da Pitty. Antes de conhecê-los, eu mesmo me enquadrava nessa categoria. Não que eu gostasse de Pitty - não era pra tanto. À época, minha praia era o cancioneiro mineiro: ‘Arise’, do Sepultura, e ‘The Hangman Tree’, do The Mist. Mas muita coisa ficou sem graça depois que descobri o filho da puta do Chuck Schuldiner (1967 – 2001). Uma dessas coisas foi a vontade de aprender guitarra. Outra foi a camisa do ‘And Justice for All’ – uma obra que admirei e admiro terrivelmente, mas que sempre me exigiu menos.

Mesmo assim, o Death me ajudou a entender que também havia obras-primas no metal extremo. E que elas poderiam, inclusive, se posicionar acima de muita coisa de qualquer gênero. Mas nada é mais assustador do que a solidão – ou a solidez da originalidade - desse projeto. Ora, Schuldiner se foi e a banda acabou há quase dez anos. Praticamente todos os músicos que interessam no meio extremo a citam como influência. Mas, de lá pra cá, só o Cynic finge seguir sua trilha. O que é o mesmo que nada, já que Cynic é ruim pra caralho.

Se você permitiu que sua leitura chegasse até aqui é porque deve ter sangue e algum juízo. E por isso também irá suportar uma breve análise discográfica dessa bandeca, apenas o maior projeto de metal extremo de todos os tempos. 



Scream Bloody Gore (1987) – Tosquinho . Ingenuozinho. Podrinho. Mais audível do que pelo menos 99,77% das estreias de outras bandas de metal extremo – e isso inclui todos os gigantes. Mas ainda assim muito longe de ser algo importante. Na verdade ‘Scream Bloody Gore’ só interessa mesmo como instrumento de afirmação da ala dos fanáticos, aquele grupelho de gênios que costuma venerar as velharias de qualquer banda mais pelo distanciamento que representam da fama do que por qualquer coisa que possa ser levada a sério. Só que o assunto aqui é maturidade e qualidade sonora – nem necessariamente de gravação. E esse disco aí é apenas um retrato da podridão disforme que era o death metal em sua fase embrionária. É claro que aquilo ali era o Death. Olha lá os intervalos de quinta tão característicos no riff introdutório de ‘Zombie Ritual’. Olha lá as estruturas atonais, os solos estrábicos, as mudanças de andamento do nada absoluto em todas as faixas. Mas é isso: a única forma de apreciar uma obra dessas é com a lente da curiosidade. E medir, no fim das contas, o tamanho dos passos que a banda daria até que definitivamente fizesse história. 







Leprosy (1988) – É ligeiramente superior ao anterior. O que não quer dizer porra nenhuma. O que diz alguma coisa é o fato dele ser considerado um clássico absoluto do metal extremo dos anos 80, dando conta do quão tudo era ruim e mal feito na época. ‘Leprosy’ ainda está dentro daquela esteticazinha chulé de peças repletas de riffs sem personalidade, emitidos a esmo e com irritante agudez. O death metal ainda estava sem face. O importante, ainda, era não soar tão melômano quanto o heavy metal clássico e evitar o caos desesperante do punk. No fim de tudo, entretanto, o que se ouvia era apenas uma reunião de estruturas que faziam força pra se integrarem – quando isso acontecia. Notável aqui só é a sutil preocupação de Schuldiner com o posicionamento das linhas vocais. Pra ele, o vocal berrado não era apenas um arroto ulceroso pra justificar uma estética mais nervosinha. Era um instrumento de marcação, com hora pra entrar e sair, com acentuações, com valor. Mas ainda faltava muita coisa. Até aquele momento, o Death só era importante dentro de uma panelinha fechada de projetos muito ruins. Como qualquer coisa que o metal extremo oitentista legou para a humanidade.  






Spiritual Healing (1990) – Melhor registro da fase primária, é mais complexo e elaborado em relação ao Leprosy do que este pro seu antecessor. Os riffs estão ainda mais complexos e rápidos. Os timbres estão mais trabalhados. A ritmia vem mais quebrada, apesar do raciocínio pão com ovo do baterista. Não era nada de extraordinário, mas é certo de que já não havia ninguém no mundo fazendo o que o afetadinho do Schuldiner fazia. E talvez ‘Spiritual Healing’ pudesse ser uma obra ainda melhor se nosso amiguinho tivesse à disposição uma banda a altura de seu próprio crescimento técnico – o que aconteceu no disco seguinte. ‘Altering the future’ é um bom exemplo disso. Sombria e com fraseados impensáveis em qualquer obra anterior do Death, poderia estar no ‘Human’ – se uma criatura das trevas como Sean Reinert tivesse pensado sua bateria, claro. Apesar de ‘Spiritual Healing’ ser um disquinho até interessante, é muita coisa chamá-lo de obra de transição. É mais uma despedida. Para alguns, um adeus à fase ‘true’. Para os que realmente apreciam com os ouvidos, um olá para o estabelecimento do Metal como arte de primeira grandeza. 







Human (1991) – Eis o momento em que o Death para de soar só razoável e passa a se firmar como algo monstruoso e digno de nota. Em relação ao disco anterior, ‘Human’ corresponde a um salto terrível. A bateria de Sean Reinert, então um pivetão de 20 anos, é irreproduzível. Schuldiner, provavelmente ciente do valor da banda que conseguiu recrutar, também inflou assustadoramente sua técnica. Os riffs são os mais complexos da época. Os solos, os mais sofisticados do estilo. A ‘doidiça’ de quebrar as peças em partes não relacionadas é elevada ao último grau. ‘Human’, enfim, foi o disco que mostrou que o death metal só é viável e diferenciado com técnica, muita técnica. Daí ser uma estilística para poucos – escassez válida pra músicos e apreciadores. Nada naquele tempo poderia ser mais medonho do que os intrincados riffs abafados de ‘Secret Face’. Nem mais cortante do que os fraseados de ‘Vacant Planets’. Nem mais desesperado do que ‘Flattening of Emotions’, que, surgindo em fade in no início do disco, anunciava que ninguém iria alcançá-los mais. E não iriam mesmo. 





Individual Thought Patterns (1993) – Mantem o nível técnico do ‘Human’, mas é timidamente inferior em qualidade de gravação e de composições. Mas apenas timidamente, o que significa que, ainda assim, é cavalar. É o primeiro registro com o baterista Gene Hoglan, outro hipopótamo que consolidaria a tradicional presença de drummers ignorantes – aqueles que tornam o cover uma missão insalubre, quando não impraticável - como prerrogativa do Death. Aqui, Schuldiner fica mais animadinho com a linguagem jazzística, o que se reflete nos solos e na permissão dada ao baixista de gravar com alguma-coisa-que-soa-feito-um-fretless. Mesmo menos impressionante do que o anterior, ‘I.T.P’ ainda é obra extremamente original. E ainda se dá ao luxo de trazer belíssimos solos (‘The Philosopher’), coisa rara entre as obrigatórias nojeiras do metal extremo. 







Symbolic (1995) – Eis a bandeira do Death no Everest. O auge de sua estética. Porque Symbolic é um arregaço de 50 minutos. Menos minimalista, mais épico e mais ‘fácil’ (pelo menos pra quem já os conhecia) que o resto da discografia, ainda assim é o trabalho mais atormentado - e bem produzido - da patota de Schuldiner. Hipopoticamente cavalo, terrível, escuro. E genial. O riff da faixa título parece brincadeira. É o tipo de coisa que Kerry King vai passar mais 20 anos tentando fazer. ‘Zero Tolerance’, por sua vez, é um troço jamais recomendado àqueles que só precisam de um empurrãozinho pra sair metralhando pessoas em supermercados e micaretas. Não pela letra; pela força vital (ou mortal) e tormentosa que carrega. O ‘pior’ é que todas as nove peças dessa desgraçadíssima bolacha são assim. O que faz com que esse ‘Symbolic’, muito mais do que o melhor disco do Death, seja um dos mais sólidos registros da eloquência do Heavy Metal de qualquer tempo.  





The Sound Of Perseverance (1999) – Obra mais seca, técnica, matemática e praticamente inalcançável – no bom sentido. Mais complexo que o ‘Symbolic’, ‘The Sound of Perseverance’ foi pensado pra ser uma saideira. Mas pela gravadora do Death. Concentrado no seu excelente projeto paralelo Control Denied, Schuldiner, já lenda absoluta do metal, não queria mais papo com o death metal- até ser intimado a deixar mais alguma coisinha pros mortais. E o resultado dessa solicitação não poderia ser menos absurdo. A abertura ‘Scavenger of Human Sorrow’, cortante, marcial e com riffs acentuadamente atonais, é a síntese de uma violência calculada e contundente que seria proposta em todo resto da obra. A terrível ‘Story to tell’, um dos fastígios dessa linguagem, traz um dos refrões mais impressionantes de todo o metal. ‘Flesh and Power it holds’, uma das mais megalomaníacas peças de Schuldiner, consegue ser épica e violentíssima. E pra variar, grande parte do disco é, em uma palavra, ‘irrealizável’. De novo graças ao time de extraterrestres unidos por Schuldiner, com destaque para o provável andróide Richard Christy – que junto com Pete Sandoval reivindica o posto de baterista mais rápido e ignorante desse lado de cá do sistema solar. Só superado pelo ‘Symbolic’, ‘The Sound of Perseverance’ elevou o idioma do metal extremo. E o fez a um nível tão alto que ninguém tem a menor idéia do que seria o Death se Schuldiner ainda estivesse por aí.