20 agosto 2019

NA BOCA, NÃO - ANTOLOGIA 3







MINHA TERRA É DE NINGUÉM
A obra:

‘Minha terra é Sergipe’, de Antônio Carlos Du Aracaju, sem data de gravação registrada. No baixo, contribuíram Toninho e Mongol. Na bateria, Neném e Pedrinho do Recife. No acordeão, Miguel e Pinto do Acordeon.

A crítica:

Nota: 4,03

A estranhíssima heterogeneidade de estilos, o número astronômico de faixas – 17 – e o título apenas genérico seriam mais do que suficientes para estabelecer este trabalho como uma coletânea. Nesse caso, Antônio Carlos Du Aracaju não seria réu, mas vítima: coleções invariavelmente não fazem mais do que trucidar a unidade estética de um autor para empilhar hits acéfalos e peças de presença apenas numérica. Mas o nome do culpado figura já na capa. O que significa que, para desespero de todos, ‘Minha terra é Sergipe’ não é compilação de coisa alguma. E que se leve realmente a sério esse ‘coisa alguma’: a obra não tem pé, nem cabeça, nem vértebras. É um corpo com os órgãos internos remexidos após uma má-sucedida autópsia.

É assim que se tem gospel seguido de frevo elétrico, seguido de temas bufos de circo, seguido de MPB de caminhoneiros, seguido do predominante forró. Não é possível identificar na bagunça do compositor pretensão que vá além de uma trilha sonora para feiras e quermesses. Só que ninguém presta atenção em trilhas de feiras e quermesses. Ninguém sai de casa interessado em ouvir trilhas de feiras e quermesses. Ninguém volta pra casa cantarolando trilhas de feiras e quermesses. Quando se conclui isso, fica mais fácil arrematar o papel de uma obra como essa em sua totalidade: ser imediatamente esquecida.

A constatação acima é mais grave do que se pensa. Isso porque seria menos catastrófico se Antônio Carlos Du Aracaju houvesse concentrado sua anemia criativa em um único estilo e lançado às praças uma obra ao menos coerentemente ruim. Muito longe disso, porém, ‘Minha Terra é Sergipe’ é um exercício não-planejado de indecisão e caos. É um amontoado de qualquer coisa. O que já fornece a deixa para a contradição-mor que emperra qualquer esforço de considerá-lo inventivo: mesmo propondo variedade e sinalizando irrestrição estilística, o disco consegue a proeza de ser apático.

Mas apesar da pressa e gula intrínsecas à quantidade histérica de peças, ‘Minha Terra é Sergipe’ não foi feita para apreciadores afobados. Se fosse, as três primeiras faixas da obra logo a situariam como mais um ensaio da hoje apenas cômica MPB de beira de estrada. Isso porque o empenho do compositor em seguir os rastros de Antônio Marcos, Fernando Mendes ou Paulo Sérgio é assustador. ‘Mãe, por favor, abra a porta’ é arrastada, chorosa e repleta de declamações expiatórias de boteco, exatamente como rezam os ditames de qualquer tenor de lanchonete desejoso por marcas de batom no colarinho.

Já ‘Arca de Noé’ é tão clichê em sua construção harmônico-melódica que pode ter seu fim previsto em três segundos de execução. Mas a letra, em particular, é digna de nota. Versos como “lá vêm Gorbachev martelos propagandear”, “no olhar um incerto amanhã, o inferno e o Armageddon” apontam muito menos para as aflições políticas do autor do que para sua edificante atitude de musicar panfletos sobre a inevitável aproximação de Marte ou o fim próximo do Sol.

Não saciado em flagelar o bom senso alheio, Antônio Carlos decide maltratar Luiz Gonzaga. Para conseguir isso, reveste ‘Acácia Amarela’ de arranjos superficiais e pretensamente sinfônicos, não conseguindo mais do que diluí-la em lamento barato. Para alívio de muitos, é aqui onde se encerra o flerte do cantor com os caminhoneiros e espeluncas de rodovia.

Mas em vez de tirar o pé do buraco e passar a caminhar em solo seguro, o autor desce um barranco. Dentre inúmeras outras alternativas dentro do próprio disco, é justamente a doentia ‘Meu Papagaio’ a escolhida para introduzir a fase pós-Moacyr Franco da obra. Pelo menos quem não aceitar o desafio de agüentá-la até o fim se deparará mais rápido com a faixa seguinte, a inspirada ‘Dá-lhe Forrozeiro’. Inquieta e maliciosa, a canção segue os trilhos de alguns dos forrós melodicamente bem resolvidos de um Nando Cordel ou Jorge de Altinho.

E há mais alguns acertos. ‘Forró de Arrepiar’, mesmo algo precária, é rica. Já ‘Luiz Gonzaga não morreu’ é, de fato, uma compensação à ofensa anterior ao velho Lula. Não fosse a letra forçosamente trabalhista, seria candidata a clássico, título já usufruído pela obscura ‘Areia Branca é mais forró’, hino do morto e sepultado São João areia-branquense. Os acordes menores e as preparações tensas da canção chegam a resvalar na melancolia. E é justamente isso o que a torna interessante.

Mas o que sobra fora essas centelhas de bom gosto é, definitivamente, breu. É bem verdade que poderia ter sido pior: a quantidade de faixas dispensáveis da obra é suficiente para preencher mais dois trabalhos, o que significaria mais sofrimento. Mesmo assim, é muito difícil perdoar a presença da estridente ‘Cara e Coroa’, abertura para circos de lona furada; da sonolenta ‘Pai Nosso do Vaqueiro’, mais uma péssima tentativa de esconder a nulidade atrás de uma oração; da esquizofrênica ‘Lavou tá boa’, canção de letra misógina que insiste em cruzar Kraftwerk com Genival Lacerda. Sem falar na dezena de xotes e cavalgadas genéricas que qualquer um já ouviu sem oferecer grande atenção, preferencialmente por estar com o nariz empenhado em algum cangote.

A insistência de Antônio Carlos Du Aracaju em fazer conviver propostas tão díspares também pende à obediência de um princípio há muito risível: o de agradar a todos. Mas o autor esqueceu que agir desse jeito é apostar. Assim como é possível agradar a israelenses e palestinos e ainda arrebanhar um terceiro nicho de admiradores, é possível irritá-los na mesma proporção e ganhar de brinde o nojo de terceiros. No caso desse ‘Minha Terra é Sergipe’, Antônio Carlos Du Aracaju apostou pra quebrar a banca e perdeu. Agora, nem a mãe quer abrir a porta.

NA BOCA, NÃO - ANTOLOGIA 2

PERDIDO NA CRIAÇÃO

A obra


‘Som das Araras’, de Mingo Santana. Gravado em 98, o disco é composto por canções do próprio Santana em parceria com Tom Robson, Irmão Z e Clóvis Melo. Beto di Franco, Muskito e Jéssica Lieko fizeram participações especiais.


A Crítica


Nota: 5,61


“Aqueles que se perderam na crítica que se encontrem na criação”. É com essa frase que Mingo Santana encerra o expediente e os agradecimentos no encarte de seu ‘Som das Araras’. Mas o tapa que deveria acertar detratores específicos de sua obra acaba acertando em cheio o rosto do público em geral. Assumindo uma incompreensível postura defensiva para quem se mete a publicizar algo, Santana não quer saber de gente ‘perdida’ discutindo o que ele fez, e se estabelece como um ser acima da opinião pública, intocável sobre o degrau dos criadores. Assim o recado, ao invés de ser uma piscadela cínica para os críticos, não é mais do que um escudo de desprezo a qualquer reação ao disco. Excelente, uma vez que, com tais cartas na mesa, acreditaremos estar diante de mais um rebento de um compositor genial, capaz de ter que afastar a todos para que a luz de sua sabedoria não cegue ninguém. Mas depois de escutar ‘Som das Araras’, não é necessariamente a visão que pede arrego.

É com pesar e decepção que se constata que a obra não é, de forma alguma, rebento de um compositor genial. Ocupado demais em se situar acima da apreciação minuciosa e da discussão, Mingo Santana deixou a tarefa de ser audível em segundo plano e, mesmo cercado por uma excelente banda, pôs na praça um disco constrangedor. Muito longe do que planejara o autor, o atributo mais relevante da obra parece ser justamente o de fazer coçar o lado reativo – e negro – de qualquer um que se dê ao trabalho de realmente escutá-lo.

Se não fosse pela frase-bofetada aplicada no fim do encarte, seria possível interpretar que Santana, arrependido, preocupou-se com a saúde de sua audiência ao denominar a primeira faixa de ‘Salve-se’. Mas a própria canção-aviso é, em si, um crime. Mesmo acompanhado por músicos experimentados e arranjos sólidos, Santana zumbe frases sem tonalidade definida, canta com preguiça, desaparece ocasionalmente em meio à massa sonora e revela uma incômoda incapacidade para a criação melódica. O refrão ‘salve-se quem puder’, por exemplo, passa a impressão de ter sido feito às pressas, no banheiro do estúdio.

A faixa seguinte, ‘Ultrapasse’, é uma verdadeira aula do que não se deve fazer com as sílabas de uma frase para musicá-la. Algumas palavras, declamadas com pressa histérica, são forçosamente achatadas para sublinhar a linha ‘melódica’ de um monótono reggae oitentista. Os anos 80, aliás, são a principal referência dos arranjos deste ‘Som das Araras’. Ótimo, mas é de se perguntar em que estavam pensando Santana e sua Arara´s Band – apenas desta vez protagonista de um equívoco – na faixa ‘Revel’. Composta por timbres que remetem tanto a comerciais de boutique quanto a anúncios de hora certa em rádio FM, a canção parece citar em sua levada inicial o tema da descida da nave no ‘Xou da Xuxa’. Além, é claro, de se constituir por extensão em uma não-planejada homenagem a medalhões oitentistas da ordem de Bozo ou Sérgio Mallandro.

Depois dessa apoteose infantil, Santana se empenha em compensar com agressividade. Porém, não vai muito longe com isso, e corresponde exatamente a toda desconfiança que se pode gerar diante de um hard rock batizado como ‘A Bossa Nova é Nossa’. É a partir dessa faixa, antipática e algo imatura, que se constata que o autor, apesar da versatilidade de seu repertório, parece sempre estar cantando a mesma música. Não há variações, não há opções relevantes de fraseado, não há sequer interpretação. E nessa faixa em particular o guitarrista, talvez cansado de contribuir com algo que dificilmente daria certo, permite a descensão do caboclo de um Van Halen e senta a mão nos solos. Mas é muito difícil algum instrumentista não aparecer diante da nulidade do cantor.

Lamentável, uma vez que ‘Som das Araras’ e ‘Cidade Adormecida’, se bem interpretadas, poderiam resultar até mesmo na salvação do disco inteiro. Ambas têm força, acordes melífluos e arranjos equilibrados. São composições firmes. Só que Santana insiste em alcançar o mérito não de tê-las feito, mas de tê-las estragado: em ‘Cidade-adormecida’, temos desafinação e falta de carisma; na faixa-título, temos desafinação, falta de carisma e uma irritante mania – recorrente em todo o disco – de somar ‘rás’, ‘rés’ e ‘ris’ ao fim de fraseados com vogais.

Por essa série de equívocos, aturar ‘Som das Araras’, 15 faixas adentro, parece façanha interminável. Por mais que se busque algo, o que se encontra é a monotonia da pretensiosa ‘À margem da História’; a ‘interpretação’ bisonha da muito bem arranjada ‘Japa’; a nada convidativa ‘Ponta dos Mangues’, prima feia da faixa-título. Sem falar no frio assassinato dos excelentes arranjos de ‘Visagem’ – que lembra em certas passagens os anos 80 de um João Bosco –, ‘Pra Dar’, ‘Nu Amor’ e ‘Comodista’, pela performance de calouro nervoso e inseguro do cantor.

O único mérito de Mingo Santana é o de ter reunido ao seu redor músicos dispostos a extrair o máximo de suas harmonicamente interessantes composições. Fora esse único fator, ‘Som Das Araras’ não é mais do que um atestado da incapacidade de seu autor de levar a público suas próprias criações. No mundo de Santana, crítica e criação se anulam e não podem conviver. Se isso pegar no mundo real, aí sim, salve-se quem puder.

NA BOCA NÃO - ANTOLOGIA 1

RUIM Q-DÓI

A obra: ‘Súbito E-Feito’, de Deílson Pessoa. Gravado entre 2006 e 2007, obra contou com a colaboração de Theo Lins nos teclados e direção de arranjos, Saulo Ferreira nas guitarras, Rômulo Filho na bateria.

Nota: 2,03
Indicado para quem: tem como incinerar o disco d-pois.

A crítica:
Gravar um disco não é fácil não, rapá. É preciso tempo. É preciso repertório. É preciso saco para aturar técnicos arrogantes, músicos sem estímulo, gente que quer levar o estúdio pra casa. É preciso algum dinheiro no bolso e idéias consistentes na cabeça. É preciso ainda mais algum dinheiro, ainda mais idéias, ainda mais tempo. E durante as sessões, é pouco recomendável agendar compromissos, muito pouco recomendável ter família e nada recomendável ter emprego. Mas parece que para Deílson Pessoa, não. Gravar é fichinha. É mole. Dá pra tirar de letra. Dá pra matar essa no peito e chutar no ângulo enquanto se toma um toddynho.

E é ridiculamente fácil assim porque, pelo seu conceito de criação – aplicado no artefato acima –, não há essa necessidade toda de fazer as coisas direito. Mas que raciocínio interessante, esse. Pra que tocar bem, se posso ter uma banda para esconder minhas limitações? Pra que cantar direito se nem terminei de fazer a linha vocal? Pra que terminar as composições se tenho pressa de lançar logo o trabalho? Pra que investir mais na harmonia se minhas letras dão pro gasto? Ora, quem é genial é genial com pouco. E foi crente em sua irrefutável genialidade que o autor deixou pra lá o minúsculo detalhe de concluir o disco para se dedicar a uma outra tarefa: transformar ouvidos alheios em ‘p-nico’.

‘Súbito E-feito’ é um disco pela metade em todos os aspectos. Primeiro, trata-se de obra composta por letras razoavelmente promissoras envoltas em canções irrelevantes e sem acabamento. Segundo, traz em sua ficha dois ou três músicos gabaritados, mas é uma coletânea bem generosa de faixas executadas com preguiça. E terceiro porque o protagonista, mesmo pondo a cara a tapa em um projeto solo, não se importa muito em cometer constrangedores e primários desvios de afinação, nem em cuidar do horrível timbre do violão base, nem em tocá-lo com o mínimo de domínio, como atestam solenes trastejadas e cordas acidentalmente soltas.

Sair do estúdio com um trabalho desse calibre clamando por oportunidade é, no mínimo, um escândalo. Isso porque a oportunidade-mor, na realidade, é ter em mãos recursos para gravar 13 faixas no estúdio mais conceituado da cidade e ter a aceitação de outros músicos diante da proposta. E é de frente para um microfone e de instrumento em punho, em um registro incansavelmente ensaiado e burilado à exaustão, que deve ocorrer a entrega. Mas ainda mais sofrível do que constatar que ‘Súbito E-feito’ é um imenso desperdício de fundos é concluir que ‘Súbito E-feito’ é um imenso desperdício de tempo, tão despudorada que é sua superficialidade estética. Pelo menos a obra, que é metade de si mesma e talvez a décima parte de qualquer outra coisa, mostra-se rigidamente inteiriça em um outro campo: o do fracasso.

LÔRO QUER BISCOITO
Há algo particularmente familiar em ‘Vertigem’, a número um. Ritmia pretensamente pop em um violão seco, teleco-teco ao fundo, progressão um-quatro em campo harmônico menor, linhazinha melódica iniciada no quinto intervalo da tônica. Ah, tá. Teremos um sub-cover de ‘Samba a Dois’, de Los Hermanos. Mas o que se iniciou como uma pobre lembrança dos cariocas torna-se assustadora versão xerográfica logo a seguir: no início de sua linha vocal, ‘Vertigem’ faz ‘currupaco’ no ombro de Marcelo Camelo sem nenhum constrangimento. Para disfarçar um pouquinho, Pessoa joga um acorde sem compromisso aqui ou ali, mas não consegue resistir ao ímpeto reverencial de dar à sua faixa o mesmíssimo arranque da canção los-hermânica. Quando vislumbrada como sombra de outra coisa, ‘Vertigem’ transmite antipatia e falta de autonomia criativa – defeitos pré-primitivos em algo de quem bate no peito para dizer que faz alguma coisa. Quando vista como algo em si, é apenas a típica abertura que não abre e ainda por cima manda a audiência catar coquinho.

Com um refrão que nunca é mais do que um retalho de escorregões de afinação costurados por uma performance vocal  insegura, burocrática e de carisma nulo, ‘Espacial’ é a típica peça que não foi terminada. Só que quando se junta o adágio infeliz com as estruturas anteriores, exercícios insípidos do que há de mais chato no pop rock, percebe-se que o maior problema da faixa não é necessariamente o fato de ter sido mal concluída, mas sim o de ter sido começada. Uma coisa dessas jamais deveria ter saído de momentos ruins de ensaios piores ainda. Mas saiu. E não apenas entrou em um repertório gravado, como entrou na estratégica posição de segunda faixa de um repertório gravado. É assim que se dá uma baita cusparada no ouvido de quem quer que seja.

TOQUE DE LETRA
Encontrar um ponto alto em um trabalho tão empenhado na frivolidade é tarefa para poucos. Mesmo assim, é necessário destacar que ‘Maria Augusta’, ‘Contra-símbolo’ e ‘Imperfeito’ têm algum corpúsculo de potencial a mais diante da péssima coleção de más idéias que o disco é. A primeira, mesmo ingênua nas estruturas e simplesmente escolar em certos trechos, é salva por um elemento na qual Pessoa revela muito mais intimidade do que na arte de pensar harmonias e melodias: letra.

Versando sobre a já folclórica e merecedora de busto ‘véia do shopping’, o compositor consegue ser denso e levemente irreverente sem ser pernóstico, o que, diante do assunto, é muito. Já na segunda, seu aceitável pendor para a pena pouco pôde fazer: ‘Contra-símbolo’ traz a maior quantidade de escorregões de afinação por metro quadrado de toda a obra. Cantada com uma falta de sensibilidade tonal simplesmente inacreditável, a faixa só vale alguma coisa apenas pelos arranjos, que revelam uma força que não se vê em nenhuma outra peça.  A terceira e última ‘Imperfeito’, por sua vez, é uma baladinha até digerível, mas sem brilho algum para sobreviver a três metros de distância do disco – único lugar onde ela de fato se destacaria.

‘TÓIN’
Se o fracasso ronda a milímetros do trio acima, trespassa com vigor e por várias vezes cada uma das demais faixas. Em ‘Deixe Star’, os arranjos se esticam, se desdobram, fazem acrobacias, piruetas, saltos mortais, andam de um pé só, chupam cana e tocam sax, mas não tem jeito. Nada salva a canção de ser monótona e monotônica demais para ser notada, o que prova de uma vez por todas que o que é ruim será ruim com qualquer coisa por cima, por baixo ou pelo lado. Já o dedilhado choroso de ‘Liricomputador’ apresenta grau 34 na escala Richter de chatice e faz a faixa se parecer com pelo menos outras 973 mil cançõezinhas sub-melosas de pop. Mas as primeiras palavras da canção revelam comovente preocupação do autor com a economia de tempo de seu público. Ao lançar mão de versos dolorosamente ‘originais’ como ‘busque-me, conecte-me, estou online you’, todos apontando para a atualização cibernética do lirismo tupiniquim – tabu absoluto no cancioneiro nacional, que ainda não encontrou uma solução pra isso –, Pessoa convida todos a pular de faixa imediatamente. Tanto faz para onde. O negócio é ser rápido.

O problema é achar opções pertinentes o suficiente para fazer da troca um bom negócio. A introdução de ‘Cumplicidade’, por exemplo, é marcada pelo incômodo e disfuncional soar de uma corda solta sobre um acorde posterior muito diverso, gerando horrível dissonância – coisa que pode ser interpretada, sem nenhum esforço, como um erro infantil de execução. Quando os arranjos entram e escondem a patada, tem-se um interessante enlace entre jazz e cavaquinho. Mas se é para essa mistura ser definitivamente lembrada, que seja experimentada em canções mais notáveis: se ‘Cumplicidade’ não consegue se destacar em repertório tão fraco nem com gotas de invenção, não terá êxito em lugar nenhum. Aprofundar nas rasteiras ‘Movimento’, ‘Bumerangue’, ‘Latifúndio’, ‘Depois do fim’ e ‘Impressão’ é apenas concluir que certas faixas precisariam passar por um nível mais sofisticado de ‘lapidação’: destruição de suas originais com um martelo, incineração e esmagamento das cinzas por uma Scania. Isso sim é dar ‘acabamento’.

Mas nem a desintegração de tudo com um acelerador de partículas resolveria a nulidade quase absoluta desse trabalho. ‘Súbito E-feito’ é ruim D-mais. Enjoado pra K-cete. É pra quem tem saco D-aço. Mas bem que avisa. Tudo parece, de fato, ter sido concebido subitamente, no susto, no nervosismo, a fórceps, com a ansiedade e o desespero empurrando tudo guela adentro. E que estranha matemática resulta disso: mesmo metade do que deveria ter sido, ‘Súbito E-feito’ consegue ser duas vezes pior do que qualquer coisa.