26 maio 2008

Caindo do Poleiro



A obra: ‘In Cantoria’, de Sena. Gravada em 99, obra traz Pedro Mendonça na percussão, Nilton no Baixo, Genivaldo Lins no violoncelo e Josemar no violino.

A crítica

Nota: 3,67

Oh, os passarinhos cantadores do mato. Oh, a beleza de seus pequenos fraseados primitivos. Quando o recital começa, a sucuri cospe o bezerro; o preá estanca a proliferação; a lagartixa esquece a mosca. Tudo se dedica apenas à pausa contemplativa da pequena orquestra alada. E lá está um belo galho de cajueiro, onde pousa, solene, um alegre pardal. Ao seu lado, faz-lhe coro o curió, o bem-te-vi e o sabiá. A rolinha e a corujinha resolvem aparecer também. E logo embaixo, à sombra do pau-viveiro, soma-se Sena e sua viola. Harmonia, melodia, muito verde e paz entre homens e animais. Mas de repente um som rascante de baleadeira trespassa a overdose de alegria: é a paciência alheia. E depois de todos os bichinhos terem tombado ao chão, um urubu pousa agourento no braço da viola do cantador: é o senso de ridículo.

Levar a sério uma obra como ‘In Cantoria’ não é tarefa para amadores. É preciso estar piamente entregue à rasteirice e religiosamente dedicado ao que há de mais simplório, raso e sem graça nas propostas artísticas. A obra, portanto, é destinada àqueles que correm atrás do arco-íris antes de seu sumiço e aguardam ansiosamente a ressurreição de Walt Disney no terceiro dia. É um disco de ninar. Se fosse essa a proposta real de Sena, porém, teríamos então um trabalho de extrema eficiência: lá pela terceira ou quarta faixa, os sentidos já teimam em não responder mais. Só que não há nada apontando para essa intenção. Ao contrário, há a indicação de que a obra é fruto de intensa pesquisa debruçada sobre o regionalismo. E um par de fotos estranhas no encarte.

Em uma dessas fotos estranhas, Sena aparece abraçado com o cantador Vital Farias. Em outra, assoma entre os violeiros Xangai e Elomar. São típicas fotos de fã, em que o olhar deslumbrado do fanático contrasta com o ar vazio e enfadado da personalidade assediada. Vital Farias, por exemplo, parece estar sendo fotografado para a carteira de motorista. Mas o significativo nessas presenças é a identificação do que Sena toma como referência para si. E a constatação de que o mestre de Taperoá e os outros dois menestréis são os heróis do autor azeda ainda mais as conclusões acerca do trabalho: apesar da orientação qualificada, não é possível identificar praticamente nada do sertanismo erudito e vigoroso do trio acima na garapa que Sena quer fazer o público tomar.

Já seria ruim se a obra possuísse uma única canção como ‘Canto dos Pássaros’, xarope, opaca e com rusticidade de parque temático. Mas Sena, insaciável, a achou tão genial que decidiu reprisá-la, e sob outra alcunha: ‘Vida’. Ainda insatisfeito, o autor lança candidatura ao Grammy de redundância e enfia mais um clone da primeira faixa no repertório: ‘Gaivotas’. Não é necessário nenhum grande exercício de sensibilidade para notar as recorrências: ainda que em tons diferentes, as introduções são exatamente iguais, e as linhas vocais, além de similares, se iniciam precisamente no mesmo intervalo tonal. Tamanha repetição só seria relevável, e com muita disposição, se ‘In Cantoria’ fosse uma ópera.

Mas a insipidez do disco também viceja na variedade. Suportar peças como ‘Terra’, ‘Morar’ e ‘Beijos de Fantasma’ sem esquecê-las imediatamente é tarefa para prodígios da memorização. Na primeira, algumas harmonias acenam para o bom-gosto, mas não salvam a faixa de ser sufocada pelos clichês. Já a seguinte, extremamente arrastada, é tão maçante que raspa nos já esgotados sertanejos goianos de roça. A última, por sua vez, deve ter sido gravada de favor: ‘Beijos de Fantasma’ é primária demais para figurar no cardápio de Sena, razoável violeiro.

A familiaridade do autor com o instrumento de cordas dobradas está clara na rural ‘Canção de violeiro’, que, acompanhada da rica ‘Juriti, Zabelê’ e da belamente arranjada ‘Diferente Luar’ – essa sim uma fagulha da influência dos mestres que Sena exibiu - , compõe as exceções de qualidade da obra.

Mas a insistência do compositor em ser irrelevante é muito mais forte do que todas as boas intenções juntas. Por isso a apenas comum ‘SOS Nordeste’, em vez de encerrar o trabalho, não passa de preâmbulo para algo ainda pior. Sentindo-se na obrigação de fechar seu pequeno dever prático de regionalismo com algo universal, Sena lança mão da já amaldiçoável ‘Meu Papagaio’. Impossível algo assim dar certo. E não deu: a peça, intrinsecamente piegas, fica pior ainda quando refém dos arranjos circenses e da interpretação de feirante rouco de Sena.

É importante acrescentar que o regionalismo sem sustância do violeiro não é impertinente a ponto de posicioná-lo como um vaqueiro de boutique. Mas é mais notável ainda como Sena, munido do crachá de pesquisador, desperdiça a riqueza dos ingredientes das cantorias para propor pastiche. É como usar um peixe para pescar uma minhoca. Mesmo assim, não há dúvidas de que a apreciação de ‘In Cantoria’ corresponde a uma experiência rústica. Só que em vez de se estar dentro de um viveiro, se está, na verdade, dentro de uma arapuca.

21 maio 2008

O SOBREVIVENTE



A obra: Janeiros’, de Lula Ribeiro. Gravado em 1993 no Rio, trabalho contou com Luís Meira na guitarra, Zé Luís Maia no baixo, César Conti na bateria e Marcos Farias nos teclados. O baixista Arthur Maia fez participação especial.

A crítica:

Nota: 8,58

O fracasso ou o êxito público de uma obra nunca interessou e nunca interessará a nenhuma apreciação estritamente estética. Mas é particularmente curioso que um disco como ‘Janeiros’ jamais tenha figurado como pauta perene da audiência debatedora, nem mesmo como objeto de implacável achincalhe. Tudo isso porque o trabalho pode ser apontado, facilmente, como um epílogo bem-sucedido da subestimada MPB oitentista. O que faz com que a comparação a seguir, mesmo esdrúxula, tenha lá sua coerência: no vestibular para a música popular pertinente e suportável, Lula Ribeiro entregou a prova por último, mas conseguiu alta pontuação e se garantiu para a próxima fase.

Mas essa tal próxima fase, naturalmente, é aquela em que a MPB se enterra em uma miséria criativa sem precedentes – com exceções extremamente isoladas – e cede terreno a uma proliferação inacreditável de trabalhos molóides, subtropicalistas, repletos de regravações que ninguém pediu e pretensões tão meramente industriais que cheiram à extorsão. Ou seja, é a fase atual. Isso significa que ‘Janeiros’ é, sobretudo, um sobrevivente. E foi em plena recessão que Lula Ribeiro decidiu tornar público o rebento de seu relacionamento com os anos 80, o que amplia sua relevância. Para alívio de todos, o filhote nasceu com saúde: dos arranjos às composições, a obra está dentro dos limites de bom gosto e expressividade do que há de mais pertinente da década em questão.

Entretanto, é importante estabelecer que estar dentro dos limites significa também pouca ousadia. Em ‘Janeiros’, a preocupação de Ribeiro não é de forma alguma propor algo mais ou se posicionar como precursor do que quer que seja. A obra é resultado de ingredientes pré-estabelecidos, mas que exigem desenvoltura e compreensão para que não se convertam em tentativas presunçosas ou em réplicas desavergonhadas. É bem verdade que, em um primeiro momento, é fácil categorizar Ribeiro como um Caetano Veloso resfriado, o que ameaça o autor de ser situado como mais uma cópia desnutrida de seu modelo. Mas nem mesmo nos momentos mais ‘Podres Poderes’ de seu trabalho Lula Ribeiro chega a resvalar na baixeza de uma versão mal-sucedida. Em vez disso, o que se vê é um aluno aplicado de seus mestres, que demonstra conhecer os ingredientes e, principalmente, como misturá-los.

E isso já é provado em ‘No Brega’, a faixa de abertura. Festiva, funkeada e ao mesmo tempo sofisticada, a canção possui força suficiente para reclamar para si o posto de introdução. A letra de Chico Pires já revela aqui certa pendência para estranhas frases a esmo e pílulas de um pretenso concretismo, mas não há como questionar o entrosamento entre frases e melodia, ambas bem costuradas pela irreverência. Já ‘Trilha do Luar’ está fadada para sempre a lembrar de imediato ‘Amor nas estrelas’, interpretada por Nara Leão. Mas as semelhanças se limitam à introdução: a canção logo se diferencia e se desenvolve como uma rumba inspirada harmonicamente, ainda que não conte com uma interpretação exemplar de seu autor – o caetaneado Ribeiro simplesmente não consegue alcançar certas notas graves de sua própria criação. Pelo menos o breve encerramento em modulações jazzísticas faria um Toninho Horta lacrimejar de orgulho.

Mas de repente Ribeiro acha necessário prestar reverência a alguém. E o faz a Lupicínio Rodrigues, com a cansativa – pasmem – ‘Nunca’. Depois da trajetória agradável e consistente proporcionada pelas duas primeiras faixas, essa decisão do autor se revela um bueiro aberto sem aviso prévio. Em quatro minutos de queda livre, a faixa consegue ser ainda mais antiquada que a versão gravada por Zizi Possi uns dez anos antes. É, portanto, apenas mais uma releitura de boteco. Mas é muito difícil acreditar que Ribeiro, arranjador consciente e compositor capaz, tenha pensado sozinho em fazer algo tão ruim.

Talvez por isso ‘Flerte Fatal’ esteja imediatamente depois. Como que pedindo desculpas pelo tropeço anterior, o compositor saca logo uma das melhores canções do disco. É bossa nova clássica, mas, ao contrário das demais, suportável. De jovialidade praiana, a melodia da canção encaixa-se com elegância na harmonia liberta de clichês. E há ainda uma referência em plena letra à possibilidade de Marina Lima cantá-la, o que se mostra ao mesmo tempo apropriado e inconveniente: de fato a canção cai como uma luva para o oitentismo supra-harmonizado da carioca; mas a auto-referência na terceira pessoa é um exercício de humildade e bom-senso apropriado apenas para sujeitos como Pelé, Maradona e para certo molusco do Planalto Central.

A atmosfera de banquinho e violão é retomada na faixa-título. E mais uma vez o autor demonstra domínio, esquivando-se da contagiosa preguiça bossanovista e não deixando dúvidas de que tem em casa a discografia completa de seu mestre tropicalista. Talvez seja por isso que a canção implore assustadoramente pela interpretação de uma Gal Costa. Ainda que possua uma letra que qualquer um pode fazer, ‘Janeiros’ é rica o suficiente para figurar no repertório de intérpretes com grande extensão vocal.

Já em ‘Romper o Mar Imoto’ as referências estão em carne viva. Bêbado ou acometido por amnésia, Caetano Veloso atribuiria a faixa a si mesmo. E a precisão dos arranjos sintetizados de Arthur Maia deixa a canção com o mesmo pedigree das principais peças populares cunhadas nos anos 80. A ágil ‘Arte e Manhas’, por sua vez, é tão bem compactada e estruturada que poderia se converter facilmente em um hit. Mas ‘Alfazema’, cuja introdução parece tirada do disco ‘Os Borges’, de 1980, é mais ingênua e menos inspirada. Mesmo assim não atrapalha, e até de certa forma prepara o terreno para a excelente ‘Dengo’, a faixa derradeira. Mais distante de suas principais influências, Ribeiro fecha o disco com um pé-de-serra sofisticado, irreverente e candidato a clássico.

Aliás, não seria exagero algum situar o próprio ‘Janeiros’ como candidato a clássico dos últimos suspiros do cancioneiro popular daqueles anos 80. É verdade que há um quê de algo em maturação. E a equivocada ‘Nunca’ estará ‘sempre’ lá. Mas Lula Ribeiro conseguiu conceber um trabalho consistente o suficiente para relegar os defeitos ao limbo das exceções. E, além disso, figura entre os que podem bradar que, quando o negócio é crise – como a de certa época que ainda não passou –, é muito melhor chegar atrasado.

12 maio 2008

Apelando pra valer


A obra:
‘Fazendo Valer’, de ALapada, obra lançada em 2007. Banda é formada por Nanah Escalabre nos vocais, Júlio Fonseca na bateria, Jamesson Santana no baixo e Evandro Schiruder nas guitarras

A crítica:

Nota: 5,13

O pop rock nacional sempre foi ruim de doer. Engordou algumas contas bancárias por aí, mas nunca se estabeleceu como um nicho musical pertinente. Nos seus primórdios, não passava de um pastiche subnutrido e ababacado das toneladas de referências estrangeiras: era a versão ki-suco dos sumos euro-americanos. Quando deixou a casa dos pais e foi pra rua, o estilo gerou um punhado de criadores que precisou tomar vitaminas de MPB para amenizar o raquitismo estético. E de uns anos pra cá não passa de mais um elemento de reforço às pesquisas que acusam o baixo nível de escolaridade da população, tamanha a série de atrocidades lógicas e homicídios lingüísticos involuntários cometidos nas letras.

O poço, portanto, é fundo demais. E Alapada parece ter pago para entrar em um balde e descer até lá. Porque ‘Fazendo Valer’ é indubitavelmente um filho legítimo daquelas profundezas. É um ki-suco sabor Sudeste. Mas depois de situar a obra como insípida e inodora, torna-se obrigatório certo exercício de relativização, que é: nas zonas escuras do cancioneiro nacional, e somente lá, ‘Fazendo Valer’ é relevante. Um posicionamento mais exaltado até estabeleceria o trabalho como candidato à obra-prima da ‘forgetable music’. Mas ainda que esse título seja tão importante quanto saber qual a melhor faixa do pior disco do Legião Urbana, revela um atributo crucial d’Alapada; uma qualificação que separa quem aparece e quem é engolido pelo anonimato no mercado pop: a capacidade para entender fórmulas e compor rigorosamente dentro de seus limites.

Não é nada muito complexo. Na verdade, trata-se de uma equação de primeiro grau. E o resultado, ainda que não se limite necessariamente a zero, nunca atinge grandes valores. Mas a submissão de ‘Fazendo Valer’ aos trâmites formulaicos do rock de gueto, ou ‘streetero’, é de uma aplicação exemplar. O enquadramento mais explícito encontra-se nas letras, que não se contentam em ser moralóides, adolescentes e de inteligência econômica, exatamente como reza a cartilha das maiores referências nacionais do rock-pipoca: elas também carregam a aflição rasteira dos moleques das megalópoles, esmagados diante da muralha de prédios. É verdade que a questão é mais estilística que antropológica – ninguém precisa se limitar a cantar para a aldeia-mãe. Só que isso não safa Alapada de ter gravado o disco mais paulista já feito por aqui.

Por isso ‘De Boa’ é tão Charlie Brown Jr que mais parece uma versão. Está tudo lá: intróito com bumbo, chimbal e guitarra abafada; a levada ska; a referência ao próprio nome da banda na letra; a linguagem de gueto dos ‘manos’; as frases corridas que remetem ao percussionismo verbal do hip hop; o refrão convocador; e a necessidade de transmitir experiência em dificuldades e, sobretudo, dureza. A fórmula está tão rigorosamente obedecida e aplicada que chega a ser constrangedor. E trata-se, em valores absolutos, de faixa vazia e artificial. Mesmo assim, é um bem-sucedido rock-chiclete. Mas tal como qualquer substância pegajosa, só pode permanecer aderente por mais tempo que o necessário por acidente. Como chiclete no cabelo.

‘Deixando saudade’ também não vai além do que as FMs pedem. A letra, vislumbrada de longe, parece sobre um relacionamento. De perto, porém, não tem muito sentido, funcionando apenas como mau pretexto para a linha vocal. Mas já é necessário ter de reconhecer que, embora Alapada tenha ido buscar em São Paulo as ‘fôrmas’ de suas canções, não é formada, em absoluto, por músicos incompetentes. A bateria é correta; o baixo não atrapalha; as guitarras são executadas com a precisão de quem a domina em estilos muito superiores. E o vocalista cumpre bem seu papel. A bagagem técnica do quarteto, porém, só lhes fornece ferramentas para imitar qualquer coisa.

Como em ‘Andarilho’. Depois de mostrar esmero em macaquear a petulância quadrúpede dos Charlie Brown Jr, Alapada exibe aqui sua clonagem de Biquini Cavadão. A melodia e os arranjos soam tão característicos da banda carioca que poderiam chocá-los de decepção: a equação por trás do resultado foi desmascarada. Na acústica ‘Além dos Olhos’, a recorrência ao carioquês para untar as passagens entre frases é conveniente, apesar do segundo grau mal feito ter pesado na letra – ‘foi quando eu conseguir ajustar’ [sic]. Mas esse recurso apenas reforça o empenho de Alapada em somar ao que já é feito em despudorado descontrole por aí. É por isso que ninguém vai notar se a banda, por qualquer razão, resolver sumir do mapa.

Se todo o disco dependesse de faixas como ‘Drama de Controle’ e ‘Beijo de Judas’, porém, o desaparecimento da banda iria do pouco notável ao desejável. Na primeira, uma irritante economia harmônica se multiplica com a pobreza dos riffs e é decuplicada pelo refrão tapa-buraco. A conta dá mil: mil vezes esquecível. A segunda, por sua vez, já se denuncia no título ser um vértice de todo o moralismo barato de auto-ajuda que se configura na ‘mensagem positiva’ que a roqueirada pretende passar aos pivetes. Pelo menos a faixa desperta reação imediata: não são necessários mais do que 30 segundos para que ou sono ou irritação aflorem. Mas há um oásis: o interessante arranjo de guitarra no meio, que ofusca o sermão chinfrim que a sublinha. O mesmo se dá em ‘O Calibre’. Lá, o arranjo na zona intermediária consegue ser superior à canção inteira. Contudo, até que se chegue a esse ponto, toda sorte de reações torpes é despertada diante da faixa, profunda como uma folha de papel.

Mas quem liga. Em cada centímetro do encarte e em cada segundo das faixas, está claro que o objetivo de ‘Fazendo Valer’ nunca foi o de ser lembrado. Pelo menos pelo público: comercial até os liames da sem-vergonhice – os ‘s’ dos nomes dos integrantes são cifrões no encarte –, a obra está no ponto para receber sela e arreio das grandes gravadoras. Na verdade, mais que isso. Obediente a tudo, Alapada já está pronta para ser montada.

06 maio 2008

O homem que não estava lá



A Obra :

‘À Flor da Pele’, de João Moura. Gravado em 2007, o disco contou com Caribé nas guitarras, Júlio Carvalho no baixo e Petta nos sintetizadores, bateria e percussão.

A Nota: 4,36

A crítica:

É muito difícil chegar ao fim das 12 faixas dessa obra e, com uma inevitável e desesperada expressão de alívio, permitir que se escape a conclusão a seguir: esse disco é muito mais suculento para os músicos de estúdio do que para a crítica. Sim, porque nesse trabalho é revelada uma oportunidade ímpar de aparição para os laboriosos instrumentistas desfigurados pela imagem expansiva dos solistas. Para proporcionar isso, João Moura abre mão de ser o manda-chuva, lambe o teclado para justificar seu nome na capa e, por vezes, desaparece sumariamente. Diante de tamanho esforço para a autonegação, a impressão que fica é apenas uma: sem pulso para protagonista, o compositor faz apenas participação especial no próprio disco.

Mas há dois elementos que eliminam de uma vez por todas a possibilidade de conceber a abstinência como proposital: as fotos da capa* e do verso. Em ambas, Moura posa de pianista de hotel de luxo ao lado de um piano Steinway de auditório. Enquanto em uma delas sua mão desliza pelo instrumento indicando posse e domínio, na outra as mangas levantadas de seu blazer, a postura desleixada e o olhar distante sugerem segurança e jovialidade. É com o vislumbre dessas representações que se chega a uma afirmação já pouco confrontável – sim, trata-se de um declarado álbum solo – e a um questionamento insolúvel: onde foram parar, no disco, os atributos prometidos pelo pernóstico ambiente representado no invólucro.

Com certeza não se encontram na faixa de abertura. De ingenuidade melódica assustadora e construções harmônicas há muito superadas em todos os estilos existentes, ‘À flor da pele’ não consegue, sequer, ser uma boa peça de new age. Mas graças à sonoridade bem calculada dos arranjos, talvez sobreviva como mais um jingle nulo. Pelo menos a faixa seguinte, ‘Os seus olhos’, eleva um pouco o nível. Mesmo não sendo a canção mais original já feita, é inspirada a ponto de gerar alguns assobios involuntários, e, assim como o razoável reggae ‘Canção pela Paz’, é desempenhada de forma menos burocrática por Moura – algo que não se verá em nenhuma das outras faixas.

No início de ‘Brisa da Noite’, susto. Baixo repleto de fraseados, guitarra pretensamente iron-maideniana, melodia fácil: entrou-se no terreno movediço do forró eletrônico. Depois da entrada apoteótica – e que mandou às favas a asséptica imagem eruditóide da capa –, cresce a expectativa sobre qual será a solução do compositor para transformar uma referência tão tresloucada em algo pertinente. Mas logo se verá que não há solução alguma. Em vez disso, os problemas crescem, e sob a forma de melodias tão soporíferas e desempenho tão apático que exigem certo esforço para serem notados.

A entrada alienígena de ‘O Orvalho’, por sua vez, não se desenvolve a ponto de tornar-se empecilho, e não surgem dúvidas de que o piano é o centro de tudo. O problema é saber se o instrumento realmente deveria estar lá. Isso porque Moura sublinha os competentes arranjos com uma linha melódica tão maçante que consegue ser desnecessária. E a insegurança na execução dos fraseados remete a performances infantis de recital.

Em relação a sua infeliz antecedente, a faixa ‘Por Amor’ só apresenta um recurso a mais: a razoável intervenção de um solo de sintetizador do produtor Petta, medida que se perceberá em diversas faixas como compensação para as construções telegráficas de Moura. Mesmo assim, ‘Por Amor’ nunca irá além de ser mais uma peça para recepções de casamento. Ou ainda a trilha ideal para ocasiões em que qualquer coisa serve para abafar o barulho de várias pessoas mastigando ou de crianças pentelhando. Já a fastidiosa ‘Um Velho Sonho’, espécie de gêmea com Q.I. baixo da anterior, simplesmente não acrescenta em nada no repertório.

A anemia que perpassa a obra só é interrompida, não coincidentemente, pelas únicas peças que Moura não escreveu. A releitura da ‘inédita’ “Bachiana no. 5”, de Villa-Lobos, é ousada e alcança o bom gosto dos super-jingles eruditos de um Paul Mauriat. A também judiada ‘Concerto para uma só voz’, de Saint Preux - grafada ‘conserto’ no encarte - seria mais uma escolha arriscada. Mas a versão pé-de-serra pensada por Moura e sua trupe é aceitável, o que já é muito. E os instrumentistas conseguem protegê-la do piano preguiçoso que, volta e meia, insiste em dar pitaco.

O início malvado e ao mesmo tempo primário da versão para ‘O Lago dos Cisnes’, de Tchaikovsky, deve ter encorajado o compositor russo a dar no mínimo três boas piruetas de contrariedade em sua cova. Mas quando o guitarrista se impõe como solista, a peça cresce, até ousando tornar-se válida. Já ‘O Retorno’, composta por Petta, é daquelas faixas-bônus que superam o dito conteúdo oficial. E Moura parece nem ter sido convidado para gravá-la, tamanha a ausência de algo de seu em qualquer elemento lá atuante.

Graças a esse trabalho, o autor pode até não figurar entre os grandes virtuoses do instrumento que finge dominar. Mas é quando se mostra incapaz de se fazer notar no próprio disco que o compositor se revela uma mãe para quem tem mais a oferecer do que ele. De solidão, portanto, João Moura não sofrerá.