11 junho 2010

RUIM Q-DÓI



A obra:
‘Súbito E-Feito’, de Deílson Pessoa. Gravado entre 2006 e 2007, obra contou com a colaboração de Theo Lins nos teclados e direção de arranjos, Saulo Ferreira nas guitarras, Rômulo Filho na bateria.

Nota: 2,03

Indicado para quem: tem como incinerar o disco d-pois. 

A crítica:

Gravar um disco não é fácil não, rapá. É preciso tempo. É preciso repertório. É preciso saco para aturar técnicos arrogantes, músicos sem estímulo, gente que quer levar o estúdio pra casa. É preciso algum dinheiro no bolso e idéias consistentes na cabeça. É preciso ainda mais algum dinheiro, ainda mais idéias, ainda mais tempo. E durante as sessões, é pouco recomendável agendar compromissos, muito pouco recomendável ter família e nada recomendável ter emprego. Mas parece que para Deílson Pessoa, não. Gravar é fichinha. É mole. Dá pra tirar de letra. Dá pra matar essa no peito e chutar no ângulo enquanto se toma um toddynho.

E é ridiculamente fácil assim porque, pelo seu conceito de criação – aplicado no artefato acima –, não há essa necessidade toda de fazer as coisas direito. Mas que raciocínio interessante, esse. Pra que tocar bem, se posso ter uma banda para esconder minhas limitações? Pra que cantar direito se nem terminei de fazer a linha vocal? Pra que terminar as composições se tenho pressa de lançar logo o trabalho? Pra que investir mais na harmonia se minhas letras dão pro gasto? Ora, quem é genial é genial com pouco. E foi crente em sua irrefutável genialidade que o autor deixou pra lá o minúsculo detalhe de concluir o disco para se dedicar a uma outra tarefa: transformar ouvidos alheios em ‘p-nico’.

‘Súbito E-feito’ é um disco pela metade em todos os aspectos. Primeiro, trata-se de obra composta por letras razoavelmente promissoras envoltas em canções irrelevantes e sem acabamento. Segundo, traz em sua ficha dois ou três músicos gabaritados, mas é uma coletânea bem generosa de faixas executadas com preguiça. E terceiro porque o protagonista, mesmo pondo a cara a tapa em um projeto solo, não se importa muito em cometer constrangedores e primários desvios de afinação, nem em cuidar do horrível timbre do violão base, nem em tocá-lo com o mínimo de domínio, como atestam solenes trastejadas e cordas acidentalmente soltas.

Sair do estúdio com um trabalho desse calibre clamando por oportunidade é, no mínimo, um escândalo. Isso porque a oportunidade-mor, na realidade, é ter em mãos recursos para gravar 13 faixas no estúdio mais conceituado da cidade e ter a aceitação de outros músicos diante da proposta. E é de frente para um microfone e de instrumento em punho, em um registro incansavelmente ensaiado e burilado à exaustão, que deve ocorrer a entrega. Mas ainda mais sofrível do que constatar que ‘Súbito E-feito’ é um imenso desperdício de fundos é concluir que ‘Súbito E-feito’ é um imenso desperdício de tempo, tão despudorada que é sua superficialidade estética. Pelo menos a obra, que é metade de si mesma e talvez a décima parte de qualquer outra coisa, mostra-se rigidamente inteiriça em um outro campo: o do fracasso.

LÔRO QUER BISCOITO

Há algo particularmente familiar em ‘Vertigem’, a número um. Ritmia pretensamente pop em um violão seco, teleco-teco ao fundo, progressão um-quatro em campo harmônico menor, linhazinha melódica iniciada no quinto intervalo da tônica. Ah, tá. Teremos um sub-cover de ‘Samba a Dois’, de Los Hermanos. Mas o que se iniciou como uma pobre lembrança dos cariocas torna-se assustadora versão xerográfica logo a seguir: no início de sua linha vocal, ‘Vertigem’ faz ‘currupaco’ no ombro de Marcelo Camelo sem nenhum constrangimento. Para disfarçar um pouquinho, Pessoa joga um acorde sem compromisso aqui ou ali, mas não consegue resistir ao ímpeto reverencial de dar à sua faixa o mesmíssimo arranque da canção los-hermânica. Quando vislumbrada como sombra de outra coisa, ‘Vertigem’ transmite antipatia e falta de autonomia criativa – defeitos pré-primitivos em algo de quem bate no peito para dizer que faz alguma coisa. Quando vista como algo em si, é apenas a típica abertura que não abre e ainda por cima manda a audiência catar coquinho.

Com um refrão que nunca é mais do que um retalho de escorregões de afinação costurados por uma performance vocal  insegura, burocrática e de carisma nulo, ‘Espacial’ é a típica peça que não foi terminada. Só que quando se junta o adágio infeliz com as estruturas anteriores, exercícios insípidos do que há de mais chato no pop rock, percebe-se que o maior problema da faixa não é necessariamente o fato de ter sido mal concluída, mas sim o de ter sido começada. Uma coisa dessas jamais deveria ter saído de momentos ruins de ensaios piores ainda. Mas saiu. E não apenas entrou em um repertório gravado, como entrou na estratégica posição de segunda faixa de um repertório gravado. É assim que se dá uma baita cusparada no ouvido de quem quer que seja.

TOQUE DE LETRA 

Encontrar um ponto alto em um trabalho tão empenhado na frivolidade é tarefa para poucos. Mesmo assim, é necessário destacar que ‘Maria Augusta’, ‘Contra-símbolo’ e ‘Imperfeito’ têm algum corpúsculo de potencial a mais diante da péssima coleção de más idéias que o disco é. A primeira, mesmo ingênua nas estruturas e simplesmente escolar em certos trechos, é salva por um elemento na qual Pessoa revela muito mais intimidade do que na arte de pensar harmonias e melodias: letra. Versando sobre a já folclórica e merecedora de busto ‘véia do shopping’, o compositor consegue ser denso e levemente irreverente sem ser pernóstico, o que, diante do assunto, é muito. Já na segunda, seu aceitável pendor para a pena pouco pôde fazer: ‘Contra-símbolo’ traz a maior quantidade de escorregões de afinação por metro quadrado de toda a obra. Cantada com uma falta de sensibilidade tonal simplesmente inacreditável, a faixa só vale alguma coisa apenas pelos arranjos, que revelam uma força que não se vê em nenhuma outra peça.  A terceira e última ‘Imperfeito’, por sua vez, é uma baladinha até digerível, mas sem brilho algum para sobreviver a três metros de distância do disco – único lugar onde ela de fato se destacaria.

‘TÓIN’


Se o fracasso ronda a milímetros do trio acima, trespassa com vigor e por várias vezes cada uma das demais faixas. Em ‘Deixe Star’, os arranjos se esticam, se desdobram, fazem acrobacias, piruetas, saltos mortais, andam de um pé só, chupam cana e tocam sax, mas não tem jeito. Nada salva a canção de ser monótona e monotônica demais para ser notada, o que prova de uma vez por todas que o que é ruim será ruim com qualquer coisa por cima, por baixo ou pelo lado. Já o dedilhado choroso de ‘Liricomputador’ apresenta grau 34 na escala Richter de chatice e faz a faixa se parecer com pelo menos outras 973 mil cançõezinhas sub-melosas de pop. Mas as primeiras palavras da canção revelam comovente preocupação do autor com a economia de tempo de seu público. Ao lançar mão de versos dolorosamente ‘originais’ como ‘busque-me, conecte-me, estou online you’, todos apontando para a atualização cibernética do lirismo tupiniquim – tabu absoluto no cancioneiro nacional, que ainda não encontrou uma solução pra isso –, Pessoa convida todos a pular de faixa imediatamente. Tanto faz para onde. O negócio é ser rápido.

O problema é achar opções pertinentes o suficiente para fazer da troca um bom negócio. A introdução de ‘Cumplicidade’, por exemplo, é marcada pelo incômodo e disfuncional soar de uma corda solta sobre um acorde posterior muito diverso, gerando horrível dissonância – coisa que pode ser interpretada, sem nenhum esforço, como um erro infantil de execução. Quando os arranjos entram e escondem a patada, tem-se um interessante enlace entre jazz e cavaquinho. Mas se é para essa mistura ser definitivamente lembrada, que seja experimentada em canções mais notáveis: se ‘Cumplicidade’ não consegue se destacar em repertório tão fraco nem com gotas de invenção, não terá êxito em lugar nenhum. Aprofundar nas rasteiras ‘Movimento’, ‘Bumerangue’, ‘Latifúndio’, ‘Depois do fim’ e ‘Impressão’ é apenas concluir que certas faixas precisariam passar por um nível mais sofisticado de ‘lapidação’: destruição de suas originais com um martelo, incineração e esmagamento das cinzas por uma Scania. Isso sim é dar ‘acabamento’.

Mas nem a desintegração de tudo com um acelerador de partículas resolveria a nulidade quase absoluta desse trabalho. ‘Súbito E-feito’ é ruim D-mais. Enjoado pra K-cete. É pra quem tem saco D-aço. Mas bem que avisa. Tudo parece, de fato, ter sido concebido subitamente, no susto, no nervosismo, a fórceps, com a ansiedade e o desespero empurrando tudo guela adentro. E que estranha matemática resulta disso: mesmo metade do que deveria ter sido, ‘Súbito E-feito’ consegue ser duas vezes pior do que qualquer coisa.