14 março 2009

INTOCABILIDADE, LOGO, FRACASSO


A obra: ‘Megafone’, da Sulanca, trabalho gravado em 2005. Banda é formada por Jorge Ducci nos vocais, Márcio Augusto no baixo, Yuri Garin nas guitarras e Ciborg, Pequeno, Tom Toy, Rafael Jr e Júlio Fonseca na percussão.

A crítica:

Indicado para: quem precisa de canções pula-pula e repletas de barulho para o momento mais alcoólico (e musicalmente desinteressado) de alguma calourada.

Nota: 3,31

Viva a pesquisa cultural. Viva o resgate das tradições, das raízes, das origens, pois quem não sabe de onde veio, não sabe pra onde vai. Portanto, passe-livre para os pesquisadores das raízes culturais já. Ticket-alimentação grátis aos dedicados estudiosos da cultura pra ontem. Ao se deparar com um pesquisador cultural no meio da rua, trate de fazer continência. Ou melhor, faça continência e algum comentário elogioso. Se estiver de carro, dê carona pra ele. Se encontrá-lo de pé no ônibus, ceda seu lugar. Se o estudioso cultural duvida de sua capacidade intelectual para apreciar Arte, acredite: ele está certo.

Mas quando o resultado de sua pesquisa é revestido por elementos autorais; quando seu maravilhoso e estupendo e minucioso trabalho pretende ser Arte; e quando tudo resulta em um disco, a mesa vira, mané. E a melação reverencial que seja selada, lacrada e enviada aos soluçantes órgãos de cultura. É hora de desconfiar de tudo, de duvidar de tudo, de deixar de prontidão o cuspe e o pontapé – mesmo que jamais sejam recorridos como elementos de reação. Nesse novo contexto, se alguém estiver de carro e se deparar com um pesquisador cultural, passe direto. Se encontrá-lo de pé no ônibus, finja que está dormindo. Se o sujeito duvida de sua capacidade intelectual para apreciar seu próprio disco, boceje: ele gostaria muito de estar certo.

É claro que Jorge Ducci gostaria de estar certo quanto à qualidade de ‘Megafone’, obra quase que totalmente idealizada por ele. Mas as fotos que ilustram o encarte do disco revelam uma disposição um tanto mais ambiciosa. Nos registros, cada componente do octeto figura em ângulo parecido, fazendo poses parecidas, dispostos como iguais. Ducci, não. Messiânico, superior, etéreo, o vocalista é representado em folha à parte, em dobra contrária, fotografado por outro ângulo e com a imagem recortada, de forma que se torna impossível distinguir seu rosto. Não que vê-lo seja lá grande coisa. Mas é particularmente intrigante como tamanha afetação de inacessibilidade desperta uma sensação nada favorável ao trabalho: a de que ‘Megafone’, por ser exercício ególatra de um pesquisador cultural, seja fundamentado no paternalismo chulo dos bichos-grilos de classe média.

É da cloaca do paternalismo que nascem os raciocínios de que o folclore é infalível e de que a pesquisa cultural é um álibi indestrutível contra a apreciação estética. Mas essas coisas são tão absurdas que é possível proferi-las ao som de uma orquestra de vacas tossindo. Indestrutível uma ova. Infalível coisa nenhuma. Folclore é por tantas vezes um negócio tão chato e maçante que precisa ser reinventado e recauchutado zilhares de vezes para sobreviver – vide repertório erudito. E para que alguem seja irremediavelmente bom em algo a ponto de estar protegido da opinião de quem quer que seja, é preciso estar irremediavelmente morto. Quem pesquisa obviamente não morreu ainda, mas pode contribuir para a convalescença de sua credibilidade ao investir no discurso de gênio incompreendido de mictório de biblioteca. Jorge Ducci não é gênio e não goza do privilégio de ser incompreendido, mas demonstra ter freqüentado mictórios de biblioteca. O resultado: ‘Megafone’, uma obra que poderia se esconder atrás da pretensão educacional para fugir da apreciação, mas que não passa de mais uma obra estragada pelo excesso de confiança de um único sujeito – e, portanto, suscetível ao cuspe e ao pontapé.

É preciso lembrar que pretensão ideológica e inconsistência estética nem sempre andam de mãos dadas. Mas é claro que a Sulanca se esforça para conciliá-las, e inicia a obra com uma vinheta enfiada de qualquer jeito. Se há um local escandalosamente inadequado para uma brincadeira de 20 segundos, esse lugar é justamente a primeira faixa. E foi exatamente lá que puseram ‘Aguerê de Oxossi’, partícula que poderia funcionar dentro de alguma outra peça, mas soa absolutamente deslocada sozinha. Como tudo passa rápido, espera-se o início definitivo da obra, mesmo com o resfriamento de ânimo provocado por essa gota de barulho.

‘Ondé Cô Tô’ é esse início definitivo. A miséria harmônica e a absoluta inexistência de linha melódica contrastam com a riqueza da parede percussiva, muito bem equilibrada e executada com organicidade. É logo aqui que a Sulanca deixa mais do que explícita sua proposta primal: costurar malícia e agressividade com rusticidade. O problema é a solução encontrada pelo vocalista para contribuir com esse ambiente pétreo. Abusando do vocal rasgado e em baixa tonalidade, Ducci soa como um Pedro de Lara entupido, falando irritantemente baixo. ‘Enterro de Anão’, a seguinte, tem percussão ainda mais diversa e complexa. Mas além de apresentar uma variação ainda mais esquizofrênica do vocal catarrento, a canção é anêmica demais para ser vislumbrada em outra circunstância que não uma festa de calourada ou um pula-pula qualquer para universitários. E mesmo assim é peça para ser executada quando já não é possível prestar atenção em mais nada.

Mas é em ‘Marimbondo’ que fica claro o mais característico embate da obra. No lado direito, o competente time de percussionistas levando tudo no batuque, somados ao baixo e à guitarra que não são nada demais, mas também não atrapalham. E na outra extremidade, usando calção de chita, Jorge Ducci e sua performance pra lá de apagada, reta, sem criatividade e insistente em uma tonalidade baixa que retira toda a força da faixa e diminui o brilho das invencionices percussivas. Nos mesmos moldes está a cansativa ‘Dinheiro’. Mas ao menos o abuso de seus longuíssimos três minutos de palidez expressiva é atenuado pela imprevisível malha rítmica.

O argumento de que o péssimo desempenho vocal foi conseqüência de uma mixagem de fim de expediente vai pro lixo com ‘Sulanqueiro’. Nessa faixa, a voz está de fato mais clara. Só que isso não é e nunca será sinônimo de melhora, pois se constata imediatamente que nada se perdeu com a voz de Ducci devidamente mantida em sigilo. E é inevitável o desconforto ao se perceber que, enquanto o pau come nos arranjos do refrão e empurra a canção pra cima, a voz insiste no tom baixo, completamente alheia ao deliberado ambiente de bagunça e força regional. A letra, que pende a hino-manifesto, é um clichê sem tamanho em seu exercício de auto-afirmação cultural. Já a burocrática ‘Stanie Rie’ parece ter sido feita apenas para preencher repertório.

A única peça de ‘Megafone’ digna de alguma lembrança é justamente aquela que agrega todos os elementos bem-sucedidos até aqui com riqueza melódica, dramaticidade, diversidade nas estruturas e performance vocal suportável. Interessante do primeiro ao último segundo, ‘Pedra de Amolar’ tem o nome sugestivo exatamente por significar o ponto de partida para a dilapidação das propostas estéticas do grupo. E haja esforço pra isso, pois peças como a burocrática e miserável ‘Ui, ui’, costurada por estridentes riffs de punk; a repetitiva ‘Terra Dura’, ainda que bem letrada; e da nada empolgante ‘Pai de Rua’, só atestam que a obra passa longe de ser necessária na discografia de alguém que faça mais do que ficar pulando desinteressadamente.

Só que é muito difícil que algo de pertinente resulte de alguém que consegue ser a pior coisa de seu próprio trabalho, o defeito de sua própria idéia, o obstáculo de sua própria proposta. Força-motriz da alfabetização cultural de calourada que ‘Megafone’ exala, Jorge Ducci, como pesquisado cultural que se preze, pode ficar à vontade pra duvidar da capacidade intelectual de quem quiser. Mas nada de continência nem ticket-alimentação pra ele.