20 março 2013

GENESIS - ANÁLISE DISCOGRÁFICA [PARTE I]


O Genesis costuma ser apontado como pináculo de uma linguagem morta, vazia, canônica e intelectualóide que seria implodida pela visceralidade ora neandertal ora pré-neandertal do punk nos anos 70. Era a linguagem do barroquismo e do floreamento progressivo, que depois de uma penca de discos soando exatamente iguais, começou, de fato, a desgastar a correia.

De fato, isso aconteceu com pelo menos 98% das bandas do estilo. Na maioria dos casos, o mal afetou a discografia inteira. Com o Genesis, curiosamente, não. Porque a banda não conseguiu permanecer a mesma em nenhum momento. No auge do rock progressivo, perdeu seu vocalista e principal letrista. Quando ainda tentava se reinventar, perdeu o guitarrista. Quando construía uma linguagem própria, teve de apropriar por completo a estética de seu membro mais bem sucedido. O Genesis nunca parou quieto. Não foi afetado por nada além das rasteiras de sua própria trajetória.

O objetivo da análise discográfica abaixo, dividida em três partes, é um só: nenhum. Mas como esse blog passou 5 meses parado, é importante ressaltar o benefício que meu retorno às atividades traz para a história da literatura brasileira: nenhum de novo.
 

PRIMEIRA PARTE: FIRTH OF FIFTH

From Genesis To Revelation (1969)



Um fã mais afoito de Genesis que escutar isso aqui pela primeira vez irá repensar seus valores, sua alimentação, seu dia a dia e, em um nível mais preocupante, sua opção sexual. Porque “From Genesis to Revelation” tem tanto a ver com o som característico da turminha de Peter Gabriel quanto um jiu-jiteiro amazonense com uma sessão de cinema independente egípcio. É verdade que para uma bolacha composta e gravada por punheteiros de 16 anos, soa muito bem – e é particularmente curioso como Peter Gabriel ecoava sua angelical voz de ancião com tosse antes de cultivar pentelho. Mas alguém sabia o que estava fazendo quando convocou tamanho bando de pivetes para um estúdio em pleno ano de nascimento de coisas como “Abbey Road” e “The Piper at The Gates of Dawn”. “From Genesis to Revelation” é, na verdade, uma espécie de demo inchada de canções a la Bee Gees para permitir que o produtor trocasse de carro. E como todo trabalho inchado, é irregular.

Na primeira metade, o disco não apenas exibe curvas características de um bom disco dos anos 60, mas se mostra melhor que muita coisa. Pecinhas simpáticas e bem estruturadas como “In the Beginning”, “The Serpent” e “In the Wilderness” poderiam ter sido regravadas por James Taylor e Joan Baez ao vivo em qualquer evento pró ‘bring our fucking kids back’. A segunda metade, entretanto, parece se esforçar para espelhar a primeira, em clara demonstração de que a capacidade criativa dos mijadores de cama ainda não contemplava um dispositivo de meia hora ou mais. No fim das contas, “From Genesis to Revelation” soa como muita coisa, menos como o som tortuoso, eruditóide e tecladístico que seria, de fato, o Genesis que se conhece. Bonitinho, mas depois da metade, meio ordinário. 


Trespass (1970)



A Rolling Stone dos anos 70 pode ser acusada de muita coisa. Menos de falta de contundência. Para ela, ‘Trespass’ era só um disquinho “irregular, mal definido, às vezes chato por natureza, e deve ser evitado por todos, menos pelos fãs mais fanáticos do Genesis”. É mais ou menos por aí. Apesar de conter a importância de já trazer os elementos fundamentais do jeito Peter Gabriel de ser Genesis – com exceção da bateria técnica e mais bem azeitada de Felipe Collins, membro mais tardio – , ‘Trespass’ é uma imundície sonora e traz infames arestas de experimentação. Mas assim como “From Genesis to Revelation”, não é um disco compulsoriamente dispensável. E diferente daquele, é uma demonstração de arrojo harmônico pouco observável, inclusive, entre grupos do então recém-surgido rock progressivo. O problema é que eles ainda não sabiam direito o que fazer com tamanha sofisticação. Enquanto aprendiam, soltavam peças infinitas com solos maiores ainda, masturbação tecladística a vontade e arranjos que se destacavam pela insistente capacidade de esmigalhar o bom senso.

Nursery Crime (1971) 



Phil Collins está surdo e distante o suficiente para ouvir essa. Mas “Nursery Crime”, seu primeiro bolachão com o Genesis, é o melhor disco pré-Selling England da patota. Para fazer a obra emparelhar com o clássico, o esforço seria tremendo. Mas poderia ser  resumido a intervenções facilmente localizáveis. Bastaria tirar fora dois terços de devaneios pomba-giratórios de “The Musical Box”, um terço de evoluções punhético-solísticas de “The Return of the Giant Hogweed” – alardeada por Steve Hackett como invólucro do primeiro solo de digitação da história dos solos de digitação –, outro terço de colagens felo-colonoscópicas e proto-timbrísticas de “The Fountain of Salmacis” e, finalmente, a porra da “Harold the Barrell”  inteira. Já o resto da obra soa como a apoteose das canções lentas, todas, aqui, irretocáveis: “For Absent Friends”, “Seven Stones” e “Harlequin” são irônicas demonstrações de um Genesis funcionando muito bem sem bateria justamente na estreia de seu mitológico castigador de peles.

“Nursery Crime” é uma espécie de Dança com Lobos do rock progressivo. No começo, a única coisa que nos faz ir até ele é alguma falsa curiosidade histórica. No meio, nos surpreendemos com suas babaquices. E no final, como melômanos fãs de progressivo de coração mole que somos, acabamos cativados, fieis e mais ababacados do que nunca.

Foxtrot (1972)


Pegaram aquela maçaroca tecladística que Tony Banks criou para a introdução de “Watcher of the Skies” e fizeram um timbre oficial de teclado. Mas aquilo só tem alguma graça em Foxtrot. No resto, soa como papel alumínio amassando. Porque é o tipo de coisa que corresponde, em termos sonoros, com a visão plastificada e em péssimo chroma key que os anos 70 têm dos anos 2000. A reprodução ad vomitum que o progressivo recente faz daquela sonoridade é um atestado de má nostalgia. Mas que é difícil de prestar atenção em cada detalhe desse disco, disso tem-se mais certeza do que da atividade sexual de certos vloggers.

A própria “Watcher of the Skies”, com todos os seus momentos risíveis e feitos às pressas aqui ou ali, é melhor do que tudo o que o King Crimson fez. “Time Table” é um medley de simpáticas ideias harmônicas, compreensível e assobiável por qualquer vovô fã de Orlando Silva. Já “Get em Out by Friday” é o momento em que Phil Collins diz “look at me once more” e Mike Rutherford, por sua vez, diz “suck it, Chris Squire”. Enquanto isso, a derradeira “Supper’s Ready” é só uma peça grande. E superestimada exatamente por causa disso. Porque se ela tem mais de vinte minutos, é porque a banda quis que você dedicasse parte de seu dia a contemplar sua grandiosidade. Pelo menos até que se entenda que ela não passa de uma colagem de peças com um refrão repetido mais do que seria justo.

No cômputo geral, Foxtrot garante os três pontos. Mas era apenas mero exercício do que ainda estava por vir. 



 
Selling England by the Pound (1973)



Todos os vícios instrumentais que tornam qualquer disco de progressivo italiano, húngaro e alemão mais enfadonho que teorias esquerdistas de reengenharia social estão nesse disquinho. Mesmo assim, “Selling England” comporta-se como uma masterpiece deslocada – o tipo de coisa que nem o próprio Genesis conseguiria reproduzir de novo. E a culpa é inteiramente deles. Aqui, os solos de Hackett são sofisticadamente simples – ou simplesmente sofisticados. Tony Banks prossegue no posto de melhor tecladista do rock. Peter Gabriel, no de pior cabelo. O baixo de Rutherford, em oposição ao desespero fraseador de Chris Squire – que não é nem de longe um defeito, pelo menos no Yes – é tão seguro que permite excessos ocasionais de Phil Collins. E o que dizer deste impagável motherfucker. Sem o remelexo de Collins, o Genesis seria insuportavelmente mais chato do que conseguiu ser nos discos anteriores. E o absurdo intermezzo de “Battle of Epping Forest” não soaria como se tivesse sido gravado em 1994.

Até pouco antes de “Cinema Show” – e apesar da maçante “I Know What I Like” –, é razoável acreditar no cânone que estabelece “Selling England by the pound” como um dos melhores discos do Genesis. Depois de “Cinema Show” – e apesar da maçante “I Know What I Like” –, é difícil acreditar em outra coisa.