10 setembro 2008

Igualdade, fraternidade, mediocridade



A obra: “Vento Cais”, de Doca Furtado. Obra foi gravada em Maceió e contou com Zé Barros na guitarra, Ronaldo no bandolim, Xameguinho na sanfona e recebeu direção e arranjos do maestro Muskito. Não há data de gravação.

A crítica:

Nota: 5,21

Que coisa linda é a irmandade entre os homens. Que manifestação maravilhosa é o respeito mútuo. Que espetáculo é a bondade. Purpurinas para o pivete que larga a bola para ajudar a velhinha a atravessar a rua. Serpentinas para o motorista que arranca o pára-choque do carro da frente e fornece seu telefone verdadeiro ao prejudicado. Palmas para o servidor público que, de fato, serve. Então vamos todos dar as mãos, telefonar para o Lionel Ritchie, encomendá-lo uma nova ‘We Are The World’ e, de quebra, filmar um clipe repleto de verde, passarinhos, quatis, borboletas, ovelhas, muita gente batendo palmas e tudo o mais que lembre paz, confraternização e convivência. Só que o leitor pertinaz, já desconfiado dessa melação, do ambiente de catequese e desse capítulo do Augusto Cury que parece não terminar, solta um bocejo e diz: sim, e daí? O que toda essa pataquada tem a ver com o disco ‘Vento e Cais’ de Doca Furtado? Simples. Nessa obra, Doca Furtado é o pivete, é o motorista, é o servidor público, é o cara que liga para o Lionel Ritchie. Doca Furtado ‘é o mundo’.

É interessante o exercício de paranóia necessário para vislumbrar ‘Vento e Cais’ como uma obra-prima da conivência de um autor diante dos que contribuem para sua obra. Mas após várias audições, torna-se muito difícil concluir outra coisa. Isso porque a impressão que fica é a de que o compositor, após esquentar a cabeça dias a fio na tentativa de construir um trabalho pertinente, simplesmente resolveu ceder – o verbo é esse – suas criações para uma meia dúzia de arruaceiros. O resultado: canções razoáveis executadas pela banda de apoio com preguiça e sem o mínimo esforço intelectual. Pela capacidade de dar de sua própria carne aos açougueiros, Doca Furtado é sério candidato a Madre Teresa dos instrumentistas preguiçosos e ao prêmio Nobel de condescendência.

É claro que nenhum desses epítetos é digno de orgulho. Bondade e criação artística só caminham na mesma trilha, e com muitas ressalvas, em obras de cunho beneficente. Zilhares de obras geniais ou ao menos fundamentais foram gravadas como resultado de exercícios imensurados de arrogância, prepotência, canibalismo, orgia, atentado à vida, luxúria, com muita gente feia falando coisa feia e tendo crises homéricas de grandeza e onipotência. Para muitos compositores, ser vitimado com um pitaco em um arranjo era pior do que levar um tiro, e a insistência alheia nessa petulância já justificaria um homicídio. Mas quem é que dá a mínima? Roupa suja se lava no estúdio. O autor que corte a si e aos outros que o auxiliam, flagele a si e aos outros que o auxiliam, mas ponha na praça o seu grito mais alto de dor.

Em ‘Vento e Cais’, Doca Furtado não fez a menor questão de apontar o dedo na cara de alguns bagunceiros. Ao contrário disso, pagou um rodízio de sorvete para todos e ofereceu sua bola novinha para a pelada. Mas o autor não ficou apenas assistindo: Furtado também cometeu seus equívocos e contribuiu para que uma obra com consistente matéria-prima se tornasse, no final, mais um trabalho pálido e pouco expressivo. A pior coisa em ‘Tu És’ poderia ser o péssimo e artificial timbre de cordas no preâmbulo, que lembra entradas baratas de casamento. Mas não é. O que de fato estraga tudo é a disparidade entre os arranjos ágeis e a performance sonolenta do cantor, tão pra baixo que parece que irá bocejar a qualquer momento. A banda errou na tonalidade? O intérprete trabalhou dopado? Duas canções diferentes foram somadas por engano? Não interessa mais. O que interessa é que o que deveria ser passaporte de entrada para o disco, é quase uma nota de despejo.

Já em ‘A lenda da sexta-feira treze’, a culpa pelo contraste entre voz e arranjos muda de lado. Considerados apenas voz e violão, trata-se de canção bem pensada e com interessantes costuras entre versos repetidos com acréscimos e harmonia. Mas eis que de repente entra a bateria. E o negócio é ‘de repente’ mesmo, pois toda a atmosfera anterior a ela permanece intacta. É como se o baterista quisesse apenas sacanear, algo que faz com que a canção seja muito mais longa do que sugerem seus três minutos e quarenta. E as péssimas idéias executadas através de baquetas prosseguem sem pudor ao longo do repertório. ‘Bocaina’ poderia ter sido salva se gravada apenas com um violão somado a um ou dois instrumentos complementares. Mas o que será isso batendo por trás dos dedilhados? Uma impressora? Um liquidificador? Um ventilador? Uma pedra no telhado? Não, é a bateria e seu bate-estaca sem-graça e cansativo que nada acrescenta e torna dispensável o esforço de transformar tudo em algo dançante e ‘pra cima’. O mesmo se dá na repetitiva “Estrela Incandescente”, estilhaçada por um arranjo criminoso de percussão. Aqui, o que deveria ser uma caixa tem o som brusco de alguém esmurrando uma porta desesperadamente.

Pelo menos ‘Luamar’ e ‘Maria Flor’, acertos indiscutíveis, conseguiram se impor e passar incólumes ao festival de escorregões. Na primeira, a riqueza harmônica se faz muito mais importante do que a persistência no barulho. Já a segunda é a prova do que acontece quando Furtado cultiva a egolatria. Completamente acústica, nua e centrada no violão, ‘Maria Flor’ aparece mais que qualquer outra faixa e é, de longe, a mais inspirada do disco.

Mas ainda há ‘Vento Cais’, faixa que, embora apresente um louvável cuidado com a linha vocal e um surpreendente solo jazzístico de teclado, permanece tempo demais sobre seus únicos dois acordes. Já ‘Os quatro cantos da pêga’ não é bem a canção mais abominável já feita. Trata-se de forró simpático e maduro. Mas o tema do teclado deveria ser lacrado em recipiente fechado e arremessado com força ao quinto canto da pêga. Em ‘Amor Roxo’, por sua vez, o equívoco foi timbrístico. A confusão causada pela cortina de sanfonas deixou a canção apenas indecisa entre a sofisticação harmônica do tango ou a irreverência do forró. É claro que a solução é jogada no colo do ouvinte, que tem três minutos para escolher entre o fio verde e o azul. Na dúvida, o melhor é jogar longe esse pacote.

Marcado pela lambança e pelo pouco interesse dos músicos em contribuir de fato, ‘Vento e Cais’ é a eterna festa de aniversário de Doca Furtado: todos se divertem, todos brincam, todos deitam e rolam, mas é justamente o protagonista quem vai ter de limpar a sujeira. Por isso almejar o Nobel da Paz, diante de uma situação dessas, é coisa de brocha: quando os bons modos e a preocupação com os amiguinhos não resultam em mais do que a mediocridade, é necessário, em nome da excelência, dar porrada. Muita porrada.