27 agosto 2006

Quer, Tome.


A obra:

´´Aplausos Mudos, Vaias amplificadas´´, disco solo de Alex Santanna. O álbum, de 2003, conta com a participação de Marco Vilane, Abraão Gonzaga (NaurÊa), Pablo Ruas e Márcio André (NaurÊa). O próprio Alex Santanna e seu irmão Leo Santanna assinam a produção.

A crítica:

Nota: 4,36

´´Eu aplaudo sua vaia, desde que valha, ao menos, o ar que sai do seu pulmão.``, discursa o Sr. Santanna em seu encarte. Ao longo do disco, será provado que a frase não é irônica: é uma homenagem. Uma dedicatória a um público em particular, potencialmente fiel ao prazer do autor em se ver coberto de apupos: o Público-Que-Presta-Atenção (PQPA). É uma facção de expressão incipiente, ainda muito tímida. Ás vezes, são vítimas de violento preconceito: atiram-lhes coisas na rua, olham-nas torto em shows e apresentações. O Sr. Santanna, generoso, lembrou-se do sofrimento dessa gente. E fez questão de exaltar o que permeou a comovente relação que estabeleceu com eles: vaias.

Muitas vaias. ´´Aplausos Mudos Vaias Amplificadas ´´ é um trabalho de redenção. Mas para o PQPA. Pois é a primeira vez que um artista grava um disco ruim levando aquele esquecido público em consideração. Um trabalho corajoso, de pulso. E que, para o exercício da ridicularização, já nasceu clássico. Mas do ponto de vista da boa música popular, jamais deve ser repetido. Vejamos.

O preâmbulo de ´´Poesia de Barro`` é assustadoramente convidativo. O ataque agressivo de violão é malicioso, irônico de certa forma. Mas logo se perceberá que não foi ao acaso que esta música foi escolhida para abrir a obra: o conclame induz o ouvinte a buscar, em todo o disco, algo tão razoavelmente interessante quanto aquela síncope violonística. Mas o sr. Santanna, qual um sádico destrinchador de expectativas, a rir insanamente da inutilidade dos esforços mais puros de satisfação do público, não pôs em seu disco nenhuma idéia melhor do que aquela.

Não é preciso ir muito longe. A própria Poesia de Barro é insípida. O exotismo cigano de conclame da introdução esconde-se sob os escombros de uma cozinha primária. A letra é inofensiva, assim como as inquietas arestas frasísticas dos arranjos de piano. Mas ainda que nada soe necessariamente amador, nada soa necessariamente bom. Prosseguir? Um desafio.

´´Todos estão mudos´´ tem sabor folclórico, de pesquisa. É uma canção universitária, sem grandes atrativos. ´´O que é?`` é simplesmente a mais corajosa canção jamais gravada; entre os mais atentos, certamente não deixará de ser notado que a citada faixa representa o total esgotamento da canção lenta. Não como Beethoven esgotou a sonata ou o como o Death esgotou o Death Metal. Mas como a doméstica da vizinha esgota Maria Rita entoando a abertura da novela. O título então é genial. Pois certamente não há como definir a obstinação intrínseca a uma canção que subverte definitivamente os negligenciados conceitos de afinação e temperamento.

Por isso a cada faixa torna-se claro ser o sr. Santanna egresso, em termos vocais, da tradição Death Metal – ou adjacências. ``Aplausos Mudos´´ seria uma incursão experimental do vocalista pelos ermos terrenos da linha melódica. É preciso ter paciência, portanto. É bem verdade que seria mais fácil - e incomensuravelmente mais satisfatório – o encerramento de suas atividades vocais. Mas o caminho que vai da música extrema ao pop universitário é sinuoso e afeito apenas às almas obcecadas e aos corações repletos de persistência. E estamos falando de afinação, sistema modal. Estamos falando de tons, escalas. Estamos falando de harmonia, ou atonalismo deliberado. Nenhum vocalista de Death Metal tem a obrigação de saber o que é isso tudo.

O sr. Santanna não sabe o que é aquilo tudo. Ou pelo menos despreza de forma magnífica o conceito de ´´práxis´´. O tormento proporcionado pela sua performance vocal áspera seria aceito como linguagem estética na sua suposta carreira metálica anterior. Mas nem toda sujeira é rebelde. Na verdade, a sujeira, de forma geral, é lixo. A rebeldia é um atributo de exceção. O sr. Santanna apenas seguiu a tendência.

Então, eis a questão: poderá alguém que não sabe entoar linhas melódicas, cria-las? Rigor científico, por favor. Nesse sentido, as faixas 1,2,4,5,6,7,9 e 10 das dez da obra ´´Aplausos Mudos`` provam que não, que o atonalismo não-planejado apresenta como principais sintomas disfunções crônicas de reprodução e de criação. Mas ainda cabem objeções. A faixa 3 , ´´O que não é``, chama a atenção. Poderia se converter, com melhor intérprete, em um daqueles sucessos de consumo, mas mesmo assim um sucesso. Em si mesma, é algo anêmica, apesar da letra simpática. E é imperativo admitir que ´´Depois da Tempestade´´ trata-se de uma faixa inspirada, tanto em sua construção quanto em execução. Mas existem exatamente outras oito virtudes que tornam tal canção significativamente relevante ao ouvido médio: as faixas 1,2,4,5,6,7,9 e 10.

Que o Sr. Santanna seja acusado de qualquer coisa. Compositor burocrático, cantor sofrível, poeta secundário, o que seja. Só não o chamemos de mau-caráter. Isso não. Pois não se acha facilmente alguém empenhado em exercer o ´´amai vossos inimigos``. O compositor transcendeu os sentimentos: fez um disco catastrófico e ofereceu-o aos miseráveis do Público que presta atenção. Pediu apupos maiores, pediu vaias amplificadas. E como nada pode ser negado a alguém tão generoso, que se registre: Buuuuuuuu.

Libelo; Homenagem; Evangelho.


A OBRA

‘’Canta-SE’’, de Chiko Queiroga e Antônio Rogério. Gravado em 2002, a obra consiste em releituras de canções dos principais compositores sergipanos ---- a dupla incluída. Cláudio Miguel, Joésia Ramos, Sergival e Paulo Lobo foram alguns dos homenageados.

A CRÍTICA
Nota: 9,25

Acreditemos no homem. Frente às circunstâncias que assomam nos televisores e nos coletivos repletos, isto pode parecer demagógico; mas, diante de um contexto algo menor mas não menos horrendo que a atualidade, o da chamada ‘’música sergipana’’, o surgimento do artefato aqui resenhado validará aquela primeiras sílabas do parágrafo. Não parece tão incoerente recorrer a citações bíblicas diante da situação; mas seria ridículo. Portanto, torna-se necessário que o autor do texto recobre o siso para dar cabo da complexa tarefa que é resenhar esse disco.

E tudo isso só por que um disco de uma dupla local se revela acima da média. Convenhamos que a palavra ‘’só’’ é infame; por que ‘’Canta-se’’ não é apenas mais um bom trabalho, mas um símbolo do que o exercício do bom senso ---- este atributo tão raro e esquecido---- é capaz.

Pretendendo ser coletânea, a obra vai além, e transmuta-se numa cartilha de bom comportamento musical. E isso não é pouco, considerando o repertório arriscado, que salta de canções-ícone judiadas (Ruas de Ará, Meu papagaio) a letras de profundidade adolescente (Pecado de Pássaro, O Comodista). E um reggae ---- tão descontextualizado da seqüência que tornou-se forçoso citá-lo em frase separada.

Atentos às peculiaridades de cada canção, Queiroga e Rogério as envolvem em sensível atmosfera acústica. Com primorosos trabalhos vocais, teclados sutis e uma percussão muito mais musical que simplesmente rústica, a dupla subtrai as canções escolhidas do limbo tropicalóide que as amadoriza. Em suma, elevam o nível de um repertório não muito promissor.

‘’Não muito’’, pois há canções intrinsecamente consistentes. É o caso da excelente ‘’Séculou’’, de Tom e Irmão, e seus ares de Tom Zé; da sensível ‘’Maramar’’, do nem sempre pertinente Sergival; de ‘’Camará’’, de Patrícia Polayne, canção de vigorosa dramaticidade, bem explorada pelo violões da dupla.

Mas a faixa-mor dessa obra é a derradeira. A beleza de ‘’Laranjeiras’’ é higienizadora; sua simples execução bastaria para que uma meia dúzia de maus músicos com algo melhor para fazer refletissem sobre suas capacidades. Mas não pelo virtuosismo técnico ou proezas anatômicas; o êxito da canção situa-se na simplicidade, na agregação de elementos que tornam possível ir do regional ao épico sem saltos esquizofrênicos. Em linguagem chã, é música bem feita, concebida por quem possui domínio lírico e senso de atmosfera musical. Não seria exagero supor que, algum dia, a cidade referida no título adotasse a canção ---- composta por Rogério e Queiroga ---- como hino.

Terminada a audição de ‘’Cantas-Se’’, uma dúvida persiste: seria o disco uma homenagem aos ‘’artistas da terra’’ ou um libelo contra a mediocridade? No fim, não importa; o fato é que Chiko Queiroga e Antônio Rogério demonstraram ser maiores que os homenageados, sem arroubos de auto-indulgência, e imbuídos principalmente de sensibilidade. Senhores, se mesmo em uma era criativamente inócua é possível o surgimento de tais obras, tenhamos então esperança; algo ainda os redimirá.

30 julho 2006

Gula e Desperdício



A OBRA

´Assim Meio de Lua...´, de Rubens Lisboa. Além de exibir onze músicas próprias, o cantor/compositor interpreta canções de Chico Buarque, Arrigo Barnabé e Cazuza. Dentre várias participações especiais, figuram as de Patrícia Polayne, Chico Queiroga, Pantera, Gena Ribeiro e Amorosa.


Nota: 6, 27

A Crítica:

Todo disco é um trabalho auto-promocional. Justificado, obviamente, pela essência artística. Mas ao se analisar o tijolesco encarte de ´Assim, Meio de Lua...´, torna-se inevitável a impressão de que o esforço do sr. Lisboa pendia mais para a propaganda do que para a unidade estética ---- atributo este cuja aquisição não exige esforço quando se tem, para variar, bom senso. Por isso é estranho abrir o pequeno calhamaço e deparar-se com o compositor abraçado à cantora nacionalmente relevante Marlene e convenientemente dedicá-la a obra; por isso é estranho virarmos a página e encontrarmos uma açucarada introdução textual; por isso é estranho que mais à frente estejam enumeradas frases de figurões da cultura sergipense derramando elogios ao autor. Mas essas tais estranhezas não são meros devaneios de uma exigência viciada: são aspectos que prejudicam um disco para quem o aprecia em sua completude.

E um disco que, com um repertório melhor selecionado, seria mais razoável. Em ´Assim...´, vinte faixas é muito. Na verdade, mais do que isso: desnecessário. Pois foi a necessidade auto-indulgente de ostentar uma produção febril que isolou as melhores canções e diluiu a qualidade geral.

´´Ode à lua´´, uma das melhores canções do disco ----se não a melhor----, dura pouco mais de um minuto, e funciona como um falso preâmbulo. Pois nenhuma das peças que a seguem se aproxima do tribalismo obscuro da pequena música. Notável é que o último verso da citada faixa é um sugestivo ´quem irá me segurar´. Mas a resposta é imediatamente fornecida na faixa seguinte: ele mesmo. Nunca se saberá por que, em meio a um excessivo repertório, o compositor tenha escolhido justamente a soporífera ´Aviso aos Navegantes´ como continuidade do espírito visceral inicialmente sugerido.

Através do incômodo mecanismo de sublinhar as páginas do encarte com comentários a respeito das músicas ---- um excelente recurso para subtraí-las o distanciamento estético, oposto à racionalidade ---- fica-se sabendo que ´´Vietnamita´´, composta por Marta Mari e Antônio Passos, foi uma das canções mais viscerais já escutadas pelo sr. Lisboa. É possível que muitos acreditem nisso. Mas uma pessoa pelo menos, não o fez. E qual não é o azar do nosso protagonista ao constatarmos que o ser unitário em questão foi exatamente Diogo Montalvão, o produtor. Por isso a canção ficou como ficou: um arrastado Heavy Metal com direito a teclados góticos e constrangedores drives vocais.

A preocupação de imprimir em tudo o aspecto rocker pode ter servido para afastar Lisboa da saturação regionalóide. Mas tambem o afastou da MPB. E não o aproximou tanto assim do bom gosto. Sua versão para ´Caçada´ de Chico Buarque mais parece um insólito casamento entre Sergival e a banda finlandesa Tristania; se era duvidosa a qualidade da transposição da cazuzaniana ´Subproduto do Rock´ para a bossa-nova, Lisboa e elimina: a versão realmente não funciona; em ´´Suspeito´´, a única justificativa para o grito dado lá pelo meio da faixa deve ser o de alívio cômico.

Gravar um disco com mais de setenta minutos de música e não acertar em nada é trágico. Dessa sorte, para alívio de todos, o sr. Lisboa não foi acometido; e o produtor Montalvão encontra espaço para pagar pelos seus deslizes. É difícil não se interessar pela complexidade dos arranjos de ´Eu sei´. É estranho constatar que o mesmo sujeito que executou impiedosamente Chico de Hollanda tenha sido capaz de conceber a encantadora ´Maria Alice´, candidata a clássico da exigente conjunção regionalismo/ melodia e acrescida da feliz intervenção de Chico Queiroga.

´Orvalhada´, de teor sombrio e místico, é um bom exemplo do que o domínio tecladístico é capaz. Ponto para o compositor Lisboa. Ponto para o arranjador Montalvão. Mas os louros de ´Oratório´, a última das canções merecedoras de menção, devem ficar com o compositor Pantera. Bem, não seria mal fazê-lo, já que o citado personagem compôs, arranjou e ornamentou com vocais uma cantata de inquietante alto nível.

No texto introdutório do encarte, o sr. Lisboa deixa subtendida a vontade de firmar-se enquanto intérprete. Mas esse não parece ser o caminho mais feliz. Não tanto pelos seus dotes vocais que, subtraída toda a pirotecnia, revela aqui e ali uma timbragem de delicada feminilidade. Mas talvez seu aprofundamento enquanto compositor possa resultar em mais serviços prestados ao magro repertório sergipano do que o performático bater das tamancas. Se mais enxuto, ´Assim, meio de Lua...´ poderia ter sido um bom trabalho de um promissor criador. Mas a fúria quantitativa pesou. A auto-indulgência pesou. E o mau gosto, que não deveria estar lá, bailou ao som de um xote-metal.

16 julho 2006

COMPLEXO DE GUAIAMUM


A OBRA

‘’Das Águas Barrentas’’, de Kleber Melo. O compositor, vencedor do Festival Sescanção por duas vezes, canta músicas próprias e parcerias com Amorosa, Helder Dantas e Jorge Ducci. Gravado em 1999, o álbum conta com a participação de Musquito nos violões e Pedrinho Mendonça na percussão.

A Nota: 1,51

A CRÍTICA
:

Já se tornou redundante afirmar que viver de música em Sergipe é amargar uma semi-mendicância. E se fosse o bom senso o juiz da relevância artística, seria muito melhor para Kleber Melo ter um emprego estável longe das artes; apenas assim a sobrevivência não lhe seria afetada caso cometesse um outro ‘’Das águas Barrentas’’. Mas o bom senso, para azar geral, não é o supremo seletor ---- e, no caso da obra aqui analisada, não é a referência.

Qualquer um que queira purgar-se do preconceito contra a dita ‘’música sergipana’’ deve manter distância regulamentar desse trabalho. Pois aqui estão todas as falhas e estereótipos que mantêm a arte desses rincões albanino-joaninos à margem de seu próprio povo. ‘’Das àguas barrentas é a perfeita personificação do amadorismo tropicalóide , da ‘’sergipanidade’’ reacionária.

Durante todo o disco é incitada a sensação de que as linhas vocais são um mero pretexto para justificar a presença de letras. Quando esta relação não é possível, temos ‘’Redundante Amanhã’’, peça preguiçosa e cansativa, que não se decide entre não ser uma canção e não ser poesia. É mais provável que não seja nada.

Essa, digamos, 'descaracterização' de elementos musicais não para por aí. A contribuição de Joésia Ramos em uma a canções também confronta paradigmas: rejeitando o tradicional pressuposto de que participações especiais tendem a elevar o nível, o resultado da intervenção não passa de medíocre. As vozes de Joésia e Kleber não se complementam, não dialogam, não funcionam. Não seria apocalíptico concluir que a camaradagem nepotista tenha prevalecido sobre a sensibilidade auditiva.

O requinte poético através do hermetismo e de figurações abstratas parece ser a obsessão de Kleber Melo. Só que ela não funciona em nenhuma das canções ---- seja devido a pobreza de construção das composições, seja devido a obstinação insensível pela sofisticação. Em, ‘’Sagrado’’, a monotonia harmônica e a atmosfera sombria seriam mais adequadas à narração; optando pelo ‘’difícil’’ e ‘’etéreo’’, Melo a empesteia de lirismo vazio e intelectualóide e, achando pouco, repete sadicamente cada linha dos estrofes.

Erro de mesma natureza afeta a embolada ‘’Cansanção’’; a ausência de melodia não encontra respaldo na letra que, em retalhos poéticos, não possui carisma algum. Apenas ‘’Estiagem’’ ---- em parceria com Jorge Ducci, da Sulanca ---- e ‘’Rito’’ parecem ter algum valor. São ambas bem construídas, melífluas, ainda que figurem mais como alívio ao vazio que as avizinha do que como peças autônomas e capazes.

É clara a intenção do compositor em legitimar-se como representante do purismo sergipano. As canções, impregnadas de rusticidade, refletem a necessidade de se expor que foi feita alguma pesquisa cultural. Mas ‘’Das águas barrentas’’ não possui nem carisma folclórico nem substância musical para sustentar proposta alguma. Que seja considerada, ao menos, a coragem do cantor em expor-se desavergonhadamente à chacota: posando de ‘’catador-de-caranguejo-de-boutique’’ na capa, Kleber Melo consegue ultrapassar todos os limites ---- do ridículo.