13 março 2010

EMPACADO NO BURRICO


A obra: ‘Sergival e as Coisas do Caçuá’, de Sergival. Lançada em 2008, obra contou com Sergival na percussão, efeitos e flauta transversal, Quartinha na zabumba, Renato Piau e Muskito nos violões, Waltinho no acordeon. Dominguinhos, Alcymar Monteiro e João Sapateiro fizeram participações especiais.

Indicado para:
quem vai a forrós muito mais preocupado com cangotes alheios do que com o que está saindo das caixas de som. Ou seja: trata-se de uma obra universal. Apesar disso:

A Nota: 4,42

A crítica:

Se para alguns compositores um disco é um ponto de partida, o primeiro passo, o princípio de uma relação a ser estabelecida com o público e com a herança cultural, para outros, por sua vez, a obra é um ponto de chegada. É a finalização de um esforço pessoal. Uma realização individual. Algo que se encerra em si mesmo como resultado e não reivindica conseqüências ou grandes reações – a não ser de congratulação. Sergival pode dizer o que quiser sobre as intenções desse seu ‘Coisas do Caçuá’. Mas não há dúvidas de que essa obra resultou em algo muito mais importante para ele mesmo e seu círculo de amiguinhos do que para o público em geral. E o disco vai ainda mais além: ‘Coisas do Caçuá’ é ponto de chegada não apenas pelo seu potencial de ser visto como mero resultado de um processo sôfrego de concepção, mas também porque, esteticamente, não pretende ir a lugar nenhum.

Os bundões do coitadismo provinciano virão correndo com suas foices, mas a verdade é que esse disco só tem lugar de importância na estante de quem não tem a menor idéia do que seja forró ou ignora completamente seus baluartes. ‘Coisas do Caçuá’ é tão ingênuo que dói na vesícula. Demora a descer pela goela a idéia de que um sujeito que parte de tantas referências tenha lançado na praça um repertório tão pálido. Mas o equívoco não se situa na escolha pelo rigoroso tradicionalismo rítmico, ou no resgate ou no conservadorismo – até porque não é lá muito adequado exigir grandes inovações de compositores de forró. O problema é que Sergival não fez nada além de lamber muito timidamente suas influências, parindo canções primárias, econômicas e sublinhadas pela miséria harmônica. Como se não bastasse, tudo é marcado por uma performance vocal que oscila apenas entre o aturável e o sofrível.

O que não derruba completamente o trabalho é o carisma do protagonista, que ameniza o terrorismo do discurso ‘vamos-usar-cueca-feita-de-palma’ com genuína irreverência. Mas isso é apenas complementar. Ainda que não atrapalhe o rumo do mundo e até preste algum serviço ao reisado, ‘Coisas do Caçuá’ não passa de uma compilação de nacos de clichê sobre temas raquíticos dedicados à imobilidade estilística. E ao mesmo tempo em que é ponto de chegada de um laborioso processo de concepção, também é o de partida para um nada laborioso exercício de esquecimento.

MEXENDO RABINHOS

Não é necessário ir muito longe para entender o viés estético de tudo. Quando a faixa de abertura e também faixa-título se encerra, é impossível conter a desconfiança com o que será apresentado a seguir. Em ‘As Coisas do Caçuá’, nada se esforça para ser duradouro e convidativo. É a típica canção que pende para um lado só: enquanto a letra é um inventário de sertanices, um balaio de jequice, uma cesta de vime de nordestinidade, a estrutura harmônico-melódica insiste em repisar e remoer uma única estrutura sem preocupação alguma com evoluções posteriores. ‘As Coisas do Caçuá’, dessa forma, nunca passa de faixa feita apenas para remexer algumas bundinhas por aí, característica que transforma o uso de instrumentos harmônicos em algo supérfluo.

Já a seguinte, ‘Notícias do Nordeste’, traz um simpático cordel enfiado à base de soco em uma construção sem força alguma. É esse aspecto que revela a impressionante capacidade de Sergival de pisotear a trotes de jumento suas próprias idéias. Isso porque, já aqui, é permitido que o brilho irreverente da letra seja emporcalhado por progressões harmônicas que miram na obviedade, raspam na ingenuidade e acertam na chatice. Não há dúvida de que o Brasil melhoraria se ‘Notícias do Nordeste’ ficasse ali, quietinho, como um cordel.

Escancaradamente dedicado às gracinhas sertanejas, Sergival não deixa escapar a já clássica ‘Salada Tupiniquim’, de Ismar Barreto. Mas nem aí as coisas dão certo. E as razões são claras. Em primeiro lugar, tem-se o conservadorismo cerceante dos arranjos, que deixam a canção desnutrida e apenas comum. Em segundo lugar, não tem jeito de deixar passar a performance vocal aguada e meia-boca de Sergival, que parece ter entrado no estúdio após longuíssimo expediente e ter lido a letra de algum borrão qualquer, tal o mecanicismo do desempenho. Já na partícula ‘Deslumbramento’, o que seria apenas um espaçozinho diplomático para coleguinhas do protagonista como o poeta João Sapateiro e o violeiro Vem Vem do Nordeste se estabelece, surpreendentemente, como o momento mais intenso e espontâneo da primeira metade da obra.

PALANQUE

Não resta dúvida de que a incansável recorrência de Sergival ao folguedo e à galhofa é o que há de mais inteligente em seu trabalho. E ‘Desfile de jegues de Itabi’ é um exercício extremo desse direcionamento. Sobre uma base de xote que nunca sai do colo das intervenções de prosa que o próprio Luís Gonzaga fazia, a canção se desdobra em uma narrativa despretensiosa, que se afasta do erro catastroficamente comum de transformar tudo em um jingle de prefeitura ou em um chororô ababacado acerca da desvalorização de costumes. Na faixa, apenas o inusitado interessa. Mas é por não ter um único milímetro de melodia que ‘Desfile de Jegues de Itabi’ soa mais adequada aos palcos, onde uma interpretação teatralizada do desfile cívico pra jegaria ganharia mais sentido.

Em ‘Sementear’, por sua vez, uma análise minuciosamente técnica – ou detalhadamente calhorda – faria da grave escorregada de pós-produção lá pelo fim do minuto inicial uma justificativa suficiente para o seu fracasso. Mas a derrapada é apenas a mosca em cima do dejeto. E o dejeto é o teor extra-açucarado da peça, que jamais se esforça para ser mais do que uma versão insípida de peças de Dominguinhos ou Nando Cordel.

Já a engajadinha ‘Anagrama’ pode até disfarçar, correr, se esconder, mas não negar sua genética: é um jingle. É sim. Centrada na ferrenha oposição à transposição do Rio São Francisco, a peça é simplesmente um exercício explícito de ausência de sutileza e vestimenta poética. Muito mais do que prestar clareza a um público-alvo pouco instruído, a canção resvala no discurso fuleiro de palanque. E é tudo tão pouco autônomo, supérfluo melodicamente e vinculado a imagens que é impossível escutar a faixa sem visualizar um comercial.


Partamos então para a litorânea e levemente ingênua ‘Maramar’, que não é necessariamente a pior faixa já escrita. Mas a imagem que Sergival concebe da peça, devidamente detalhada no rodapé do encarte, é de fazer nascer um caroço purulento na testa de qualquer um. ‘Cena em câmera lenta de dois namorados correndo um pro outro’ e ‘abraço rodopiado’ são visões que não servem mais nem como piada. Observar que o próprio autor da canção a vê como trilha de comercial de absorvente é mandar à privada metade da experiência e rebaixá-la imediatamente a Hino Nacional da Obviedade – ou do absorvente.


ALARGANDO CONCEITOS


A cada pecinha que se passa, Sergival prova, sem muito escândalo, que não foi feito para se meter em vocais. Mas ouvi-lo se empenhar em imitar a pré-tonalidade de um Mingo Santana é algo que faria muita gente repensar seu papel na Terra. Na inominável e digna de multa ‘Carira’, o que poderia ser apenas ruim se empenha um pouco mais para ser péssimo.


Típica composição de Santana, a faixa é um remendo de lascas vocais com apêndices que flutuam a três centímetros de qualquer afinação, tudo jogado a esmo sobre uma base que não é mais do que uma introdução interminável de forró eletrônico. Insatisfeito com o ‘êxito’ desses elementos, Sergival decidiu convidar o autor da obra-prima para contribuir nos vocais. O resultado simplesmente dá um nó cego nos limites de apreciação estética: ‘Carira’ prova que, assim como não há limites para a criatividade, sua ausência absoluta também não admite fronteiras. Graças a esse belíssimo caráter transgressor, a noção ‘péssimo’ perde o posto como algo extremo: ‘Carira’ exige que se entre no terreno dos palavrões.

Já em ‘Mendigos’, o contraste entre uma harmonia que se abre sobre uma temática que sempre se fecha e o inventivo fio melódico constituem a mais bem construída faixa da obra. Para que a canção leve esse título, porém, é necessário o emparelhamento com a óbvia ‘Sempre Boiadeiro’, com o estudo simples e conservador de reisado ‘Canto de entrada’ e com o forró sem grandes soluções ‘Boi de reisado’. Já a festiva ‘Adeus, adeus’, mesmo algo burocrática, ganha lá uma medalhinha de mérito pelo seu simpático aroma junino.

Não interessa se esse disco é resultado de uma luta pessoal do protagonista com a dureza de produzir arte ou de achar um gibão sob medida. ‘Coisas do Caçuá’ é um disco diluído, besta e superficial demais para ser situado como algo significativo em qualquer nicho do repertório nordestino – excetuando-se, naturalmente, o esquecido reisado, vastamente citado lá. Mesmo carismático e convincente como matuto, Sergival não faz bom uso dos ingredientes que utiliza e não consegue tirar de dentro de seu caçuá algo melhor do que um pé-de-moleque mastigado, um beiju cuspido e um saco de tareco velho pisoteado. E quem achar tudo aquilo lá muito bonitinho só porque deu trabalho pra fazer, que abra a boquinha e dê a primeira mordida.