03 março 2007

Papagaio (salvável) dos cajueiros

A OBRA:

´´Ruas de Ará´´, de Paulo Lobo. A obra. Gravada em 1999, é o primeiro disco do compositor. O tecladista Diogo Montalvão atuou como produtor e arranjador.

A CRÍTICA

Nota: 7,68

Se Paulo Lobo algum dia resolver renunciar à arte da composição, Sergipe estará perdendo um autor com substância e com algo para ser mostrado. Se for a atividade de letrista o labor negligenciado, talvez se perca um publicitário esforçado. Mas como ´Ruas de Ará´´ não é um disco de jingles – pelo menos esta não parece ser a proposta fundamental -- , é mais sucinto insistir que a ´´averbalização´´ de Paulo Lobo seria muito importante para a saúde mental de muitos e para a música em geral.

Na área dos acordes, dos arranjos, das linhas melódicas e de tantos outros critérios técnicos e abstratos que resvalam na construção musical, este ´Ruas de Ará´´ aproxima-se bem de uma obra sólida e competente. O produtor Diogo Montalvão, ora responsável pela comicidade não planejada em certas faixas de Rubens Lisboa, mostra-se desta vez com um ótimo domínio das sonoridades de seu instrumento – o teclado – e estabelece uma intrincada mas coerente malha sonora.

É curioso como uma maré de timbres sintetizados consegue permanecer apenas como alicerce na música ´´Ruas de Ará´´, sem comprometer muito o teor rústico – isso até os 30 segundos finais, quando inexplicavelmente surge no meio da canção um duelo de sabres de luz. Mas releva-se. E a letra permanece homenagem, mesmo discreta e, literalmente, abreviada.

A canção seguinte, ´´O Verde dos Quintais´´, é a demonstração-mor do problemático contraste entre os dotes de Lobo. O nível é alto; as passagens, melífluas; os arranjos, assustadoramente interessantes. Mas como é de praxe por estas plagas joaninas, é preciso posar de ´´Paladino-do-patrimônio-cultural-sergipano´´ ou de ´´conhecedor –das personalidades –locais-pouco-apreciadas-mas-que-coitadinhas´´ para ser aceito na instituição da música sergipense. E tome Mário Jorge, Santos Souza e J. Inácio no meio de tudo. E se não der pra musicar esses nomes todos, que se arranje um espaço para citá-los mesmo, entre um verso e outro.

Em ´´Vida Mansa´´, por sua vez, o que atrapalha é a recorrência direta a ícones culturais. Não que isso seja necessariamente uma heresia. Mas nos termos em que foram lembrados Ginsberg, Caetano Veloso e Dorival Caymmi, não funcionou. Ficou anêmico. Estudantil. Frágil. A letra não ganhou em nada. E a canção, uma divertida rumba calçada-com-havaianas, perdeu.

Os mais desavisados atribuiriam a ´´Rosário´´ a qualidade de produto da Secretaria de Cultura do Estado. Qualquer comercial com caju, papagaio e Irineu Fontes encontraria em tal música perfeita correspondência. Para Paulo Lobo, não foi suficiente citar o livro de Chico Dantas ´´Coivara da Memória´´: foi preciso salientar que Dantas ´´escreve com estilo´´ e lamentar a ´´Santa Ignorância´´ dos que ´´não ouvem nosso canto´´. O que sentir diante de tamanha overdose de localidade? Orgulho? Remorso? Alívio? Cansaço. Cansaço e uma vontade imensurável de fazer com que Lobo e o poeta Ronaldson se encontrem.

Pois é da parceria deste último com Pantera, talvez o maior músico em atividade no Estado, o destaque da obra. ´´Maria Feliciana´´ é curiosa e inteligente. E caiu como uma luva na interpretação de Lobo e nas manias tecladísticas de Montalvão. A alusão a um patrimônio sergipano, neste caso, é o ponto de partida para devaneios poéticos, e não de chegada; dentro de seu próprio disco, Paulo Lobo possui um símbolo de expurgo do bairrismo que alimenta a pequenez das criações em Sergipe.

Na verdade, o próprio Lobo conseguiu tangenciar o bom-senso com ´´Outro Dia´´, bossa simplória, mas simpática. E boa parte dessa simpatia vem justamente da letra inocente, que consegue congregar bem um contexto micro (o Pré-Caju) com uma disposição universal (desejo). Foi o salvo-conduto da trajetória do cantor como autor até um próximo trabalho; um atestado de ´´vou-melhorar-ainda´´ bem crível. Com uma bagagem musical bem satisfatória, não será difícil para Paulo Lobo avançar. Basta descer do cajueiro. Porque essa coisa de ´´cantar a sua aldeia para ser universal´´ ainda vai matar um.