19 agosto 2009

SAMBAIÃO DO GRUPO DOIDO



A obra:
‘Naurêa apresenta: o Sambaião’, da Naurêa, disco lançado em 2006. Banda é Abrãao Gonzaga nas guitarras, Alex Sant’Anna no triângulo e nos vocais, Aragão no cavaquinho, Betinho Caixa D’água na percussão, Léo Airplane no acordeon, Márcio de Dona Litinha na zabumba e nos vocais e Patricktor4 nos pandeiros e surdo.


A Nota: 3,93

Indicado para: fãs da Cláudia Leitte. Ou para qualquer um que está se lixando para o que é originalidade ou repetição e quer mais é sentir o tambor, beijar na boca e ser feliz daqui pra frente. Pra sempre.

A crítica:

Os simpáticos à humildade que se desesperem: pretensão e presunção são forças-motrizes mais do que nobres para a criação artística. E é pouco contestável que, ao lado da cuidadosa lerdeza e da exigência semi-psicopata, os dois elementos citados compõem os ingredientes fundamentais para a concepção de uma obra que queira estar entre o minimamente suportável e o estupendamente genial. Ninguém sabe se lentidão e intransigência nas decisões foram a tônica das gravações deste trabalho – além, é claro, da própria Naurêa. Mas ninguém com o jardim de infância concluído terá a menor dúvida de que o álbum pode ser estabelecido como presunçoso antes mesmo de ser executado. Isso porque, a não ser sob a forma de piada, algo intitulado ‘Naurêa apresenta: o Sambaião’ está muito longe de ser simples: trata-se de ousadíssima proposição de algo novo. É nessa hora que, perplexa e absorta, a platéia bate palmas só de ver o pano fechado. Mas eis que a desgraça desse espetáculo é, pasmem, sua própria apresentação. Por quê? Porque esse disco é um saco.

Mais: um fracasso. É o pisoteamento das expectativas por uma manada de elefantes – montados por hipopótamos prenhes. É a experiência anulada e negada como queda de energia antes do anúncio do assassino. É a pulverização da paciência em micro-partículas. E o é justamente por não converter a imensa e saudável presunção da capa e do título em um repertório com substância, inventividade e força suficientes para alicerçar o tal do novo ‘caminho’ proposto. É importante reconhecer que há algo que de fato parece fazer força para surgir de toda a massa de tons e superfícies gerida pela Naurêa. Mas foi provado que não será da cloaca do septeto que sairá esse ovo. Ao término de quinze faixas repletas de tum-tum-tums, toin-toins, pi-pi-pis, fon-fon-fons e letras com gracinhas pop de pouquíssimo ou nenhum efeito, a única reação possível é aquela em que o sujeito olha para um lado, olha para o outro, toma consciência do tempo que perdeu e resume todo seu entendimento a um perdigoto simultaneamente interrogativo e exclamativo de cortante poder de síntese: ‘sim, e daí?!’

CATARRO

Entre os atributos pouco discutíveis da Naurêa nesse trabalho está aquele que é apresentado logo na primeira faixa: pressa em frustrar. Peculiarmente irritante, ‘Compay Segundo’ é tão convidativa na entrada quanto uma sopa fria de quiabo. É sempre válido destacar que isso não tem nada a ver com o pretenso ecletismo da canção, que brinca de amarelinha em diversas convenções já sepultadas com a denominação ‘brega’ tatuada na testa. Até porque essa recorrência, na realidade, é o único recurso interessante da faixa, que se equilibra com muita tensão entre estudo irreverente e lambada de quintal. Mas é simplesmente inacreditável a insistência no pauperismo melódico e a esquizofrênica repetição do verso ‘eu quero’ até a enxaqueca do mais equilibrado ermitão. Depois disso, o único projeto seguramente mais pretensioso que o disco é o exercício de continuar escutando-o.

A coragem é logo compensada com a válida ‘Sexta-feira’. Apesar da repetição abusiva do tema – que não tem lá essa força toda para ser explorado até o ribossomo, como algo merecedor de reforço –, é muito difícil deixar de notar a inteligência dos arranjos. Mas é brutalmente covarde o dueto entre Silvério Pessoa e Alex Sant’Anna. Não tanto pela interpretação do pernambucano, que faz o arroz com feijão e se esforça apenas para não atrapalhar, mas pela quase sempre péssima performance do outro. Sem conseguir sustentar um único e simples fraseado sem derrapar ou inspirar pigarro em quem quer que seja, Sant’Anna demonstra ser o pesadelo-mor dos otorrinolaringologistas – desnecessário citar professores de canto.

ISSO, AQUILO, AQUILO OUTRO DE NOVO

Já em ‘Dona Lalinha’ é que se começa a perceber a obsessão da Naurêa pelo repeteco frasal. Alguém levantou o braço querendo uma demonstração. Então, vejamos: em uma, temos ‘eu quero ser isso, eu quero ser aquilo’; em outra temos ‘minha vida é isso, minha vida é aquilo’; em uma terceira constam um punhado de ‘a fome é isso, a fome é aquilo’; em uma quarta puseram ‘me diga se é isso, me diga se é aquilo’. Na burocrática ‘Dona Lalinha’, a doentia recorrência papagueia uma mão cheia de ‘amar é isso, amar é aquilo’, dando início ao abuso de um recurso que, se é simpático na primeira vez, vira pura pentelhação formulaica e metafórica na vigésima terceira. Ora: se o assunto acabou, é melhor aproveitar a linha melódica com um assobio. ‘Álcool ou Acetona’, por sua vez, funcionaria melhor na entrada do que a débil ‘Compay Segundo’. Irreverente, intensa e levemente obscura, a faixa exala a convocação. Mas é o tipo de coisa mais fácil de se agüentar em apresentações ao vivo – onde há zilhões de estímulos visuais disfarçando a duração desnecessária das faixas – do que na apreciação introspectiva de um disco.

SIM, CADÊ?

Até aqui, assoma de vez um questionamento que não consegue se segurar por muito tempo: mas que diabos é o Sambaião? Se for a convivência da sanfona com o cavaquinho, não é lá muita coisa, já que o segundo tem presença tímida demais para ter relevância no mosaico percussivo. Se for a convivência do pandeiro com a zabumba, a pertinência é ainda menor, já que o que realmente doma tudo é a ritmia forrozeira do primeiro. A única peça que ensaia se aproximar da proposta de bater samba e baião no liquidificador é a teatral ‘João do Valle’, que sustenta a melodia de forró com uma batucada miscigenada e levemente indecisa.

É assim que nada de novo é identificado na péssima ‘Novena de São Bill Gates’ – prova de como até hoje ninguém no cancioneiro nacional conseguiu contextualizar de forma inteligente os novos tempos – nem na curiosa mas estranhamente socialóide ‘A Fome’; nem na apenas genérica ‘Vc Toda’; nem na doidice desinteressante de ‘Genival Lacerda’; nem na cansativa ‘Luiz não morreu’, absolutamente feita em cima de convenções desgastadas. Por outro lado, não é preciso esforço para descobrir certo valor na instrumental ‘Hoje só amanhã’, simpático estudo que casa choro com Caribe, e na rude e curiosamente arranjada ‘Dengo’. O prêmio ‘desperdício de ouro’, porém, vai para ‘Dorival Caymmi’, que, apesar do início promissor, não parece ter sido realizada com o mesmo excesso de ponderação com que o homenageado tratava suas criações, e peca pela insistência esquizofrênica em uma única estrutura – isso para não falar na insuportável interpretação de certo vocalista.

O fracasso da Naurêa nesse trabalho é ainda mais catastrófico quando se vislumbra sua proposta e todo o complexo de grandeza a ela inerente. Se o lançamento de uma obra como essa coincide com o nascimento do próprio Sambaião, quinze faixas depois já temos seu sepultamento – e essa é a perspectiva otimista. A realista é a que vislumbra que não aconteceu absolutamente nada, e tamanha ‘novena’ se resumiu a um bando de sujeitos batendo em peles com alguma noção percussiva, pouquíssima noção harmônica e nenhuma noção de como lidar com a própria vontade de transgredir. Apesar disso, ‘Apresenta o Sambaião’ é um raro espetáculo de aplausos garantidos: na entrada, celebra-se sua presunção; na saída, seu fim – pois é junto com ele que todo o sofrimento, definitivamente, acaba.


11 agosto 2009

EXCESSO DE COISA NENHUMA



A obra:

‘Imaginário’, da Sibberia, disco gravado entre 2005 e 2006. Banda é formada por Júnior Ribeiro nos vocais, Danniel Melo no violão, André Vinícius no baixo, Meu Balão na bateria, Rafael Santiago no teclado e Iguassu na guitarra.

A Nota: 2,97

Indicado para: quem diz por aí que "adoooooora'' a banda Nenhum de Nós sem saber que, na verdade, é fã de David Bowie.

A crítica:

Tirando óperas eruditas, óperas-rock e álbuns de punk, dezesseis faixas é um número abusivo e perigoso para qualquer trabalho. Trata-se de um amontoado de coisas sem nenhum critério para estar lá; uma coletânea de ‘tudo’, no afã desenfreado de se acertar em algum momento; uma avalanche concebida sem nenhum temor de que duas ou três boas idéias sejam esmagadas pelo excesso de equívocos. E se isso já é deplorável em todas as estilísticas imagináveis, no pop rock nacional, então, uma situação como essa se converte em uma hecatombe impensável. Simplesmente porque o tal do pop rock nacional merece atenção particular quando o assunto é achincalhe: poucas vertentes no mundo têm um repertório tão ruim, repetitivo, presunçoso e sem nenhum atrativo que justifique sua longevidade no cancioneiro popular. E que coisa curiosa aconteceu agora. Esse ‘Imaginário’ também é um disco ruim, repetitivo, presunçoso e sem nenhum atrativo que justifique suas dezesseis faixas.

Na verdade ‘ruim’ é apelido. Essa obra é um exercício supremo de chatice. E, pra variar, nada da mediocridade do trabalho está relacionado à competência técnica dos musicistas, sujeitos razoavelmente experimentados que provavelmente resolveram ignorar seus ‘paladares’ auditivos reais só para, travestidos de Capital Inicial ou Polegar, abocanhar cachês em bailes de formatura – o que não é pecado algum, desde que nunca, jamais e em nenhuma hipótese se grave coisa alguma em estúdio. O fracasso do álbum está, na realidade, na ansiedade irrefreável de mostrar volume de produção. Com míseras sete ou oito faixas bem escolhidas ainda não se teria uma obra lá muito pertinente – o ‘popinho’ é assim –, mas mesmo assim se teria algo indubitavelmente superior a esse asteróide em rota de colisão com a paciência que ‘Imaginário’ insiste em ser.


É claro, entretanto, que a esquizofrenia produtiva, o estranhíssimo apego a criações sem importância e a auto-celebração do ‘olha-só-como-consigo-fazer-igual’ – o ‘popinho’ nunca deixará de ser assim – tinham que se estabelecer como características majoritárias. O resultado nunca poderia ser outro: um trabalho praticamente impossível de ser escutado até o fim – a não ser sob o dever de resenhá-lo –, esquecível, aquém da real capacidade dos envolvidos e destinado a andróides sobrehumanos que agüentam uma hora de mesmice. Ou seja, amiguinhos: ‘Imaginário’ é um clássico do pop rock nacional.

16 É IGUAL A 73.867²

A mera atitude de enfiar algo como ‘Apenas eu e você’ logo na abertura já revela o naipe do que se verá a seguir. Com uma linha vocal obstinadamente reta e previsível – até porque não há muito para onde ir diante do absoluto pauperismo harmônico –, a faixa é inacreditavelmente irritante. Não há como negar que o sexteto se preocupa em arranjar em cima do indispensável pressuposto ‘menos é mais’ e exercita suas referências com assustadora sensibilidade comercial. Mas nem linhas de cello e viola escritas por John Barry salvariam algo tão banal de se afogar no poço da própria mediocridade. A canção seguinte, ‘Velhos Fantasmas’, é ligeiramente mais robusta criativamente e conta com intervenções guitarrísticas concebidas com propriedade. Mas sua insipidez sinaliza que a obra nunca crescerá o suficiente ao longo de seu repertório interminável.

A conclusão é referendada pela faixa seguinte, homônima ao disco. No inicio da canção, a idéia é correr atrás do ônibus do Biquini Cavadão. Depois, um balaio de estruturas culmina em uma levíssima referência à banda americana de exibicionismo e contorcionismo semi-circenses Dream Theater. Ao término de tudo, a sensação é de que as coisas estão melhorando, mas a passos de jabuti perneta e sem estimativa alguma de que algo realmente relevante venha a surgir. E olha que estamos falando de infinitas dezesseis faixas.

Mas será que essa estabilidade no medíocre-aturável se sustenta? Para desespero total do público pagante, a resposta é: não. Em vez de não melhorar, a obra fica ainda pior. Depois do discreto passeio às margens do córrego da pertinência, tem-se desastres como a pré-escolar ‘Sumário’; a absolutamente esquecível ‘Vou embora’; a impecavelmente retilínea e inevitavelmente desinteressante ‘O Outro Lado’; a fugaz e imatura ‘22 do quatro’, tão original que disponibiliza tudo o que irá pela frente em míseros sete segundos de execução. Já ‘Meu Tempo’, espécie de soma desajeitada de Charlie Brown Jr com Capital Inicial, é a prova de que não há limites para quem faz força para ser irrelevante.

PROBLEMA DE JUNTA


Diante de tamanho desfile industrial de vacância e superficialidade, é praticamente impossível deixar passar o minúsculo excedente de qualidade refletido por ‘Negar o Não’, sadicamente relacionada nos últimos suspiros do trabalho. Com algumas gotas de personalidade e pálido esforço harmônico, a canção se subtrai – minimamente, que se ressalte – dos insuportáveis clichês aos quais o grupo jurou lealdade eterna. Mas esse momento de leve estranheza não dura muito. Com a impraticável e digna de multa ‘Jeremy’, a banda logo retoma o trilho abismo abaixo e segue firme rumo ao seu projeto de não frustrar quem não espera absolutamente nada de sua proposta.

Para quem desperdiça a vida dedicando-se a Nando Reis, Ira! e afins, o desprezível trio final ‘Tudo é sempre Assim’, ‘Labirinto’ e ‘Nós dois’ – que aponta uma arma para a cabeça de um bourré de J.S.Bach por absolutamente nenhuma razão em particular – é um exemplar sintético da experiência suprema e transgressora que é apreciar o pop rock tupiniquim: em um primeiro momento, não se tem nada; no segundo, coisa nenhuma; e no terceiro, volta-se para o primeiro ponto, onde se constata que, na verdade, algo de fato aconteceu: perdeu-se tempo.

Quando já é impossível suportar míseras duas canções concebidas por qualquer ícone de meia-idade do popinho oitentista – estilo que pregou na cruz da década em questão um equivocadíssimo atestado de nulidade criativa –, a Sibberia traz quatro jamantas repletas de faixas e mais faixas que se repetem em um burocrático e chulo exercício de reverência estética. Mas há um lado nessa situação – extremamente otimista, que se registre - que converte o frisson prolífico do sexteto em colaboração à saúde mental pública: é o lado que vislumbra que ‘Imaginário’ não é uma quilométrica coletânea boboca de convenções pop, mas um megalomaníaco expurgo; um ultra bota-fora. Uma despedida, enfim, de uma banda cansada de ser o projeto nulo que é.


01 agosto 2009

AS "ÂNUS" TRACKS


A obra:

‘De Passagem’, de Joésia Ramos. Lançado em 1997, disco contou com Gilson Batata e Beto Vasconcelos no baixo, Du Silva nas guitarras, Gilberto Moura na flauta e Wolney Monte Santo nos violinos, entre outros músicos.

A nota: 7,93

Indicado para: quem põe um disco em um playlist qualquer e só acaba prestando atenção no que colocou vinte minutos depois.

A critica:

Essa maniazinha desgraçada de enfiar centenas de canções em um único trabalho é mesmo uma praga. Vira-se para a direita, lá vem um disquinho com 16 faixas. Pela esquerda, outro com 47. Embaixo, 62. Em cima, 105. E o mais angustiante é que, em praticamente todas as vezes, não há absolutamente nenhuma razão em particular justificando a presença da miríade de coisas. O que predomina, como conseqüência desse ofegante desespero numerológico, é o esmagamento completo da coerência e do alicerce estético do trabalho, que não passa de um amontoado, um batidão, uma gororoba que fornece espaço para que uma maçã apodreça todo o cesto ou para que o cesto apodreça de vez uma ou duas maçãs. Esse ‘De Passagem’, por exemplo, é um brucutu com dezessete pecinhas. E qual não é a surpresa ao se constatar que a obra, que bóia onde quase todas as outras afundam, só não alcança a ionosfera da qualidade total graças à contribuição de um certo grupinho de canções sem o menor propósito e altamente deslocadas de tudo. São as ‘ânus’ tracks.


A presença desses ‘brindes’ em ‘De Passagem’ é grave, mas não catastrófica. Quando o disco termina, a sensação remascente é a de uma experiência que começou pendendo para o desastre e recuperou-se a tempo de ser gratificante. Trata-se, portanto, de um trabalho de alta patente, predominantemente bem-sucedido e com o crédito de ter pelo menos uma faixa de altíssimo valor. Ao mesmo tempo, porém, é complicado desvencilhar o todo da turminha de faixas excedentes, que mesmo que tenha entrado antes no balaio, só permaneceu no trabalho por alguma compulsão numérica de quem quer que tenha listado o repertório. Se o bom senso e a furiosa disposição de fazer algo digno de lembrança fossem os reais elementos de juízo para a seleção, o exército de 17 canções sofreria pelo menos sete baixas – quatro delas já na primeira quadra do disco – e teria sua ordem completamente reformulada.

Só que, para alguém, fazer o público ter contato com o máximo de obras da compositora foi muito mais importante do que fazê-lo ter contato com o máximo de obras ‘de alta relevância’ da compositora. Resultado: mediocrização desnecessária de um todo com potencial para a excelência. Ao invés de potencializar os trechos ascensionais, esse raciocínio consagra, na realidade – ora vejam – as benditas e gloriosas faixas sabor colonoscopia.

DIÓXIDO DE CARBONO


Há algo errado com ‘Mágica Mistura’, a faixa de abertura. Não é necessariamente a peça mais incômoda já concebida nem sufoca com chatice e afetação a estilística sertaneja nordestina e do Centro-Oeste, vertentes que são mais ou menos liquidificadas aqui. Só que a economia dos arranjos e alguma coisa a mais – a menos? – a deixaram tão pálida e sem impacto que seu posicionamento no pára-choque dianteiro converte-se, ao vislumbre de tudo, em um dos maiores equívocos desse trabalho. É importante ressaltar esse ‘um dos’ da frase anterior porque ‘Boi de Jadelina’, a peça seguinte, é uma fortíssima concorrente no quesito nulidade. Trata-se de outra faixa superficial e sonolenta, com desenhozinhos de flauta que transformam a visceralidade da relação homem e animal em algo infantil, fabulesco e sem força. Uma coisa dessas só serve para apresentações de fantoche, jamais nas primeiras faixas de uma obra tão sedenta por recuperação após um início molenga.

É estranha a particular atração de certos compositores sergipanos pelo reggae, uma vez que até agora nenhum deles fez nada de relevante dentro do estilo. Preocupada em fazer parte desse panorama animador, Joésia Ramos lança ‘Maleável’, mais uma pecinha altamente recomendada para insones crônicos. Só que nesse filme intitulado ‘Morte em Kingston’, Ramos pode se dar ao luxo de ser a membro da gangue que cambaleia levemente pro lado do mocinho: a inteligente escolha dos arranjos, o cuidado com a melodia e a harmonia minimamente pensada situam ‘Maleável’ em um patamar ligeiramente acima das demais tentativas muito bem sucedidas de relegar o patrimônio criativo de Bob Marley à irrelevância absoluta. Já ‘De Passagem’, outro semi-reggaezinho qualquer – não há outra forma de defini-lo –, assusta pela completa ausência de elementos que justifiquem não apenas sua promoção como título da obra inteira, mas sua própria presença no repertório. É justamente aqui que ‘De Passagem’, o disco, começa realmente a encher o saco.

OXIGÊNIO


Por isso é curioso que a faixa seguinte tenha a alcunha de ‘Eu sei’. Mesmo não sendo o ápice do trabalho, a canção representa o momento em que a compositora arregaça as mangas para mostrar o que realmente sabe fazer. Deslocada do inviável quarteto inicial, a peça é ornada com arranjos que enriquecem generosamente sua estrutura simplória e até mesmo previsível. ‘Saudade Nordestina’, por sua vez, é a aplicação pertinente do vazio que não funcionou nas peças iniciais. É bem verdade que o pandeiro é quase excessivo e o violino poderia fazer algo mais do que um punhado de arpejos. Mas não mancha de forma irreparável a rusticidade dramática e sincera intrínseca à canção.


Pela força dos arranjos, e somente por eles, a maltratada e pouco fundamental ‘Amor Roxo’ despontaria como a faixa mais convincente para abrir as cortinas do disco entre as que são oferecidas. Mas o que a torna automaticamente dispensável é a presença posterior de ‘Jardim de Xangô’, definitivamente o fastígio absoluto do trabalho. A beleza do binômio harmônico-melódico é simplesmente capaz de comover objetos. E a malha timbrística que os violões deitam, somada aos efeitos voltados para a Natureza – temática aqui despida de seu aspecto surrado e sempre digno de desconfiança –, são uma aula humilhante de sensibilidade. Não há exagero nenhum em decretar ‘Jardim de Xangô’ como o tipo de canção capaz não apenas de mandar o péssimo início do repertório para o limbo do esquecimento, mas de salvar um disco inteiro.

‘PASSANDO’

O tanto que a flauta errou ao transformar ‘Boi de Jadelina’ em ‘Conversa pra boi dormir’ é o mesmo tanto acertado na intimista ‘Piaçaba’. Apesar da simplicidade muito bem administrada, a faixa traz lampejos distantes do impossível rococó de gibão de um Elomar. O mesmo pode ser dito de ‘Amor de fogo e água’, ainda que o lençol de violinos e a linha melódica alicercem uma estrutura predominantemente feminina. Mesmo que ambas não sejam canções indispensáveis, estão a alguns anos-luz do desastroso quarteto sugerido no início.


A expressiva elevação de qualidade no repertório é mantida até o fim com doses generosas de boas idéias, ainda que o número excessivo de peças empurre algumas repetições guela adentro. É nesse cenário que se situa o relevante casamento do choro com fado de ‘Sozinha’; a sofisticação do cansativo mas bem arranjado ‘Samba de neve’; a bem executada e bem interpretada rumba ‘Este céu, este chão’; sua prima flamenca e com um pé e meio nas propostas do Clube da Esquina ‘Carta Carioca’; a grandeza dramática da inspirada e excelentemente arranjada ‘Paisagem rural/ Paisagem Urbana’; o escuro e pulsante estudo andino ‘Grande’; e finalmente a idílica ‘Barcos e beijos’, que anula a qualidade inferior da gravação com a beleza nobre e leve de seus mosaicos, constituindo-se em um dos melhores encerramentos de repertório do cancioneiro local.

É absurda a idéia de que um punhadinho chulo de canções ruins seja o suficiente para mandar Joésia Ramos ao Vale da Mediocridade, que fica a duas esquinas do Poço do Esquecimento. Capaz de compor em inúmeras vertentes, a compositora fez de seu disco um vitral consistente e de qualidade extremamente rarefeita. Mas deixar pra lá as ‘ânus’ track é como esquecer que a obra em questão é ‘De Passagem’, o trator de 16 faixas, e não ‘Passando’, sua hipotética correlata impecável com não mais do que dez projéteis. E é neste momento que se torna adequada uma cruel mas eficaz metáfora zoológica: selecionar repertório é ter a frieza da mamãe-águia: em nome da excelência genética da espécie, o filhote fraco vira adubo.