18 junho 2009

PEDESTAL NO ABISMO


A 'obra': ‘Todas as Tribos’, de Rubens Lisboa. Lançada em 2007, obra teve Diogo Montalvão nos teclados e direção musical, Marcus Vinícius nas guitarras e violão, Ricardo Bolinha na bateria, Robson Souza no baixo, Júlio Rêgo na gaita e Pedrinho Mendonça na percussão.

Indicado para: quem acha que é preciso baixar o caboclo do Cazuza e citar Luiz Tatit e demais mariposas sub-concretas da Usp para encontrar o graal do bom gosto

A nota: 4,13

A crítica:

Estabelecer-se acima da crítica deve mesmo ser algo lindo, hein? Mais que isso: deve ser uma atitude realmente superior, asceta, grandiosa. Absolutamente iluminado pelo alcance do nirvana criativo, pela posse de todos os conceitos de Beleza e pelo cajado que rege a Estética, o autor se fecha em si mesmo, reclama sua sabedoria sem precedentes para a introspecção e não reconhece a existência do público. E está certo. Onde já se viu um semideus da criação precisar de público? Ele basta a si mesmo. Come a si mesmo. Respira a si mesmo. E não defeca, pois não admite que nada de dentro de suas entranhas possa ser excretado. E para evitar que alguma criação sua possa ser absurdamente submetida à apreciação bisonha e fuleira de quem quer que seja – atenção para as trombetas douradas dos anjos ornamentando a profundidade da atitude –, o autor não lança troço nenhum na praça.

Tem-se então uma boa e uma má notícia. A boa é que ‘Todas as Tribos’ vai na contramão de tudo isso. Por que? Porque o disco foi lançado na praça. Foi prensado para mais de uma cópia. Tem encarte. Tem ficha técnica. Tem autor. Tem até comentariozinhos pessoais para cada faixa- que bonitinho. Trata-se, portanto, de obra de um ser terreno, que defeca – ‘obra’ no sentido de ‘trabalho’, por enquanto. E trata-se, sobretudo, de um rebento falível. A má notícia, amiguinhos, é que exageraram nesse negócio do ‘falível’. Mesmo alicerçado por uma banda de surpreendente competência e pela atuação extremamente inspirada da direção musical, o disco consegue a impressionante façanha de não ser mais do que regular.

‘Todas as tribos’, na verdade, é a drag queen da discografia local: não interessa a qualidade e a grife das echarpes, dos brincos, da maquiagem, da bolsinha, do sapatinho, do diabo a quatro: a natureza do conteúdo sempre será a mesma. O que reforça isso é que, em boa parte do imenso repertório – cujo número de faixas é, pasmem, 16 –, o que se vê é um balaio de vertentes pendurado no gancho da estética pós-vanguarda paulista, uma ala academicista e afetada do cancioneiro nacional que não deu certo e nunca dará – a não ser, claro, para eles mesmos. Por isso não adianta o quão aplicado possa ser o compositor diante dessa referência: ainda que uma ou outra faixa acene um ‘eu sou mais ou menos, olhem pra mim’, o resto da boiada de peças passa sem que nada mereça, de fato, ser lembrado.

É PRECISO CORAGEM

É interessante o quanto a faixa-título, que abre o trabalho, dá o que pensar. Calma que ainda não se trata do clássico ‘mas-o-que-é-isso-e-o-que-é-que-estou-fazendo-aqui’. A dúvida que paira é sobre a importância que foi dada à peça. Vejamos. Santa Tartaruga: é uma faixa-título-de-abertura, o que já é gravíssimo. E chama-se ‘Todas as tribos’. Claro que algo que circula por aí com o título de ‘Todas as tribos’ não precisa ser necessariamente uma ode a Carlinhos Brown nem a segunda parte de ‘Curumim’, de Mara Maravilha. Mas pela temática, pelas infinitas referências contidas na letra, pelas possibilidades rítmicas, pela força que seu posicionamento no repertório exige, havia no mínimo 547 mil possibilidades de concebê-la como um hino intenso à diversidade. Apelando para a vanguarda da vanguarda – que no dicionário quer dizer ‘nulidade estética’ –, o autor preferiu parir um pop arrastado, repetitivo, estranhamente melancólico, pouco convincente e de uma frieza ártica. E em nenhum momento na história do universo a frase-adágio ‘tudo me comove’, da forma como foi cantada, poderá ser digerida pelo ouvinte como algo sincero.

Iniciar o trabalho de forma purgante não pareceu suficiente para o autor-intérprete. Com ‘Samba’, situada logo depois, fica mais do que claro que a intenção do protagonista é promover um duríssimo teste de resistência: quem agüentar o tranco, pode ficar pro resto. E realmente é preciso ter sangue no olho para essa aqui. Cansativa desde o início, ‘Samba’ é uma construção com harmonia pálida, melodia previsível e letra repleta de clichês figurativos que não versam sobre absolutamente nada. Em nenhum momento a canção consegue passar de uma antipática tentativa de ser algo muito superior ao que de fato é, circulando em torno de uma afetação incurável. Ainda mais interessante é o comentário no rodapé do encarte, em que o autor ressalta que, além de incompreendida, sua peça foi invejada e disputada. Dois pontos: tá.

Já ‘Saudade.com’ não segue os passos de suas antecessoras. Mas lá pelo meio parece que quer ser igual a elas quando crescer. Se no início a faixa ensaia ser promissora, com desenhos harmônicos lô-borgianos e uma linha vocal que não chega a resvalar na insuportabilidade, tudo descamba para a chatice do refrão, reto e sonolento. Já ‘Neném’ tenta ser irreverente e levemente irônica, mas com sua dolorosa previsibilidade, nunca passa de séria concorrente ao Grammy nas categorias chatice e superficialidade.

‘OLHEM PRA MIM’

Apesar das composições de força altamente questionável, ‘Todas as Tribos’ pode ser estabelecido como a consagração do quinteto instrumental que acompanha tudo. Todos os arranjos – os de teclado em particular – são exercícios bem sucedidos de sensibilidade e medição e elevam a comprometida importância das peças. Em ‘Nem Adianta’, a guitarra dispersa pelos compassos e o teclado etéreo intensificam a atmosfera idílica que é sugerida palidamente. O timbre do solo de teclado, então, é um excelente achado, assim como a escura introdução da pouco pertinente ‘Da Laia do Lama’. Nela, o baixo sombrio e hesitante consegue sustentar com competência estruturas que não têm graça alguma.

Mas há um ou outro caso raro de perfeita simbiose entre embalagem e entranha. Mesmo feita em cima de clichês latinóides, ‘Clima Legal’ exerce muito bem o casamento entre letra e melodia e termina por fazer jus ao título, que se refere, na realidade, à arte da ‘dissimulação’ pré-conquista. ‘Vai de Madureira’, por sua vez, possui nível parecido. Não é extraordinária, não irá elevar o PIB do país e não achará a cura da Aids. E ainda é predominantemente pálida. Entretanto, gira em torno de um refrão inventivo e natural, atributo que falta a praticamente tudo o que é apresentado neste trabalho.

A GENTE NÃO QUER SÓ DINHEIRO

Mas por que será mesmo que um disco como ‘Todas as Tribos’ não funcionou? A banda come o amadorismo com farinha e lança uma grande idéia instrumental a cada dez segundos. A mixagem e todos os procedimentos de pós-produção não devem nada a muita gente. A gravação parece ter exigido uma soma não-desprezível de moedas, o que já a situa em uma realidade muito diferente da que é apontada pela conversinha mole dos pedintes de Secretaria de Cultura. Então, onde diabos deu chabu? Nas idéias, camaradinhas. Aquelas formulações abstratas que, na maioria das vezes, costuma sair de certo órgão situado acima do cerebelo. E nas composições. Em cada uma delas. Em cada um dos pequenos perdigotos de vanguarda paulista. Em cada um dos arroubos mal resolvidos de reverência à indigerível nova MPB. Não há como concluir outra coisa diante da ingenuidade primária da balada ‘Escravo’, da linha vocal pouco suportável de ‘Mascarada’, da marcha genérica e deslocada de tudo ‘Se eu fosse você’, e finalmente diante da irregular ‘Só e vadio’, que é na introdução tudo o que a mixuruca faixa-título gostaria de ter sido e é no corpo tudo o que o disco apenas consegue ser.

Se para lançar um disco chato é necessário ser ruim, para lançar um disco chato com uma banda de apoio brutalmente capaz é necessário ser ruim e meio. Mas é preciso reconhecer o quanto o autor se esforçou para ser acessível e submeter ao público, esse monstro mudo, não apenas sua condição humana de ‘defecabilidade’, mas também a falibilidade dessa obra. Agora podem dar ao termo ‘obra’ o sentido que quiserem.