19 julho 2008

A MORTE DA GRAÇA


A obra:


‘Etc e tal’, da Psicodélicos e Psicóticos, gravado em 2006. Banda é Vina Torto nos vocais, Dedeu Costa nas guitarras, Edu no baixo, Adson nos teclados e CH na bateria.

Nota: 1,61


Vanguarda artística é um saco. Por isso combina tão bem com freqüentadores afetados de vernissage. Por isso combina tão bem com bebuns declamando Rimbaud em eventos alternativos. Por isso combina tão bem com guerrilheiros de mercadinho agendando abraços em árvores e declamações de Rimbaud em eventos alternativos. E ao contrário do que sempre é ensinado por aí, o vanguardismo não se caracteriza somente pela dismorfia desbravadora do que está sendo experimentado. Essa visão só se aplica às microscópicas exceções dos gênios. Na ululância da maioria, vanguarda é tudo aquilo que é feito quando o sujeito já desistiu de tentar ser bom e, em uma insistência doentia de se expressar, escancara toda sua nulidade e incompetência. Atenção então para o grande diferencial estilístico que a Psicodélicos e Psicóticos sugere neste ‘Etc e tal’: a banda não consegue sequer ser vanguarda. Mesmo assim, é um saco. E escancara toda a sua nulidade e incompetência.

Quando se escuta uma obra como essa com bom-humor suficiente para apresentação de programas infantis, é possível se importar minimamente em vislumbrar sua ‘proposta’: o flerte com a escatologia, o deboche, o non-sense e a esquizofrenia de projetos relativamente bem-sucedidos em transgressão como Zumbi do Mato, Rogério Skylab, Walter Franco e o mendicante Daminhão Experiença. Só que o chorume viscoso do Zumbi do Mato tem sua graça; Rogério Skylab, hoje pop star, quase acabou com a MPB e segue com uma heróica mão na cordinha para mandá-la à fossa a qualquer momento; Walter Franco, apesar de não merecer muito mais que o frio dos sebos, teve suas duas ou três boas idéias. Por isso é preciso muito boa vontade para reconhecer neste ‘Etc e tal’ algum elemento ativo das referências acima. Se todos os projetos citados representam a estetização da bagunça e do fracasso, ‘Etc e tal’ é a própria bagunça e o próprio fracasso.

É claro que, para quem investe em escatologia, deboche, non-sense e esquizofrenia, ser repreendido é uma vitória. O fedor foi detectado, o nojo foi sentido, o escarro foi visto, e toda a indigestão proposta foi assimilada sob a forma de um previsível desprezo. Mas, como se pôde constatar, essa pretensa anti-arte também é previsível em sua finalidade. E ainda que estar entre os expurgos de análises reacionárias seja uma conquista para os engraçadinhos ‘contestadores das normas’, banda alguma se suporta taxada como ruim em valores absolutos: ela precisa ser relevante em algum lugar, em algum nicho. E é justamente dentro do nicho do deboche e da anti-beleza que se conclui algo definitivo acerca de ‘Etc e tal’: trata-se de uma obra nula dentro de um universo já pouco relevante. Isso sim é ser ruim em valores absolutos.

Pelo menos a decisão de situar ‘Trilha da mãe senhora’ como faixa de abertura – após um minúsculo prólogo – revela alguma sensibilidade. Isso porque é nesta canção que estão relacionados todos os elementos que põem a obra na semi-final do Torneio Internacional de Teste de Tolerância. Há a mal-sucedida tentativa de emular o cruzamento entre punk e rock cinquentista dos ‘idiots’ do Green Day; a letra vazia que gravita em torno de um pretenso e desinteressante hermetismo; a ausência de humor, nunca obtido pelas irritantes e teatralizadas distorções vocais do cantor. Além da graça, a coerência também não foi convidada a comparecer: o teclado, propositalmente infantil, implora pela comédia, corre atrás de uma piada, grita pela irreverência, mas se limita à tragédia de ser, apenas, algo isoladamente ridículo em meio à palidez dos demais instrumentos.

Rir de ‘Foguete do Rei Tritão’, então, é um verdadeiro desafio. A tentativa de jazz que embasa a canção deve ter feito Bill Evans e Miles Davis voltarem imediatamente aos barbitúricos nos ‘inferninhos’ do infernão ou do além. O flerte com o pop rock no refrão não consegue chegar sequer ao dedão do pé das piores aberturas de programa infantil já ‘pensadas’. E a linha vocal simplesmente dói no peito. Claro que não como algo emocionalmente dolente, mas como uma bronquite. Porém, nem tudo está perdido: ‘Foguete do Rei Tritão’ pode servir a todos como exemplo do que acontece quando se ignora a existência de um aparelho de ultimíssima geração denominado ‘metrônomo’. Nessa faixa, a bateria simplesmente parece ter sido gravada por um sonâmbulo.

A também porre ‘Um quarto’ até traz algum esforço harmônico, mas não tão significativo a ponto de se destacar e ultrapassar as limitações do trabalho. E, mais uma vez, a performance sem carisma e marcada pela doidice pentelha e sem graça do vocalista queima tudo a ponto de que, já aqui, seu silenciamento sumário seja clamado desesperadamente. Alguns arranjos também não ajudam: o teclado permanece com uma estranha retidão timbrística e tonal, como se alguém houvesse esquecido um livro em cima dele. Apenas o solo de guitarra feito às pressas interrompe a tempestade de más idéias e fura esse saco plástico amarrado firmemente na cabeça do ouvinte.

Já ‘Darling’ é valsa de ar circense feita em cima de clichês de dramalhões bregas. Um ponto de partida como esse originaria, nas mãos de quem realmente domina a complicadíssima arte de fazer graça, oito mil trezentas e vinte e seis troças e palhaçadas. Nas mãos da Psicodélicos e Psicóticos, porém, ‘Darling’ é somente outro dramalhão brega. Já a introdução da concretóide ‘Métrica Marrom’, mesmo insípida em sua lisergia zappiana, consegue ser mais interessante que o modorrento resto da faixa.

Risinho no canto da boca, e mesmo assim com auxílio de alguma substância estimulante, só para o tema de seriados infantis ‘O Navegador’ e para a convincente ‘Big Smurf’, ainda que a letra insista mais num dadaísmo chato do que na irreverência. A faixa-título, por sua vez, carrega o incrível mérito de ser esquecida já durante sua execução. A experiência é repetida na interminável ‘Psicodélica e Psicótica’, que possui introdução desavergonhadamente igual à da sua anterior. E o entrosamento entre teclado e bateria no meio da canção está para os comerciais de metrônomo como a apresentadora Angélica está para os de camisinha.

É por tamanha enxurrada de equívocos e absoluta falta de traquejo para espirituosidades que este trabalho está fadado a nunca sobreviver a uma primeira audição. Mas se a defesa dos avançadinhos é a relativização, a Psicodélicos e Psicóticos pode insistir um pouco mais na crença de que inventou um outro estilo: aquele em que, para ser bom, é preciso ser, na verdade, péssimo. E em valores absolutos.