18 novembro 2008

BLOCO DO 'SOU' SOZINHO


A obra:

‘Sou’, de Marcelo Camelo. Lançada em 2008, obra contou com a participação de Mallu Magalhães, Clara Sverner e do grupo Hurtmold, que contribuiu como banda base.

A crítica:

Indicado para: quem decorou o ‘4’ do Los Hermanos

Nota: 7,97

‘Ai, será que vai parecer com Los Hermanos?’ ‘Ai, será que vai ser o quinto disco do Los Hermanos?’ ‘Ai, será que vai ser tão bom quanto Los Hermanos?’ Treze em cada dez pessoas se perguntaram sobre o potencial parentesco desse disco com o repertório da sepultada banda carioca. E quanta besteira por metro quadrado. Quanta jequice. Quanto excesso de pudor diante de obras anteriores. Não é preciso nem ter muito ânimo mental para desvendar essas inacreditáveis charadas, pois a resposta está riscada à sangue nesse trabalho: é claro que ‘Sou’ parece Los Hermanos. É claro que trata-se do quinto disco dos Los Hermanos. É claro que tudo pretende se levantar e partir do mesmo lugar em que o quarteto caiu e morreu. Por quê? Porque Camelo é o Los Hermanos.

Quem se levantou aí e disse que não? Põe aquele chapéu em que está escrito ‘Bocó’, vai pr’aquele canto ali e repete mil vezes o refrão de ‘Ana Júlia’ – mas para si mesmo. Prestemos mais atenção, por favor, e admitamos que todo o aparato estético da banda partiu da cabeça de Camelo. Acompanhou sua evolução. Brotou sobre sua ingenuidade. E se expandiu com a bandeira de sua posterior genialidade. Rodrigo Amarante, a outra cabeça pensante do grupo, era justamente o discípulo mais original e ousado das investidas do compositor principal. E até ensaiou uma síndrome de George Harrison no último trabalho do quarteto, tão fulminante que foi seu crescimento qualitativo. Mas não houve tempo para que a banda se encerrasse como soma de duas escolas diferenciadas e independentes de criação. Camelo firmou-se como o Jimmy Page da coisa toda, levando embaixo do braço todas as planilhas e cálculos que dão sustentação ao rock (?) sem sub-denominação da banda carioca.

Por isso não há surpresa alguma ao se constatar que ‘Sou’ é sim um diabo d’um disco do Los Hermanos, mas um disco do Los Hermanos feito sem pressão, sem ansiedade, sem muito palpite externo e com alguma preguiça. É também irregular na inspiração das canções, experimental sem terrorismo e marcado por arroubos tão violentos de introspecção que chegam a abraçar o silêncio - atributos que o aproximam do disco derradeiro do quarteto. ‘Sou’, portanto, é obra para quem sobreviveu ao hermetismo de ‘4’ – com o trocadilho valendo – e esperava um ‘5’ ainda mais cabeçudo, truncado e solitário. É obra, também, para quem sabe o quanto o Los Hermanos não apenas dependia de Camelo, mas, sobretudo, se confundia com ele.

ELOQUÊNCIA

Suspensa, repleta de espaçamentos e pontuada por arranjos hesitantes, a abertura ‘Téo e a Gaivota’ foi feita para assustar os mais afoitos. O efeito causado é muito semelhante à de ‘Dois Barcos’, do ‘4’: cheia de firulas e instigante, a peça é um intimidante cartão de visitas, ainda que não encerre em si a definição do álbum inteiro. As texturas de guitarra, por sua vez, prosseguem fincadas no mesmo raciocínio los hermânico, onde distorções e harmonia de tetracordes convivem, digamos, em ‘melodia’. A posterior ‘Tudo passa’ já é mais contida na deliberada indecisão rítmica que marca a primeira. E o refrão, marcado pelo entoar dolorosamente melancólico da oração-título, se destaca como um exercício de eloqüência sintética que não se verá tão cedo por aí.

Com aroma de improviso, a pouco atraente ‘Passeando’, por sua vez, parece ter sido gravada de primeira. Cada acorde aparenta ter sido pensado ali mesmo, no instante da gravação, na doidice e na espontaneidade. O processo só é interrompido pela linha melódica cheia de arestas que Camelo entoa, talvez para justificar as partículas poéticas que escreveu enquanto desistia - de novo - de relembrar como era seu queixo antes da moda Talibã atraí-lo. É peça tão fechada em si que, em um futuro não muito distante, sua lembrança só interessará mesmo ao seu próprio autor.

VIRGINDADE E TROPICALIDADE

Já a inocência de ‘Doce Solidão’ tem os dois pés no indie rock de um Belle and Sebastian ou de seu correlato holandês Sondre Lerche. Tanto que Camelo a situou ao lado de ‘Janta’, sua parceria com a pré-acne e precoce de doer Mallu Magalhães. Aqui, o autor larga o jeitão litorâneo e se volta de vez para um ambiente virginal, alvo, intocado e, para não perder o costume, pra baixo, mermão, bem pra baixo. A solução harmônica para a melodia é simples, mas de bela obscuridade. E a junção do protagonista com sua convidada pré-adolescente é coisa que não demora um segundo sequer para dar certo.

Se alguém ainda insiste em estabelecer ‘Sou’ como algo muito personalizado e distante da herança do quarteto carioca, que vá pra casa escutar ‘Mais Tarde’. Essa aí permite até que se visualize o clipe: Amarante com blusa rosa fazendo impraticáveis passinhos de dança; que corta para um pé-de-graviola qualquer filmado em Super 8; que corta para o baterista Rodrigo Barba, que surra as peles da caixa até fazer pular os confetes; que corta para Amarante e sua performance simpaticamente prejudicial. ‘Mais Tarde’, enfim, está muito provavelmente entre as canções que Camelo não teve tempo de incluir em ‘4’. A tropicalidade, os arranjos econômicos, o tecladinho vagabundo, a dupla de guitarras que leva nas costas toda a inventividade, a pujança harmônica, o casamento de uma vaga irreverência com uma explícita tristeza, está tudo lá. ‘Mais tarde’ é tão escancaradamente Los Hermanos que tem até os mesmíssimos escorregões de harmonia que algumas das canções da banda carioca traziam e que, para espanto de Julio Medaglia, não as atrapalhavam. É sentar e aguardar a canção do Amarante começar.

SOBE-DESCE

‘Saudade’, por sua vez, soa como a típica canção instrumental que, de uma hora para outra, ganhou uma linha vocal. A imensa presença do dedilhado violonístico poderia ter sido mais respeitada: se na essência ‘Saudade’ é um estudo, na superfície comporta-se como uma sub-canção, sem o mesmo brilho das demais. A pianista Clara Sverner percebeu isso e, em uma espécie de faixa bônus, converteu a peça em um exercício de melancolia e escuridão muito mais eficiente que a versão de Camelo.

A partir de então, o disco entra em um pequeno redemoinho de peças inventivas, mas nunca fundamentais. Em ‘Santa Chuva’, Camelo executa com preguiça algo que Maria Rita praticamente esgotou. ‘Menina Bordada’, folclórica e repleta de guitarras envolventes, é a resposta imediata a isso. Mas logo Camelo providencia outro declive, com a ingênua e sem grandes atrativos ‘Liberdade’, para depois oferecer um aclive com a carnavalesca e harmonicamente saudosista ‘Copacabana’. A última ‘Vida Doce’, finalmente, é ainda mais Los Hermanos que todas as anteriormente citadas. Composta pela união de maracatu com folia de reis e sublinhada pela atmosfera da salsa, a canção derradeira de ‘Sou’ é mais do que um aceno para a obra pré-carreira-solo do autor: é um abraço em seus dias de Hermano.

Mais importante do que especular acerca da continuidade do Los Hermanos em ‘Sou’ é descobrir de onde Camelo tira forças para suportar seu horrível visual de tuaregue refugiado, caracterizado, principalmente, pela angustiante mata que esconde metade de seu rosto. O papinho que reprova a herança de repertório – algumas vezes sustentado sob a acusação incompreensível de auto-plágio - é brocha aqui justamente por não vislumbrar que o compositor sempre foi o detentor dos moldes estéticos de sua antiga banda. O que quer dizer que não é ‘Sou’ que é los-hermânico. É o Los Hermanos, na verdade, que é camelístico.

04 novembro 2008

Nem palafita, nem arranha-céu


A obra: 'Aldeia', de Amorosa. Lançado em 2002, disco contou com Tovinho nos teclados, Itu na bateria, Genaro no acordeon e Luciano Magno nas guitarras e violão.

A crítica

Nota: 6,92

Já faz algum tempo que a aleijada Música Popular Brasileira sinaliza não precisar mais da estética de uma Elba, de uma Amelinha, de uma Marinês, tamanho o desejo das intérpretes atuais de se converter em perdigotos de Marisa Monte. Tanto que foi necessário ser gravado o tal do ‘Grande Encontro’, projeto caça-níqueis que consistiu no revestimento de um repertório já em vias de desgaste por inúmeras referências além-Nordeste. O resultado deu certo. Mas ao mesmo tempo em que forneceu um pouco mais de oxigênio para o cancioneiro dos cânones comerciais nordestinos, o tal do encontrão esgotou praticamente todas as possibilidades do estilo: não há graça nenhuma em ouvir mais versões de coisas como ‘Táxi Lunar’, ‘Princípio do Prazer’ ou ‘Ai que Saudade d’ocê’ depois do que fizeram. Acabou. Morreu. Já era. Não se despediu adequadamente? Problema seu. Mas lá vem Amorosa a trotes domando sua ‘cavalaria’ composta por 11 jegues – ‘jegaria?’ –, cada um carregando ‘uma ruma’ de patuás e rendas em cestos de palha. “Não está meio tarde pra isso?”, alguém pergunta à condutora da carruagem. Resposta: “Nóis é jeca, mas é jóia”.

Só que ‘Aldeia’ não é jóia coisa nenhuma. Talvez tenha relevância insuperada dentro da longeva trajetória da intérprete, alçada à categoria de patrimônio máximo da cultura local com perigosa unanimidade. Mas quem gosta de carreira é biógrafo. Descascada até a última mitocôndria, a obra em si é apenas um curioso exercício de absoluta teimosia. Em plena era pós-Grande Encontro, Amorosa decidiu lançar candidatura à corte dos ‘pernaibanos’ que passaram um bom tempo no centro nacional das atenções. Não que teimar em ser mais do mesmo seja algo reprovável. Até porque fazer o contrário e tentar peitar a força da indústria, atitude geralmente vista como heróica e transgressora, não passa de outra forma de também querer ser notado e, por extensão, querer ser completamente absorvido por ela. Mas o risco que Amorosa correu foi o de passar somente por cantora recém-surgida em um duríssimo mercado pretendendo fazer reverência a Elba, a Amelinha, a Marinês, e sem a força do repertório do trio. É como se, ao invés de dizer ‘cheguei’ e bater o pé no salão com o solado duro da alpercata, a intérprete apenas caminhasse dentre botinas com os pés descalços.

Mas entre cabeçadas na parede e acertos pouco contestáveis no repertório, um atributo em particular sobreviveu ofegante, porém incólume: a extrema versatilidade da cantora – completa a ponto de conseguir doar sangue a canções feridas pela repetição e a multiplicar o valor absoluto de pequenas pérolas que andavam escondidas por aí. E ao mesmo tempo em que apresenta um padrão timbrístico facilmente reconhecível como afeito ao cancioneiro nordestino, Amorosa não parece arremedo, nem ensaio, nem imitação de absolutamente ninguém. Entretanto, o que bastou para garantir a sobrevivência de sua trajetória como cantora não foi suficiente para transformar ‘Aldeia’ em uma obra fundamental.

Está escrito na embalagem do chiclete: errar é humano. Mas deve ser imediatamente encaminhado ao Congresso algum projeto de lei que incrimine quem estraga canções logo nos seus primeiros dez segundos. A pena para o acusado: passar um mês preso em uma sala com um único alto-falante a reproduzir sem parar seu próprio erro. É claro que o tecladista Tovinho, o responsável, pode recorrer. Afinal, tambem é dele a sucessão de excelentes idéias que percorrem o trabalho. Mas não há explicação científica para o uso de um timbre espacial e futurista para abrir uma obra alicerçada na rusticidade e na regionalidade. Para alívio da população, que já sofre tanto, a aterrissagem dessa panela de pressão dura apenas os citados dez segundos. Depois disso, tudo começa a fazer mais sentido, e ‘Alto do Tempo’ se transforma em peça quase épica. Consciente disso, Amorosa talhou uma adequada interpretação empostada, com direito a erres escarrantes de uma Maria Bethânia.

Pra quebrar de vez o gelo, a intérprete lança mão da brincalhona ‘Salada Tupiniquim’, canção despretensiosa e mais concentrada na troça e no folguedo. Aqui, Amorosa inicia imediatamente o exercício de versatilidade e deixa a diva sertaneja da faixa anterior para trás. O sotaque exagerado e o timbre áspero são elementos conscientemente recorridos para teatralizar ou até mesmo ‘clemildizar’ a peça irreverente de Ismar Barreto sobre auto-afirmação da identidade. E o resultado, sustentado no assustador equilíbrio dos arranjos, é o melhor possível. Já ‘Nóis é Jeca mas é jóia’, outra peça com os dois pés na irreverência, é inferior e mais anêmica, mas conta com uma interpretação impagável da cantora e permite que se identifique o primeiro acerto do trabalho: a recorrência à graça para abordar a nordestinidade. O lado verborrágico, engajadóide e politicóide do assunto que fique com os acadêmicos de shopping center, rappers e chorões mendicantes de Secretaria de Cultura.

Mas nem tudo é cisterna nessa incursão sertão adentro. É preciso esforço, por exemplo, para estabelecer ‘Mel e Aveloz’ como exercício do viés romântico da cantora. Isso porque a primeira coisa que se percebe é que a faixa se trata, apenas, de uma versão mais pálida e burocrática da original. ‘Forró Ligeiro’, então, não possui um único atrativo que justifique sua presença no repertório. Não é canção simples. É pobre. E é absolutamente igual a zilhões de outros forrós que não precisam de letra para conseguir o mesmo e fundamental e único efeito: ser dançante. ‘Em todos nós’, por sua vez, é facilmente identificável como um filhote das fórmulas sombrias de Zé Ramalho. Mas essa constatação não ajuda em nada: a faixa é burocrática, pretensiosa, cansativa demais para seus parcos três minutos, e consegue extrair da intérprete uma performance forçada. Um soco em todos nós.

Já ‘Ciúme D’ocê’, composição da cantora, é a prova inconteste de que o negócio de Amorosa é mesmo cantar. Não porque a faixa é uma demonstração rascante de genialidade interpretativa, mas sim porque é um acidente de trem enquanto criação. E essa coisa de declamar poema no meio, como foi feito, funciona muito raramente. É claro que ‘Ciúme D’ocê’ se soma ao lado majoritário dessa estatística. Ao menos a rica ‘Tempero Moreno’, a muito bem escolhida ‘Toada’, a arriscada pelo desgaste mas bem-sucedida ‘Sabiá’ e o excelente encerramento ‘Serigy’ equilibram a obra e a mantém em um nível razoável de relevância, ainda que não a posicionem como clássico de nada.

‘Aldeia’, por fim, não é bem um conjunto habitacional, só que também não chega a ser uma invasão de palafitas. Mas é mais confortante pensar nessa obra como um primeiro passo para algo maior. Para avançar, no entanto, não é tão necessário para Amorosa ter os livros holísticos de Elba Ramalho, o telefone da Amelinha ou o autógrafo da Marinês. É mais importante ter uma alpercata - não para teimar em ser chamada para o Grande Encontro, mas para pisar com força no pé do responsável pelos erros de seu repertório. Até lá, entretanto, a Amorosa dessa ‘Aldeia’, embora não seja jeca, também não é jóia: é só ‘marromeno’.

10 setembro 2008

Igualdade, fraternidade, mediocridade



A obra: “Vento Cais”, de Doca Furtado. Obra foi gravada em Maceió e contou com Zé Barros na guitarra, Ronaldo no bandolim, Xameguinho na sanfona e recebeu direção e arranjos do maestro Muskito. Não há data de gravação.

A crítica:

Nota: 5,21

Que coisa linda é a irmandade entre os homens. Que manifestação maravilhosa é o respeito mútuo. Que espetáculo é a bondade. Purpurinas para o pivete que larga a bola para ajudar a velhinha a atravessar a rua. Serpentinas para o motorista que arranca o pára-choque do carro da frente e fornece seu telefone verdadeiro ao prejudicado. Palmas para o servidor público que, de fato, serve. Então vamos todos dar as mãos, telefonar para o Lionel Ritchie, encomendá-lo uma nova ‘We Are The World’ e, de quebra, filmar um clipe repleto de verde, passarinhos, quatis, borboletas, ovelhas, muita gente batendo palmas e tudo o mais que lembre paz, confraternização e convivência. Só que o leitor pertinaz, já desconfiado dessa melação, do ambiente de catequese e desse capítulo do Augusto Cury que parece não terminar, solta um bocejo e diz: sim, e daí? O que toda essa pataquada tem a ver com o disco ‘Vento e Cais’ de Doca Furtado? Simples. Nessa obra, Doca Furtado é o pivete, é o motorista, é o servidor público, é o cara que liga para o Lionel Ritchie. Doca Furtado ‘é o mundo’.

É interessante o exercício de paranóia necessário para vislumbrar ‘Vento e Cais’ como uma obra-prima da conivência de um autor diante dos que contribuem para sua obra. Mas após várias audições, torna-se muito difícil concluir outra coisa. Isso porque a impressão que fica é a de que o compositor, após esquentar a cabeça dias a fio na tentativa de construir um trabalho pertinente, simplesmente resolveu ceder – o verbo é esse – suas criações para uma meia dúzia de arruaceiros. O resultado: canções razoáveis executadas pela banda de apoio com preguiça e sem o mínimo esforço intelectual. Pela capacidade de dar de sua própria carne aos açougueiros, Doca Furtado é sério candidato a Madre Teresa dos instrumentistas preguiçosos e ao prêmio Nobel de condescendência.

É claro que nenhum desses epítetos é digno de orgulho. Bondade e criação artística só caminham na mesma trilha, e com muitas ressalvas, em obras de cunho beneficente. Zilhares de obras geniais ou ao menos fundamentais foram gravadas como resultado de exercícios imensurados de arrogância, prepotência, canibalismo, orgia, atentado à vida, luxúria, com muita gente feia falando coisa feia e tendo crises homéricas de grandeza e onipotência. Para muitos compositores, ser vitimado com um pitaco em um arranjo era pior do que levar um tiro, e a insistência alheia nessa petulância já justificaria um homicídio. Mas quem é que dá a mínima? Roupa suja se lava no estúdio. O autor que corte a si e aos outros que o auxiliam, flagele a si e aos outros que o auxiliam, mas ponha na praça o seu grito mais alto de dor.

Em ‘Vento e Cais’, Doca Furtado não fez a menor questão de apontar o dedo na cara de alguns bagunceiros. Ao contrário disso, pagou um rodízio de sorvete para todos e ofereceu sua bola novinha para a pelada. Mas o autor não ficou apenas assistindo: Furtado também cometeu seus equívocos e contribuiu para que uma obra com consistente matéria-prima se tornasse, no final, mais um trabalho pálido e pouco expressivo. A pior coisa em ‘Tu És’ poderia ser o péssimo e artificial timbre de cordas no preâmbulo, que lembra entradas baratas de casamento. Mas não é. O que de fato estraga tudo é a disparidade entre os arranjos ágeis e a performance sonolenta do cantor, tão pra baixo que parece que irá bocejar a qualquer momento. A banda errou na tonalidade? O intérprete trabalhou dopado? Duas canções diferentes foram somadas por engano? Não interessa mais. O que interessa é que o que deveria ser passaporte de entrada para o disco, é quase uma nota de despejo.

Já em ‘A lenda da sexta-feira treze’, a culpa pelo contraste entre voz e arranjos muda de lado. Considerados apenas voz e violão, trata-se de canção bem pensada e com interessantes costuras entre versos repetidos com acréscimos e harmonia. Mas eis que de repente entra a bateria. E o negócio é ‘de repente’ mesmo, pois toda a atmosfera anterior a ela permanece intacta. É como se o baterista quisesse apenas sacanear, algo que faz com que a canção seja muito mais longa do que sugerem seus três minutos e quarenta. E as péssimas idéias executadas através de baquetas prosseguem sem pudor ao longo do repertório. ‘Bocaina’ poderia ter sido salva se gravada apenas com um violão somado a um ou dois instrumentos complementares. Mas o que será isso batendo por trás dos dedilhados? Uma impressora? Um liquidificador? Um ventilador? Uma pedra no telhado? Não, é a bateria e seu bate-estaca sem-graça e cansativo que nada acrescenta e torna dispensável o esforço de transformar tudo em algo dançante e ‘pra cima’. O mesmo se dá na repetitiva “Estrela Incandescente”, estilhaçada por um arranjo criminoso de percussão. Aqui, o que deveria ser uma caixa tem o som brusco de alguém esmurrando uma porta desesperadamente.

Pelo menos ‘Luamar’ e ‘Maria Flor’, acertos indiscutíveis, conseguiram se impor e passar incólumes ao festival de escorregões. Na primeira, a riqueza harmônica se faz muito mais importante do que a persistência no barulho. Já a segunda é a prova do que acontece quando Furtado cultiva a egolatria. Completamente acústica, nua e centrada no violão, ‘Maria Flor’ aparece mais que qualquer outra faixa e é, de longe, a mais inspirada do disco.

Mas ainda há ‘Vento Cais’, faixa que, embora apresente um louvável cuidado com a linha vocal e um surpreendente solo jazzístico de teclado, permanece tempo demais sobre seus únicos dois acordes. Já ‘Os quatro cantos da pêga’ não é bem a canção mais abominável já feita. Trata-se de forró simpático e maduro. Mas o tema do teclado deveria ser lacrado em recipiente fechado e arremessado com força ao quinto canto da pêga. Em ‘Amor Roxo’, por sua vez, o equívoco foi timbrístico. A confusão causada pela cortina de sanfonas deixou a canção apenas indecisa entre a sofisticação harmônica do tango ou a irreverência do forró. É claro que a solução é jogada no colo do ouvinte, que tem três minutos para escolher entre o fio verde e o azul. Na dúvida, o melhor é jogar longe esse pacote.

Marcado pela lambança e pelo pouco interesse dos músicos em contribuir de fato, ‘Vento e Cais’ é a eterna festa de aniversário de Doca Furtado: todos se divertem, todos brincam, todos deitam e rolam, mas é justamente o protagonista quem vai ter de limpar a sujeira. Por isso almejar o Nobel da Paz, diante de uma situação dessas, é coisa de brocha: quando os bons modos e a preocupação com os amiguinhos não resultam em mais do que a mediocridade, é necessário, em nome da excelência, dar porrada. Muita porrada.

09 agosto 2008

Servido cru



A obra: ‘Luzes’, de Luís Fontineli, sem data de gravação registrada. Colaboraram Valdo França nos teclados e programações, Flor no baixo, Álvaro Alexandre nas guitarras e Rômulo Filho na bateria.


A Nota: 5,88

A crítica:



Imposto de renda uma ova. Se há algo que realmente dói até os ossos pelo dispêndio e prejuízo, esse algo é a pressa. No desespero de se levar a mulher grávida para o hospital, atropela-se uma outra. No frisson de ter de enviar uma carta atrasada, erra-se o endereço. No frenesi de se atender logo um cliente, negligencia-se o tratamento e cria-se mais um cidadão movido a impropérios e desprezo por atendentes. Momento Rubem Alves: a pressa é a tentativa irracional de se corrigir um erro que não faz mais do que gerar outros. É muito difícil que um ser humano adulto como Luis Fontineli não esteja minimamente a par dessas considerações. Mas é particularmente curioso como ‘Luzes’ representa a absoluta desobediência a todas elas, funcionando como um robusto libelo contra o equilíbrio e a consistência. Se em alguns casos pressa e perfeição são inimigas, neste trabalho elas sequer se conhecem.

Agora é preciso calma. Porque estabelecer ‘Luzes’ como ofensa ou absoluto exercício de perda de tempo é de um exagero apocalíptico. Ao contrário disso, a obra possui lampejos de expressividade capazes de fazer todos se unirem em torno de uma única inquietação: como seria o trabalho se o padrão das boas idéias fosse, de fato, obedecido com mais regularidade. Nunca se saberá a resposta. Em vez disso, está mais do que explícita a justificativa para a brutal queda livre estética que caracteriza o disco do primeiro ao último segundo: o frisson ofegante de produzir um número suficiente de faixas para justificar a gravação. Provável saldo da apreciação de algo assim: uma audiência movida a impropérios.

É claro que não existem nem nunca existirão regras estanques para o tempo necessário de criação das obras artísticas. O alemão J. S. Bach, por exemplo, fazia cantatas antes do cochilo do almoço, missas na hora do lanche e paixões com pelo menos três pivetes de sua prole empilhados na cabeça. O austríaco W. A. Mozart compunha sonatas e sinfonias entre o desarme de algum espartilho e o belisco de algum seio. E Jimmy Hendrix fez muito mais em três anos do que muitos jamais fizeram em 30 e jamais farão em mais 30. Mas no caso específico deste ‘Luzes’, a necessidade de maior burilamento em boa parte das faixas ou até mesmo do frio descarte de várias delas evidencia que o serialismo frenético não é a praia de Fontineli. Por isso é melhor dedicar caymmescos 20 anos em uma faixa que, só pela preocupação da concepção, merece audição à parte, do que desperdiçar 20 minutos querendo alcançar qualquer resultado.

‘Sedução’, a faixa de abertura, não parece ter levado 20 anos para ser feita. Mas se foi concebida em 20 minutos, é imperativo que o autor reproduza com rigor cada centímetro das condições de criação da canção se quiser se consolidar. Tudo isso porque é nessa peça que Fontinelli prova ser, sobretudo, compositor capaz. Apesar da letra passável e da estranha categorização do termo que a intitula como um adjetivo, ‘Sedução’ é a soma inteligente entre tensão harmônica e obscuridade melódica com a agilidade juvenil da ritmia eletrônica. E a performance de Fontineli, ainda que não seja insuperável, é acima da média. Eis o tipo de faixa que pipocaria fácil FMs afora, mas, ao mesmo tempo, sobreviveria a elas.

Logo depois tem-se ‘Luzes’, outro acerto inconteste do compositor. A levada funkeada e a ousada malha harmônica sofisticam a base pop, sublinhada por fraseados de convincente aroma jazzístico. Fontineli consegue ainda a proeza de investir em duas estruturas com força de refrão e se dar bem em ambas. As duas primeiras faixas se constituem, assim, em um preâmbulo assustadoramente promissor.

Mas logo se verá que era exatamente nesse ponto que ‘Luzes’ deveria acabar e ser lançado como um single com 100% de aproveitamento. Isso porque as demais faixas da obra não são mais do que uma vertiginosa descida às zonas abissais da falta de inspiração e da superficialidade. As boas idéias escondidas aqui ou ali provam que Fontinelli ao menos sabe o que está fazendo. Mas ainda assim são apenas idéias-escondidas-aqui-ou-ali. E a sensação de que o disco poderia ter sido bem-sucedido assoma brutalmente quando se está à sombra das duas canções de abertura.

A zona de transição entre a área fértil e a estéril do trabalho é representada por ‘Nova Manhã’. Não é necessariamente a canção mais irritante desde o século 13, e pode até gozar do epíteto de ‘melhor entre as medíocres’. Mas é inferior e mais ingênua que suas antecedentes. O tecladista, que até vinha bem, saca um timbre de trance tão barulhento para cimentar os estribilhos que parece desesperado por atenção. É como se, no meio de um recital de violino, entrasse um solo de cacatua. A gula timbrística, porém, é corrigida na própria faixa, tanto pelo solo eficiente do próprio teclado quanto pelas econômicas intervenções de guitarra no final.

Já ‘Ficou Claro’ é um desperdício sem tamanho de bons arranjos e performances. É tão linear e sem grandes atrativos que parece durar, na verdade, uns 30 minutos. Mas quando alguém quebra um prato na cozinha e a sonolência é interrompida, percebe-se que nem três minutos se passaram e o desejo de livrar-se da canção se converte em necessidade. Só que não há muita melhora no destino seguinte. Pálida, clichê e pouco inspirada, ‘Tarde Demais’ é uma incursão tão desajeitada pelo reggae que confirma que a vontade de ser eclético e plural não tem nada a ver com a capacidade de sê-lo.

A mesma coisa já não pode ser dita da romântica ‘Só’, que, dentro da sugestão ‘soul setentista de baile’, consegue ser superior a coisas como Jota Quest e a esse sujeito que anda por aí usando o nome de Roberto Carlos. O problema é que qualquer um consegue ser melhor do que Jota Quest ou do que o cover de luxo de Roberto Carlos. E ‘Só’ está a anos-luz do que Fontineli poderia fazer se tivesse mais paciência e lançasse a verdadeira continuação do consistente intróito. Porque quando a agonia de gravar fala mais alto, tem-se retalhos como a esquecível ‘Viajante’, pop genérico cuja única sacada de relevância é o inusitado final; a constrangedora ‘Preciso de Você’, garapa tecnológica que mais parece a versão remix de algum arrocha; e a absolutamente dispensável e desprezível ‘Sonho Azul’ – pelo menos se a intenção de Fontineli era ser levado a sério. Para os comediantes de plantão, porém, a faixa não demoraria muito para ser imortalizada com um sem número de paródias em cima de sua irritante infantilidade.

O desespero de ter logo um trabalho próprio brilhando na estante fez com que Fontineli entrasse na enciclopédia dos autores, mas não como um verbete realmente digno de nota. Na troca da ponderação e da maturação pela agonia de encerrar o trabalho de qualquer jeito, o autor apressadinho não apenas comeu cru como serviu ao público um prato mal-passado. Agora, é hora dos outros correrem também. Mas pro banheiro.

19 julho 2008

A MORTE DA GRAÇA


A obra:


‘Etc e tal’, da Psicodélicos e Psicóticos, gravado em 2006. Banda é Vina Torto nos vocais, Dedeu Costa nas guitarras, Edu no baixo, Adson nos teclados e CH na bateria.

Nota: 1,61


Vanguarda artística é um saco. Por isso combina tão bem com freqüentadores afetados de vernissage. Por isso combina tão bem com bebuns declamando Rimbaud em eventos alternativos. Por isso combina tão bem com guerrilheiros de mercadinho agendando abraços em árvores e declamações de Rimbaud em eventos alternativos. E ao contrário do que sempre é ensinado por aí, o vanguardismo não se caracteriza somente pela dismorfia desbravadora do que está sendo experimentado. Essa visão só se aplica às microscópicas exceções dos gênios. Na ululância da maioria, vanguarda é tudo aquilo que é feito quando o sujeito já desistiu de tentar ser bom e, em uma insistência doentia de se expressar, escancara toda sua nulidade e incompetência. Atenção então para o grande diferencial estilístico que a Psicodélicos e Psicóticos sugere neste ‘Etc e tal’: a banda não consegue sequer ser vanguarda. Mesmo assim, é um saco. E escancara toda a sua nulidade e incompetência.

Quando se escuta uma obra como essa com bom-humor suficiente para apresentação de programas infantis, é possível se importar minimamente em vislumbrar sua ‘proposta’: o flerte com a escatologia, o deboche, o non-sense e a esquizofrenia de projetos relativamente bem-sucedidos em transgressão como Zumbi do Mato, Rogério Skylab, Walter Franco e o mendicante Daminhão Experiença. Só que o chorume viscoso do Zumbi do Mato tem sua graça; Rogério Skylab, hoje pop star, quase acabou com a MPB e segue com uma heróica mão na cordinha para mandá-la à fossa a qualquer momento; Walter Franco, apesar de não merecer muito mais que o frio dos sebos, teve suas duas ou três boas idéias. Por isso é preciso muito boa vontade para reconhecer neste ‘Etc e tal’ algum elemento ativo das referências acima. Se todos os projetos citados representam a estetização da bagunça e do fracasso, ‘Etc e tal’ é a própria bagunça e o próprio fracasso.

É claro que, para quem investe em escatologia, deboche, non-sense e esquizofrenia, ser repreendido é uma vitória. O fedor foi detectado, o nojo foi sentido, o escarro foi visto, e toda a indigestão proposta foi assimilada sob a forma de um previsível desprezo. Mas, como se pôde constatar, essa pretensa anti-arte também é previsível em sua finalidade. E ainda que estar entre os expurgos de análises reacionárias seja uma conquista para os engraçadinhos ‘contestadores das normas’, banda alguma se suporta taxada como ruim em valores absolutos: ela precisa ser relevante em algum lugar, em algum nicho. E é justamente dentro do nicho do deboche e da anti-beleza que se conclui algo definitivo acerca de ‘Etc e tal’: trata-se de uma obra nula dentro de um universo já pouco relevante. Isso sim é ser ruim em valores absolutos.

Pelo menos a decisão de situar ‘Trilha da mãe senhora’ como faixa de abertura – após um minúsculo prólogo – revela alguma sensibilidade. Isso porque é nesta canção que estão relacionados todos os elementos que põem a obra na semi-final do Torneio Internacional de Teste de Tolerância. Há a mal-sucedida tentativa de emular o cruzamento entre punk e rock cinquentista dos ‘idiots’ do Green Day; a letra vazia que gravita em torno de um pretenso e desinteressante hermetismo; a ausência de humor, nunca obtido pelas irritantes e teatralizadas distorções vocais do cantor. Além da graça, a coerência também não foi convidada a comparecer: o teclado, propositalmente infantil, implora pela comédia, corre atrás de uma piada, grita pela irreverência, mas se limita à tragédia de ser, apenas, algo isoladamente ridículo em meio à palidez dos demais instrumentos.

Rir de ‘Foguete do Rei Tritão’, então, é um verdadeiro desafio. A tentativa de jazz que embasa a canção deve ter feito Bill Evans e Miles Davis voltarem imediatamente aos barbitúricos nos ‘inferninhos’ do infernão ou do além. O flerte com o pop rock no refrão não consegue chegar sequer ao dedão do pé das piores aberturas de programa infantil já ‘pensadas’. E a linha vocal simplesmente dói no peito. Claro que não como algo emocionalmente dolente, mas como uma bronquite. Porém, nem tudo está perdido: ‘Foguete do Rei Tritão’ pode servir a todos como exemplo do que acontece quando se ignora a existência de um aparelho de ultimíssima geração denominado ‘metrônomo’. Nessa faixa, a bateria simplesmente parece ter sido gravada por um sonâmbulo.

A também porre ‘Um quarto’ até traz algum esforço harmônico, mas não tão significativo a ponto de se destacar e ultrapassar as limitações do trabalho. E, mais uma vez, a performance sem carisma e marcada pela doidice pentelha e sem graça do vocalista queima tudo a ponto de que, já aqui, seu silenciamento sumário seja clamado desesperadamente. Alguns arranjos também não ajudam: o teclado permanece com uma estranha retidão timbrística e tonal, como se alguém houvesse esquecido um livro em cima dele. Apenas o solo de guitarra feito às pressas interrompe a tempestade de más idéias e fura esse saco plástico amarrado firmemente na cabeça do ouvinte.

Já ‘Darling’ é valsa de ar circense feita em cima de clichês de dramalhões bregas. Um ponto de partida como esse originaria, nas mãos de quem realmente domina a complicadíssima arte de fazer graça, oito mil trezentas e vinte e seis troças e palhaçadas. Nas mãos da Psicodélicos e Psicóticos, porém, ‘Darling’ é somente outro dramalhão brega. Já a introdução da concretóide ‘Métrica Marrom’, mesmo insípida em sua lisergia zappiana, consegue ser mais interessante que o modorrento resto da faixa.

Risinho no canto da boca, e mesmo assim com auxílio de alguma substância estimulante, só para o tema de seriados infantis ‘O Navegador’ e para a convincente ‘Big Smurf’, ainda que a letra insista mais num dadaísmo chato do que na irreverência. A faixa-título, por sua vez, carrega o incrível mérito de ser esquecida já durante sua execução. A experiência é repetida na interminável ‘Psicodélica e Psicótica’, que possui introdução desavergonhadamente igual à da sua anterior. E o entrosamento entre teclado e bateria no meio da canção está para os comerciais de metrônomo como a apresentadora Angélica está para os de camisinha.

É por tamanha enxurrada de equívocos e absoluta falta de traquejo para espirituosidades que este trabalho está fadado a nunca sobreviver a uma primeira audição. Mas se a defesa dos avançadinhos é a relativização, a Psicodélicos e Psicóticos pode insistir um pouco mais na crença de que inventou um outro estilo: aquele em que, para ser bom, é preciso ser, na verdade, péssimo. E em valores absolutos.

19 junho 2008

PIOLHO-DE-COBRA



A obra:

‘Serpente’ de Antônio Rogério,
disco gravado em 95. Participaram Leonardo nos teclados, Pedrinho do Recife na bateria e Charles no baixo. Chico Queiroga fez participação especial.

A crítica

Nota: 3,94

O mato está alto demais. O sujeito não quer saber, e se enfia na selva a abrir clareiras com o próprio corpo. Só que, lá pelas tantas, alguma coisa agarra em seu tornozelo e resolve subir pelo buraco da calça. A vítima se apavora. A princípio, pelo tato, é impossível distinguir bem seu tamanho. Nem mesmo quando a excursão da criatura corpo acima tem escalas em áreas, digamos, restritas. A vítima ri. Mas sabe-se que a coisa serpeia. Zigue-zagueia. Ora vacila, ora ensaia um arranque. A vítima se irrita. A besta ameaça se enrolar e se dedicar ao domínio, mas nunca o faz. Mas quando finalmente assoma na altura do pescoço, parece preparar-se para o bote. Tarde demais: a vítima está dormindo.

A esdrúxula metáfora acima só tem a serventia de adiar o que poderia ter sido dito em uma única frase: ‘Serpente’ dá sono. Ou: é chato. Ou: não empolga. Ou: é ruim. Mas inventar outras formas de dizê-lo é mais divertido. E é exercício bem mais grandioso do que escutar o disco até o final. Ao mesmo tempo, é imperativo admitir que a obra não é um monólito completamente previsível e imediatamente dispensável. Há pepitas cravejadas aqui ou ali. O baixo quilate, porém, as posiciona como pertinentes apenas no universo do próprio trabalho. Por isso o nome científico de ‘Serpente’ é ‘fracassus steticus’. O que não corresponde em absolutamente nada à magnificência e fascínio dos ofídios peçonhentos, mas à baixeza da minhoca, da lagarta, da lombriga. E mesmo nos momentos mais razoáveis, a tal serpente de Antônio Rogério não passa, na verdade, de um piolho-de-cobra.

É claro que a culpa não é do sistema, muito menos da Lei de Incentivo à Cultura. É da insistência do compositor em apelar para a face mais estereotipada da estilística brejeira, tudo no afã de alcançar mais rápido dolência e comoção. Mas ainda que Rogério tenha sido ligeiramente mais bem-sucedido que os não-mencionáveis roceiros de city-tour, apenas atingiu aquela dor e aquela comoção em seus extremos avessos: em ‘Serpente’, é doloroso encontrar algo válido e é comovente encerrar sua execução onde quer que seja.

É verdade que a já clássica faixa-título não irá para o inferno. Mas não é necessariamente ‘como se fosse um ímã puxando em sua direção’. ‘Serpente’ é apenas mais uma peça ciganóide e melancólica sobre a malícia feminina; uma moita de urtiga no mesmo bosque em que Sá e Guarabyra têm um jacarandá. Mas há elementos na canção que tornam crível sua sobrevivência ao tempo. O caráter melancólico e moroso da melodia encontra na letra algo lamentosa uma consistente saída. E o refrão - ‘essa serpente mata, marca, mata a Serpente, e quer destruir-me’ - de fato comporta-se como ponto alto, principalmente por culpa dos arranjos. Mas não convém dar muita asa a essa cobra: ‘Serpente’ não vai muito longe da pequena moita em que Antônio Rogério a criou.

Mesmo assim, percebe-se que foi justamente a canção-mor que subiu à cabeça do autor, resoluto em torná-la molde industrial de pelo menos mais duas faixas. Em ‘Dia e Noite’ a ritmia é a mesma, a cadência harmônica é a mesma, o dedilhado é quase o mesmo. E o constrangimento não pesou em Rogério nem mesmo para mudar o tom: igual. E são elementos que, mesmo não sendo clonagem desavergonhada, mancham as variações: ‘Dia e noite’ é o rabo da cobra querendo ser a cabeça. Já a paridade genética entre a faixa-título e sua segunda gêmea é ainda mais explícita: ‘Noite’ é simplesmente aquela em versão xote. Só. As diferenças aqui ou ali nunca a livrarão desta constatação fundamental.

É enganoso afirmar que ‘Riacho’ não traz os clichês tão orgulhosamente sacados por Rogério no anterior trio de siamesas. Mas, em homenagem ao bom senso, o autor mostra que sabe fazer algo mais do que se repetir fordisticamente. A peça em questão, mais tradicional, é bem construída e se posiciona como versão família dos forrós sobre afeições não correspondidas e promessas vingativas de auto-recuperação. O problema é lembrar dela algum tempo depois: superficial e com a palidez do que parece ser feito em megatons por aí, ‘Riacho’ leva-se na própria correnteza e desaparece sem conquistar vaga no repertório de ninguém.

Relevância também não passa de um sonho distante para a pretensiosa ‘Asa de um Sonho’. Trata-se daquele tipo de canção feita a granel afora sobre êxodo rural mal-sucedido e tragédia na volta. Quem ainda agüenta algo assim provavelmente passou algumas décadas congelado ou só recentemente recuperou a audição. Não há nada de inventivo, nada de expressivo, a velhíssima cadência rogeriana ‘acorde maior com relativa menor’ empurra todas as outras possibilidades para aparecer de novo e os arranjos de teclado simplesmente merecem frase à parte: se o autor pretendia cercar a canção de atmosfera brejeira e ingênua que a letra parece exigir, deve remunerar em dobro seu tecladista e seus estridentes timbres de brinquedo para mega-apresentações de associação de moradores.

Se a conversa é sobre pretensão, falemos de ‘Aracaju Menina’. Pop sofisticado, a faixa almeja ser ágil, movimentada, acessível. E de fato consegue: é rápida no ataque à paciência, gira com pressa em torno de um refrão prejudicial e torna mais fácil a qualquer um o acesso ao botão ‘pare’ no aparelho de som. Já sua vizinha ‘Mãe Terra’, reggae amenizado, é mais bem elaborada. Ainda que conte com uma letra curiosamente despreocupada com o duplo ou triplo sentido de tudo – ‘eu como toda sua filha dos pés à cabeça’ -, e que não a ajuda a ser lembrada da forma desejada.

A até bem-intencionada ‘Luz do sol’, que fecha o trabalho, veio pronta para o consumo em uma bandeja. Mas do IML. Já no início, a faixa é assassinada com uma estaca de madeira pelo horrível timbre de piano, que não se contenta em atrapalhar as razoáveis linhas vocais e volta no meio da canção sozinho. Pelo menos o final a capella que se esvai aos poucos ganha um picolé como uma das pouquíssimas boas idéias do trabalho, prêmio também compartilhado pela competente mas mal arranjada ‘Disseram’.

Com toda essa mansidão e sonolência, ninguém precisa de bota ou soro anti-ofídico. Isso porque aquilo se mexendo na moita não é cobra. É Antônio Rogério agachado, procurando alguma coisa que realmente entorpeça ou seduza o público. Enquanto ele está ocupado, a tal ‘serpente’ proposta segue reles minhoquinha, sem ‘matar’ nem ‘marcar’, mas com uma capacidade impressionante de destruir-nos - a paciência.

03 junho 2008

MINHA TERRA É DE NINGUÉM



A obra:

‘Minha terra é Sergipe’, de Antônio Carlos Du Aracaju, sem data de gravação registrada. No baixo, contribuíram Toninho e Mongol. Na bateria, Neném e Pedrinho do Recife. No acordeão, Miguel e Pinto do Acordeon.

A crítica:

Nota: 4,03

A estranhíssima heterogeneidade de estilos, o número astronômico de faixas – 17 – e o título apenas genérico seriam mais do que suficientes para estabelecer este trabalho como uma coletânea. Nesse caso, Antônio Carlos Du Aracaju não seria réu, mas vítima: coleções invariavelmente não fazem mais do que trucidar a unidade estética de um autor para empilhar hits acéfalos e peças de presença apenas numérica. Mas o nome do culpado figura já na capa. O que significa que, para desespero de todos, ‘Minha terra é Sergipe’ não é compilação de coisa alguma. E que se leve realmente a sério esse ‘coisa alguma’: a obra não tem pé, nem cabeça, nem vértebras. É um corpo com os órgãos internos remexidos após uma má-sucedida autópsia.

É assim que se tem gospel seguido de frevo elétrico, seguido de temas bufos de circo, seguido de MPB de caminhoneiros, seguido do predominante forró. Não é possível identificar na bagunça do compositor pretensão que vá além de uma trilha sonora para feiras e quermesses. Só que ninguém presta atenção em trilhas de feiras e quermesses. Ninguém sai de casa interessado em ouvir trilhas de feiras e quermesses. Ninguém volta pra casa cantarolando trilhas de feiras e quermesses. Quando se conclui isso, fica mais fácil arrematar o papel de uma obra como essa em sua totalidade: ser imediatamente esquecida.

A constatação acima é mais grave do que se pensa. Isso porque seria menos catastrófico se Antônio Carlos Du Aracaju houvesse concentrado sua anemia criativa em um único estilo e lançado às praças uma obra ao menos coerentemente ruim. Muito longe disso, porém, ‘Minha Terra é Sergipe’ é um exercício não-planejado de indecisão e caos. É um amontoado de qualquer coisa. O que já fornece a deixa para a contradição-mor que emperra qualquer esforço de considerá-lo inventivo: mesmo propondo variedade e sinalizando irrestrição estilística, o disco consegue a proeza de ser apático.

Mas apesar da pressa e gula intrínsecas à quantidade histérica de peças, ‘Minha Terra é Sergipe’ não foi feita para apreciadores afobados. Se fosse, as três primeiras faixas da obra logo a situariam como mais um ensaio da hoje apenas cômica MPB de beira de estrada. Isso porque o empenho do compositor em seguir os rastros de Antônio Marcos, Fernando Mendes ou Paulo Sérgio é assustador. ‘Mãe, por favor, abra a porta’ é arrastada, chorosa e repleta de declamações expiatórias de boteco, exatamente como rezam os ditames de qualquer tenor de lanchonete desejoso por marcas de batom no colarinho.

Já ‘Arca de Noé’ é tão clichê em sua construção harmônico-melódica que pode ter seu fim previsto em três segundos de execução. Mas a letra, em particular, é digna de nota. Versos como “lá vêm Gorbachev martelos propagandear”, “no olhar um incerto amanhã, o inferno e o Armageddon” apontam muito menos para as aflições políticas do autor do que para sua edificante atitude de musicar panfletos sobre a inevitável aproximação de Marte ou o fim próximo do Sol.


Não saciado em flagelar o bom senso alheio, Antônio Carlos decide maltratar Luiz Gonzaga. Para conseguir isso, reveste ‘Acácia Amarela’ de arranjos superficiais e pretensamente sinfônicos, não conseguindo mais do que diluí-la em lamento barato. Para alívio de muitos, é aqui onde se encerra o flerte do cantor com os caminhoneiros e espeluncas de rodovia.


Mas em vez de tirar o pé do buraco e passar a caminhar em solo seguro, o autor desce um barranco. Dentre inúmeras outras alternativas dentro do próprio disco, é justamente a doentia ‘Meu Papagaio’ a escolhida para introduzir a fase pós-Moacyr Franco da obra. Pelo menos quem não aceitar o desafio de agüentá-la até o fim se deparará mais rápido com a faixa seguinte, a inspirada ‘Dá-lhe Forrozeiro’. Inquieta e maliciosa, a canção segue os trilhos de alguns dos forrós melodicamente bem resolvidos de um Nando Cordel ou Jorge de Altinho.


E há mais alguns acertos. ‘Forró de Arrepiar’, mesmo algo precária, é rica. Já ‘Luiz Gonzaga não morreu’ é, de fato, uma compensação à ofensa anterior ao velho Lula. Não fosse a letra forçosamente trabalhista, seria candidata a clássico, título já usufruído pela obscura ‘Areia Branca é mais forró’, hino do morto e sepultado São João areia-branquense. Os acordes menores e as preparações tensas da canção chegam a resvalar na melancolia. E é justamente isso o que a torna interessante.


Mas o que sobra fora essas centelhas de bom gosto é, definitivamente, breu. É bem verdade que poderia ter sido pior: a quantidade de faixas dispensáveis da obra é suficiente para preencher mais dois trabalhos, o que significaria mais sofrimento. Mesmo assim, é muito difícil perdoar a presença da estridente ‘Cara e Coroa’, abertura para circos de lona furada; da sonolenta ‘Pai Nosso do Vaqueiro’, mais uma péssima tentativa de esconder a nulidade atrás de uma oração; da esquizofrênica ‘Lavou tá boa’, canção de letra misógina que insiste em cruzar Kraftwerk com Genival Lacerda. Sem falar na dezena de xotes e cavalgadas genéricas que qualquer um já ouviu sem oferecer grande atenção, preferencialmente por estar com o nariz empenhado em algum cangote.

A insistência de Antônio Carlos Du Aracaju em fazer conviver propostas tão díspares também pende à obediência de um princípio há muito risível: o de agradar a todos. Mas o autor esqueceu que agir desse jeito é apostar. Assim como é possível agradar a israelenses e palestinos e ainda arrebanhar um terceiro nicho de admiradores, é possível irritá-los na mesma proporção e ganhar de brinde o nojo de terceiros. No caso desse ‘Minha Terra é Sergipe’, Antônio Carlos Du Aracaju apostou pra quebrar a banca e perdeu. Agora, nem a mãe quer abrir a porta.

26 maio 2008

Caindo do Poleiro



A obra: ‘In Cantoria’, de Sena. Gravada em 99, obra traz Pedro Mendonça na percussão, Nilton no Baixo, Genivaldo Lins no violoncelo e Josemar no violino.

A crítica

Nota: 3,67

Oh, os passarinhos cantadores do mato. Oh, a beleza de seus pequenos fraseados primitivos. Quando o recital começa, a sucuri cospe o bezerro; o preá estanca a proliferação; a lagartixa esquece a mosca. Tudo se dedica apenas à pausa contemplativa da pequena orquestra alada. E lá está um belo galho de cajueiro, onde pousa, solene, um alegre pardal. Ao seu lado, faz-lhe coro o curió, o bem-te-vi e o sabiá. A rolinha e a corujinha resolvem aparecer também. E logo embaixo, à sombra do pau-viveiro, soma-se Sena e sua viola. Harmonia, melodia, muito verde e paz entre homens e animais. Mas de repente um som rascante de baleadeira trespassa a overdose de alegria: é a paciência alheia. E depois de todos os bichinhos terem tombado ao chão, um urubu pousa agourento no braço da viola do cantador: é o senso de ridículo.

Levar a sério uma obra como ‘In Cantoria’ não é tarefa para amadores. É preciso estar piamente entregue à rasteirice e religiosamente dedicado ao que há de mais simplório, raso e sem graça nas propostas artísticas. A obra, portanto, é destinada àqueles que correm atrás do arco-íris antes de seu sumiço e aguardam ansiosamente a ressurreição de Walt Disney no terceiro dia. É um disco de ninar. Se fosse essa a proposta real de Sena, porém, teríamos então um trabalho de extrema eficiência: lá pela terceira ou quarta faixa, os sentidos já teimam em não responder mais. Só que não há nada apontando para essa intenção. Ao contrário, há a indicação de que a obra é fruto de intensa pesquisa debruçada sobre o regionalismo. E um par de fotos estranhas no encarte.

Em uma dessas fotos estranhas, Sena aparece abraçado com o cantador Vital Farias. Em outra, assoma entre os violeiros Xangai e Elomar. São típicas fotos de fã, em que o olhar deslumbrado do fanático contrasta com o ar vazio e enfadado da personalidade assediada. Vital Farias, por exemplo, parece estar sendo fotografado para a carteira de motorista. Mas o significativo nessas presenças é a identificação do que Sena toma como referência para si. E a constatação de que o mestre de Taperoá e os outros dois menestréis são os heróis do autor azeda ainda mais as conclusões acerca do trabalho: apesar da orientação qualificada, não é possível identificar praticamente nada do sertanismo erudito e vigoroso do trio acima na garapa que Sena quer fazer o público tomar.

Já seria ruim se a obra possuísse uma única canção como ‘Canto dos Pássaros’, xarope, opaca e com rusticidade de parque temático. Mas Sena, insaciável, a achou tão genial que decidiu reprisá-la, e sob outra alcunha: ‘Vida’. Ainda insatisfeito, o autor lança candidatura ao Grammy de redundância e enfia mais um clone da primeira faixa no repertório: ‘Gaivotas’. Não é necessário nenhum grande exercício de sensibilidade para notar as recorrências: ainda que em tons diferentes, as introduções são exatamente iguais, e as linhas vocais, além de similares, se iniciam precisamente no mesmo intervalo tonal. Tamanha repetição só seria relevável, e com muita disposição, se ‘In Cantoria’ fosse uma ópera.

Mas a insipidez do disco também viceja na variedade. Suportar peças como ‘Terra’, ‘Morar’ e ‘Beijos de Fantasma’ sem esquecê-las imediatamente é tarefa para prodígios da memorização. Na primeira, algumas harmonias acenam para o bom-gosto, mas não salvam a faixa de ser sufocada pelos clichês. Já a seguinte, extremamente arrastada, é tão maçante que raspa nos já esgotados sertanejos goianos de roça. A última, por sua vez, deve ter sido gravada de favor: ‘Beijos de Fantasma’ é primária demais para figurar no cardápio de Sena, razoável violeiro.

A familiaridade do autor com o instrumento de cordas dobradas está clara na rural ‘Canção de violeiro’, que, acompanhada da rica ‘Juriti, Zabelê’ e da belamente arranjada ‘Diferente Luar’ – essa sim uma fagulha da influência dos mestres que Sena exibiu - , compõe as exceções de qualidade da obra.

Mas a insistência do compositor em ser irrelevante é muito mais forte do que todas as boas intenções juntas. Por isso a apenas comum ‘SOS Nordeste’, em vez de encerrar o trabalho, não passa de preâmbulo para algo ainda pior. Sentindo-se na obrigação de fechar seu pequeno dever prático de regionalismo com algo universal, Sena lança mão da já amaldiçoável ‘Meu Papagaio’. Impossível algo assim dar certo. E não deu: a peça, intrinsecamente piegas, fica pior ainda quando refém dos arranjos circenses e da interpretação de feirante rouco de Sena.

É importante acrescentar que o regionalismo sem sustância do violeiro não é impertinente a ponto de posicioná-lo como um vaqueiro de boutique. Mas é mais notável ainda como Sena, munido do crachá de pesquisador, desperdiça a riqueza dos ingredientes das cantorias para propor pastiche. É como usar um peixe para pescar uma minhoca. Mesmo assim, não há dúvidas de que a apreciação de ‘In Cantoria’ corresponde a uma experiência rústica. Só que em vez de se estar dentro de um viveiro, se está, na verdade, dentro de uma arapuca.

21 maio 2008

O SOBREVIVENTE



A obra: Janeiros’, de Lula Ribeiro. Gravado em 1993 no Rio, trabalho contou com Luís Meira na guitarra, Zé Luís Maia no baixo, César Conti na bateria e Marcos Farias nos teclados. O baixista Arthur Maia fez participação especial.

A crítica:

Nota: 8,58

O fracasso ou o êxito público de uma obra nunca interessou e nunca interessará a nenhuma apreciação estritamente estética. Mas é particularmente curioso que um disco como ‘Janeiros’ jamais tenha figurado como pauta perene da audiência debatedora, nem mesmo como objeto de implacável achincalhe. Tudo isso porque o trabalho pode ser apontado, facilmente, como um epílogo bem-sucedido da subestimada MPB oitentista. O que faz com que a comparação a seguir, mesmo esdrúxula, tenha lá sua coerência: no vestibular para a música popular pertinente e suportável, Lula Ribeiro entregou a prova por último, mas conseguiu alta pontuação e se garantiu para a próxima fase.

Mas essa tal próxima fase, naturalmente, é aquela em que a MPB se enterra em uma miséria criativa sem precedentes – com exceções extremamente isoladas – e cede terreno a uma proliferação inacreditável de trabalhos molóides, subtropicalistas, repletos de regravações que ninguém pediu e pretensões tão meramente industriais que cheiram à extorsão. Ou seja, é a fase atual. Isso significa que ‘Janeiros’ é, sobretudo, um sobrevivente. E foi em plena recessão que Lula Ribeiro decidiu tornar público o rebento de seu relacionamento com os anos 80, o que amplia sua relevância. Para alívio de todos, o filhote nasceu com saúde: dos arranjos às composições, a obra está dentro dos limites de bom gosto e expressividade do que há de mais pertinente da década em questão.

Entretanto, é importante estabelecer que estar dentro dos limites significa também pouca ousadia. Em ‘Janeiros’, a preocupação de Ribeiro não é de forma alguma propor algo mais ou se posicionar como precursor do que quer que seja. A obra é resultado de ingredientes pré-estabelecidos, mas que exigem desenvoltura e compreensão para que não se convertam em tentativas presunçosas ou em réplicas desavergonhadas. É bem verdade que, em um primeiro momento, é fácil categorizar Ribeiro como um Caetano Veloso resfriado, o que ameaça o autor de ser situado como mais uma cópia desnutrida de seu modelo. Mas nem mesmo nos momentos mais ‘Podres Poderes’ de seu trabalho Lula Ribeiro chega a resvalar na baixeza de uma versão mal-sucedida. Em vez disso, o que se vê é um aluno aplicado de seus mestres, que demonstra conhecer os ingredientes e, principalmente, como misturá-los.

E isso já é provado em ‘No Brega’, a faixa de abertura. Festiva, funkeada e ao mesmo tempo sofisticada, a canção possui força suficiente para reclamar para si o posto de introdução. A letra de Chico Pires já revela aqui certa pendência para estranhas frases a esmo e pílulas de um pretenso concretismo, mas não há como questionar o entrosamento entre frases e melodia, ambas bem costuradas pela irreverência. Já ‘Trilha do Luar’ está fadada para sempre a lembrar de imediato ‘Amor nas estrelas’, interpretada por Nara Leão. Mas as semelhanças se limitam à introdução: a canção logo se diferencia e se desenvolve como uma rumba inspirada harmonicamente, ainda que não conte com uma interpretação exemplar de seu autor – o caetaneado Ribeiro simplesmente não consegue alcançar certas notas graves de sua própria criação. Pelo menos o breve encerramento em modulações jazzísticas faria um Toninho Horta lacrimejar de orgulho.

Mas de repente Ribeiro acha necessário prestar reverência a alguém. E o faz a Lupicínio Rodrigues, com a cansativa – pasmem – ‘Nunca’. Depois da trajetória agradável e consistente proporcionada pelas duas primeiras faixas, essa decisão do autor se revela um bueiro aberto sem aviso prévio. Em quatro minutos de queda livre, a faixa consegue ser ainda mais antiquada que a versão gravada por Zizi Possi uns dez anos antes. É, portanto, apenas mais uma releitura de boteco. Mas é muito difícil acreditar que Ribeiro, arranjador consciente e compositor capaz, tenha pensado sozinho em fazer algo tão ruim.

Talvez por isso ‘Flerte Fatal’ esteja imediatamente depois. Como que pedindo desculpas pelo tropeço anterior, o compositor saca logo uma das melhores canções do disco. É bossa nova clássica, mas, ao contrário das demais, suportável. De jovialidade praiana, a melodia da canção encaixa-se com elegância na harmonia liberta de clichês. E há ainda uma referência em plena letra à possibilidade de Marina Lima cantá-la, o que se mostra ao mesmo tempo apropriado e inconveniente: de fato a canção cai como uma luva para o oitentismo supra-harmonizado da carioca; mas a auto-referência na terceira pessoa é um exercício de humildade e bom-senso apropriado apenas para sujeitos como Pelé, Maradona e para certo molusco do Planalto Central.

A atmosfera de banquinho e violão é retomada na faixa-título. E mais uma vez o autor demonstra domínio, esquivando-se da contagiosa preguiça bossanovista e não deixando dúvidas de que tem em casa a discografia completa de seu mestre tropicalista. Talvez seja por isso que a canção implore assustadoramente pela interpretação de uma Gal Costa. Ainda que possua uma letra que qualquer um pode fazer, ‘Janeiros’ é rica o suficiente para figurar no repertório de intérpretes com grande extensão vocal.

Já em ‘Romper o Mar Imoto’ as referências estão em carne viva. Bêbado ou acometido por amnésia, Caetano Veloso atribuiria a faixa a si mesmo. E a precisão dos arranjos sintetizados de Arthur Maia deixa a canção com o mesmo pedigree das principais peças populares cunhadas nos anos 80. A ágil ‘Arte e Manhas’, por sua vez, é tão bem compactada e estruturada que poderia se converter facilmente em um hit. Mas ‘Alfazema’, cuja introdução parece tirada do disco ‘Os Borges’, de 1980, é mais ingênua e menos inspirada. Mesmo assim não atrapalha, e até de certa forma prepara o terreno para a excelente ‘Dengo’, a faixa derradeira. Mais distante de suas principais influências, Ribeiro fecha o disco com um pé-de-serra sofisticado, irreverente e candidato a clássico.

Aliás, não seria exagero algum situar o próprio ‘Janeiros’ como candidato a clássico dos últimos suspiros do cancioneiro popular daqueles anos 80. É verdade que há um quê de algo em maturação. E a equivocada ‘Nunca’ estará ‘sempre’ lá. Mas Lula Ribeiro conseguiu conceber um trabalho consistente o suficiente para relegar os defeitos ao limbo das exceções. E, além disso, figura entre os que podem bradar que, quando o negócio é crise – como a de certa época que ainda não passou –, é muito melhor chegar atrasado.

12 maio 2008

Apelando pra valer


A obra:
‘Fazendo Valer’, de ALapada, obra lançada em 2007. Banda é formada por Nanah Escalabre nos vocais, Júlio Fonseca na bateria, Jamesson Santana no baixo e Evandro Schiruder nas guitarras

A crítica:

Nota: 5,13

O pop rock nacional sempre foi ruim de doer. Engordou algumas contas bancárias por aí, mas nunca se estabeleceu como um nicho musical pertinente. Nos seus primórdios, não passava de um pastiche subnutrido e ababacado das toneladas de referências estrangeiras: era a versão ki-suco dos sumos euro-americanos. Quando deixou a casa dos pais e foi pra rua, o estilo gerou um punhado de criadores que precisou tomar vitaminas de MPB para amenizar o raquitismo estético. E de uns anos pra cá não passa de mais um elemento de reforço às pesquisas que acusam o baixo nível de escolaridade da população, tamanha a série de atrocidades lógicas e homicídios lingüísticos involuntários cometidos nas letras.

O poço, portanto, é fundo demais. E Alapada parece ter pago para entrar em um balde e descer até lá. Porque ‘Fazendo Valer’ é indubitavelmente um filho legítimo daquelas profundezas. É um ki-suco sabor Sudeste. Mas depois de situar a obra como insípida e inodora, torna-se obrigatório certo exercício de relativização, que é: nas zonas escuras do cancioneiro nacional, e somente lá, ‘Fazendo Valer’ é relevante. Um posicionamento mais exaltado até estabeleceria o trabalho como candidato à obra-prima da ‘forgetable music’. Mas ainda que esse título seja tão importante quanto saber qual a melhor faixa do pior disco do Legião Urbana, revela um atributo crucial d’Alapada; uma qualificação que separa quem aparece e quem é engolido pelo anonimato no mercado pop: a capacidade para entender fórmulas e compor rigorosamente dentro de seus limites.

Não é nada muito complexo. Na verdade, trata-se de uma equação de primeiro grau. E o resultado, ainda que não se limite necessariamente a zero, nunca atinge grandes valores. Mas a submissão de ‘Fazendo Valer’ aos trâmites formulaicos do rock de gueto, ou ‘streetero’, é de uma aplicação exemplar. O enquadramento mais explícito encontra-se nas letras, que não se contentam em ser moralóides, adolescentes e de inteligência econômica, exatamente como reza a cartilha das maiores referências nacionais do rock-pipoca: elas também carregam a aflição rasteira dos moleques das megalópoles, esmagados diante da muralha de prédios. É verdade que a questão é mais estilística que antropológica – ninguém precisa se limitar a cantar para a aldeia-mãe. Só que isso não safa Alapada de ter gravado o disco mais paulista já feito por aqui.

Por isso ‘De Boa’ é tão Charlie Brown Jr que mais parece uma versão. Está tudo lá: intróito com bumbo, chimbal e guitarra abafada; a levada ska; a referência ao próprio nome da banda na letra; a linguagem de gueto dos ‘manos’; as frases corridas que remetem ao percussionismo verbal do hip hop; o refrão convocador; e a necessidade de transmitir experiência em dificuldades e, sobretudo, dureza. A fórmula está tão rigorosamente obedecida e aplicada que chega a ser constrangedor. E trata-se, em valores absolutos, de faixa vazia e artificial. Mesmo assim, é um bem-sucedido rock-chiclete. Mas tal como qualquer substância pegajosa, só pode permanecer aderente por mais tempo que o necessário por acidente. Como chiclete no cabelo.

‘Deixando saudade’ também não vai além do que as FMs pedem. A letra, vislumbrada de longe, parece sobre um relacionamento. De perto, porém, não tem muito sentido, funcionando apenas como mau pretexto para a linha vocal. Mas já é necessário ter de reconhecer que, embora Alapada tenha ido buscar em São Paulo as ‘fôrmas’ de suas canções, não é formada, em absoluto, por músicos incompetentes. A bateria é correta; o baixo não atrapalha; as guitarras são executadas com a precisão de quem a domina em estilos muito superiores. E o vocalista cumpre bem seu papel. A bagagem técnica do quarteto, porém, só lhes fornece ferramentas para imitar qualquer coisa.

Como em ‘Andarilho’. Depois de mostrar esmero em macaquear a petulância quadrúpede dos Charlie Brown Jr, Alapada exibe aqui sua clonagem de Biquini Cavadão. A melodia e os arranjos soam tão característicos da banda carioca que poderiam chocá-los de decepção: a equação por trás do resultado foi desmascarada. Na acústica ‘Além dos Olhos’, a recorrência ao carioquês para untar as passagens entre frases é conveniente, apesar do segundo grau mal feito ter pesado na letra – ‘foi quando eu conseguir ajustar’ [sic]. Mas esse recurso apenas reforça o empenho de Alapada em somar ao que já é feito em despudorado descontrole por aí. É por isso que ninguém vai notar se a banda, por qualquer razão, resolver sumir do mapa.

Se todo o disco dependesse de faixas como ‘Drama de Controle’ e ‘Beijo de Judas’, porém, o desaparecimento da banda iria do pouco notável ao desejável. Na primeira, uma irritante economia harmônica se multiplica com a pobreza dos riffs e é decuplicada pelo refrão tapa-buraco. A conta dá mil: mil vezes esquecível. A segunda, por sua vez, já se denuncia no título ser um vértice de todo o moralismo barato de auto-ajuda que se configura na ‘mensagem positiva’ que a roqueirada pretende passar aos pivetes. Pelo menos a faixa desperta reação imediata: não são necessários mais do que 30 segundos para que ou sono ou irritação aflorem. Mas há um oásis: o interessante arranjo de guitarra no meio, que ofusca o sermão chinfrim que a sublinha. O mesmo se dá em ‘O Calibre’. Lá, o arranjo na zona intermediária consegue ser superior à canção inteira. Contudo, até que se chegue a esse ponto, toda sorte de reações torpes é despertada diante da faixa, profunda como uma folha de papel.

Mas quem liga. Em cada centímetro do encarte e em cada segundo das faixas, está claro que o objetivo de ‘Fazendo Valer’ nunca foi o de ser lembrado. Pelo menos pelo público: comercial até os liames da sem-vergonhice – os ‘s’ dos nomes dos integrantes são cifrões no encarte –, a obra está no ponto para receber sela e arreio das grandes gravadoras. Na verdade, mais que isso. Obediente a tudo, Alapada já está pronta para ser montada.

06 maio 2008

O homem que não estava lá



A Obra :

‘À Flor da Pele’, de João Moura. Gravado em 2007, o disco contou com Caribé nas guitarras, Júlio Carvalho no baixo e Petta nos sintetizadores, bateria e percussão.

A Nota: 4,36

A crítica:

É muito difícil chegar ao fim das 12 faixas dessa obra e, com uma inevitável e desesperada expressão de alívio, permitir que se escape a conclusão a seguir: esse disco é muito mais suculento para os músicos de estúdio do que para a crítica. Sim, porque nesse trabalho é revelada uma oportunidade ímpar de aparição para os laboriosos instrumentistas desfigurados pela imagem expansiva dos solistas. Para proporcionar isso, João Moura abre mão de ser o manda-chuva, lambe o teclado para justificar seu nome na capa e, por vezes, desaparece sumariamente. Diante de tamanho esforço para a autonegação, a impressão que fica é apenas uma: sem pulso para protagonista, o compositor faz apenas participação especial no próprio disco.

Mas há dois elementos que eliminam de uma vez por todas a possibilidade de conceber a abstinência como proposital: as fotos da capa* e do verso. Em ambas, Moura posa de pianista de hotel de luxo ao lado de um piano Steinway de auditório. Enquanto em uma delas sua mão desliza pelo instrumento indicando posse e domínio, na outra as mangas levantadas de seu blazer, a postura desleixada e o olhar distante sugerem segurança e jovialidade. É com o vislumbre dessas representações que se chega a uma afirmação já pouco confrontável – sim, trata-se de um declarado álbum solo – e a um questionamento insolúvel: onde foram parar, no disco, os atributos prometidos pelo pernóstico ambiente representado no invólucro.

Com certeza não se encontram na faixa de abertura. De ingenuidade melódica assustadora e construções harmônicas há muito superadas em todos os estilos existentes, ‘À flor da pele’ não consegue, sequer, ser uma boa peça de new age. Mas graças à sonoridade bem calculada dos arranjos, talvez sobreviva como mais um jingle nulo. Pelo menos a faixa seguinte, ‘Os seus olhos’, eleva um pouco o nível. Mesmo não sendo a canção mais original já feita, é inspirada a ponto de gerar alguns assobios involuntários, e, assim como o razoável reggae ‘Canção pela Paz’, é desempenhada de forma menos burocrática por Moura – algo que não se verá em nenhuma das outras faixas.

No início de ‘Brisa da Noite’, susto. Baixo repleto de fraseados, guitarra pretensamente iron-maideniana, melodia fácil: entrou-se no terreno movediço do forró eletrônico. Depois da entrada apoteótica – e que mandou às favas a asséptica imagem eruditóide da capa –, cresce a expectativa sobre qual será a solução do compositor para transformar uma referência tão tresloucada em algo pertinente. Mas logo se verá que não há solução alguma. Em vez disso, os problemas crescem, e sob a forma de melodias tão soporíferas e desempenho tão apático que exigem certo esforço para serem notados.

A entrada alienígena de ‘O Orvalho’, por sua vez, não se desenvolve a ponto de tornar-se empecilho, e não surgem dúvidas de que o piano é o centro de tudo. O problema é saber se o instrumento realmente deveria estar lá. Isso porque Moura sublinha os competentes arranjos com uma linha melódica tão maçante que consegue ser desnecessária. E a insegurança na execução dos fraseados remete a performances infantis de recital.

Em relação a sua infeliz antecedente, a faixa ‘Por Amor’ só apresenta um recurso a mais: a razoável intervenção de um solo de sintetizador do produtor Petta, medida que se perceberá em diversas faixas como compensação para as construções telegráficas de Moura. Mesmo assim, ‘Por Amor’ nunca irá além de ser mais uma peça para recepções de casamento. Ou ainda a trilha ideal para ocasiões em que qualquer coisa serve para abafar o barulho de várias pessoas mastigando ou de crianças pentelhando. Já a fastidiosa ‘Um Velho Sonho’, espécie de gêmea com Q.I. baixo da anterior, simplesmente não acrescenta em nada no repertório.

A anemia que perpassa a obra só é interrompida, não coincidentemente, pelas únicas peças que Moura não escreveu. A releitura da ‘inédita’ “Bachiana no. 5”, de Villa-Lobos, é ousada e alcança o bom gosto dos super-jingles eruditos de um Paul Mauriat. A também judiada ‘Concerto para uma só voz’, de Saint Preux - grafada ‘conserto’ no encarte - seria mais uma escolha arriscada. Mas a versão pé-de-serra pensada por Moura e sua trupe é aceitável, o que já é muito. E os instrumentistas conseguem protegê-la do piano preguiçoso que, volta e meia, insiste em dar pitaco.

O início malvado e ao mesmo tempo primário da versão para ‘O Lago dos Cisnes’, de Tchaikovsky, deve ter encorajado o compositor russo a dar no mínimo três boas piruetas de contrariedade em sua cova. Mas quando o guitarrista se impõe como solista, a peça cresce, até ousando tornar-se válida. Já ‘O Retorno’, composta por Petta, é daquelas faixas-bônus que superam o dito conteúdo oficial. E Moura parece nem ter sido convidado para gravá-la, tamanha a ausência de algo de seu em qualquer elemento lá atuante.

Graças a esse trabalho, o autor pode até não figurar entre os grandes virtuoses do instrumento que finge dominar. Mas é quando se mostra incapaz de se fazer notar no próprio disco que o compositor se revela uma mãe para quem tem mais a oferecer do que ele. De solidão, portanto, João Moura não sofrerá.

27 abril 2008

Beleza interior

A obra

‘Sangue D’alma’, do Cataluzes. Gravada no Rio em 2001, obra foi produzida por Ruy Quaresma. O chorista Paulo Moura fez participação especial.

A crítica

Nota: 8,07

Nas prateleiras de CD dos supermercados ou em qualquer outro lugar onde a identidade visual de um disco pese mais, ‘Sangue D’alma’ amargaria o frio da proscrição. A horrenda capa, um jogo tosco de texturas que desperta a impressão de digitalização visual forçada, é um carimbo de precariedade na obra. Mas talvez esse tenha sido o único elemento que escapou completamente ao controle do Cataluzes. Porque o conteúdo não possui, em absoluto, o mesmo tipo sanguíneo da dismorfa tentativa de figura que ilustra o trabalho. Lá dentro, ouvem-se exercícios consistentes de versatilidade, cuidado e propriedade no trato dos diversos estilos. O que significa que há muito mais colorido no repertório de ‘Sangue D’alma’ do que na folha designada a ser seu rosto e não há nenhuma conexão reconhecível quando ambas são emparelhadas.

No lado de dentro, a pluralidade faz com que Cláudio Miguel, Valdefrê, Tonho Amaral pareçam pouco interessados em estabelecer alguma unidade. Mas a fuga da centralidade se constitui no próprio estilo do Cataluzes: defini-los precisamente é tarefa ingrata. E se há um fio condutor em ‘Sangue D’alma’, ele é constituído pela voz-ícone de Claúdio Miguel, pelos arranjos precisos e por uma rusticidade que transita entre o brejeiro e o intelectual sem retalhos esquizofrênicos.

Mas há declínios. E eles estão na apatia e na artificialidade de algumas faixas, espasmos isolados de pouca inspiração e pressa. Não é tanto o caso da faixa de abertura, ‘Relógio Solar’. Mesmo previsível e sem impacto, a canção funciona na introdução. Pelo menos a dívida é sanada logo, pois a faixa seguinte, ‘Rosa Camponesa’, é de singeleza cativante. As harmonias abertas e os baixos invertidos remetem ao folclore mineiro – ainda que com menos complexidade que as releituras clubesquinenses.

A faixa-título, por sua vez, é um desdobramento sombrio da sua antecedente mais primaveril. ‘Sangue D’alma’, séria e escura, é tão bem lapidada que exala a beleza barroca. E é canção que facilmente figuraria na nata do repertório de grandes intérpretes femininas, pois pede leituras de timbres mais maternais – ainda que Cláudio Miguel, correto e seguro, não a tenha comprometido em nenhum aspecto.

Já em ‘Donde Estarás’ não há muita coisa levada a sério. Trata-se de salsa despretensiosa, simpática e introduzida por uma frase em espanhol que logo se verá ser a única de toda a letra – o que significa que não há preocupação alguma em fidelidade ou releitura, mas apenas na construção de um aroma superficial de tropicalidade. ‘Copo de blues’, entretanto, não é tão feliz, embora esteja longe de ser medíocre. O problema é apenas a letra, que transmite a impressão de ter sido concebida por um leigo pretensioso – ‘hoje vou tocar um blues / cheio de acordes-cruz’ – ainda que haja muito mais jazz do que qualquer outra coisa lá. É aquilo: ninguém esquece sua primeira vez. Mas o público não merece receber um VHS com o registro da ocasião.

‘Noz-moscada’ já é um exercício interessante de referências, mas dificilmente será mais do que isso. Samba de velha guarda, a faixa traz toda a irreverência revisionista dos Novos Baianos. É curiosa e brincalhona. Ao mesmo tempo, porém, é nada ousada, e por não somar muito ao que já foi feito, esquecível. Sua vizinha ‘Cana Caiana’, um choro, também é reverencial. Mas é bela o suficiente para se situar lado a lado com alguns clássicos do gênero. E os arranjos, cirurgicamente precisos, transmitem a qualquer um o bucolismo de um fim de tarde com rádio AM ao fundo.

Mas tudo isso não passa de preâmbulo para ‘Navio da Meia-noite’, a mais bela faixa do disco. A levada cheia de africanidade pontilha uma harmonia direta, mas sublinhada por uma melodia que resvala na genialidade. E a mistura dos fraseados de viola com batidas de terreiro não se comporta de forma forçosamente brejeira. ‘Como antigamente’, por sua vez, não chega tão longe, sobrevivendo apenas como um iê-iê-iê simpático, mas previsível.

O perfeccionismo que permeia grande parte das faixas faz falta em ‘Estrada do Passado’. Aqui, o público é agraciado com um nada sutil escorregão do tecladista – ou seria uma nota de inovadora sonoridade executada apenas uma vez na música inteira – logo no início. E Cláudio Miguel simplesmente canta como se tivesse sido levado à força para as gravações. Pena, pois a faixa não é desnecessária e tem lá alguns bons atributos.

Mas a recuperação é imediata. Primeiro com o elegante e genuíno fado ‘Porto de Veias’. Depois ‘Curral das Sombras’, flamenco para procissão – isso mesmo – que, ainda que não seja marcante, não atrapalha. E, por fim, a explicitamente africana ‘Bambaquerê’, um simples e festivo encerramento.

A morte visual de uma obra dessa categoria – vide capa – atesta a absoluta surdez de quem quer que a tenha representado num painel. Mas que o frenesi varejista dos mercadinhos não faça ninguém relegar ‘Sangue D’alma’ ao fundo de qualquer prateleira. Mesmo sem proporcionar experiência soberba, o Cataluzes oferece originalidade e bucolismo – atributos raros – em doses generosas. E se soma à minúscula galeria dos que merecem ser ouvidos mais de uma vez.