09 agosto 2008

Servido cru



A obra: ‘Luzes’, de Luís Fontineli, sem data de gravação registrada. Colaboraram Valdo França nos teclados e programações, Flor no baixo, Álvaro Alexandre nas guitarras e Rômulo Filho na bateria.


A Nota: 5,88

A crítica:



Imposto de renda uma ova. Se há algo que realmente dói até os ossos pelo dispêndio e prejuízo, esse algo é a pressa. No desespero de se levar a mulher grávida para o hospital, atropela-se uma outra. No frisson de ter de enviar uma carta atrasada, erra-se o endereço. No frenesi de se atender logo um cliente, negligencia-se o tratamento e cria-se mais um cidadão movido a impropérios e desprezo por atendentes. Momento Rubem Alves: a pressa é a tentativa irracional de se corrigir um erro que não faz mais do que gerar outros. É muito difícil que um ser humano adulto como Luis Fontineli não esteja minimamente a par dessas considerações. Mas é particularmente curioso como ‘Luzes’ representa a absoluta desobediência a todas elas, funcionando como um robusto libelo contra o equilíbrio e a consistência. Se em alguns casos pressa e perfeição são inimigas, neste trabalho elas sequer se conhecem.

Agora é preciso calma. Porque estabelecer ‘Luzes’ como ofensa ou absoluto exercício de perda de tempo é de um exagero apocalíptico. Ao contrário disso, a obra possui lampejos de expressividade capazes de fazer todos se unirem em torno de uma única inquietação: como seria o trabalho se o padrão das boas idéias fosse, de fato, obedecido com mais regularidade. Nunca se saberá a resposta. Em vez disso, está mais do que explícita a justificativa para a brutal queda livre estética que caracteriza o disco do primeiro ao último segundo: o frisson ofegante de produzir um número suficiente de faixas para justificar a gravação. Provável saldo da apreciação de algo assim: uma audiência movida a impropérios.

É claro que não existem nem nunca existirão regras estanques para o tempo necessário de criação das obras artísticas. O alemão J. S. Bach, por exemplo, fazia cantatas antes do cochilo do almoço, missas na hora do lanche e paixões com pelo menos três pivetes de sua prole empilhados na cabeça. O austríaco W. A. Mozart compunha sonatas e sinfonias entre o desarme de algum espartilho e o belisco de algum seio. E Jimmy Hendrix fez muito mais em três anos do que muitos jamais fizeram em 30 e jamais farão em mais 30. Mas no caso específico deste ‘Luzes’, a necessidade de maior burilamento em boa parte das faixas ou até mesmo do frio descarte de várias delas evidencia que o serialismo frenético não é a praia de Fontineli. Por isso é melhor dedicar caymmescos 20 anos em uma faixa que, só pela preocupação da concepção, merece audição à parte, do que desperdiçar 20 minutos querendo alcançar qualquer resultado.

‘Sedução’, a faixa de abertura, não parece ter levado 20 anos para ser feita. Mas se foi concebida em 20 minutos, é imperativo que o autor reproduza com rigor cada centímetro das condições de criação da canção se quiser se consolidar. Tudo isso porque é nessa peça que Fontinelli prova ser, sobretudo, compositor capaz. Apesar da letra passável e da estranha categorização do termo que a intitula como um adjetivo, ‘Sedução’ é a soma inteligente entre tensão harmônica e obscuridade melódica com a agilidade juvenil da ritmia eletrônica. E a performance de Fontineli, ainda que não seja insuperável, é acima da média. Eis o tipo de faixa que pipocaria fácil FMs afora, mas, ao mesmo tempo, sobreviveria a elas.

Logo depois tem-se ‘Luzes’, outro acerto inconteste do compositor. A levada funkeada e a ousada malha harmônica sofisticam a base pop, sublinhada por fraseados de convincente aroma jazzístico. Fontineli consegue ainda a proeza de investir em duas estruturas com força de refrão e se dar bem em ambas. As duas primeiras faixas se constituem, assim, em um preâmbulo assustadoramente promissor.

Mas logo se verá que era exatamente nesse ponto que ‘Luzes’ deveria acabar e ser lançado como um single com 100% de aproveitamento. Isso porque as demais faixas da obra não são mais do que uma vertiginosa descida às zonas abissais da falta de inspiração e da superficialidade. As boas idéias escondidas aqui ou ali provam que Fontinelli ao menos sabe o que está fazendo. Mas ainda assim são apenas idéias-escondidas-aqui-ou-ali. E a sensação de que o disco poderia ter sido bem-sucedido assoma brutalmente quando se está à sombra das duas canções de abertura.

A zona de transição entre a área fértil e a estéril do trabalho é representada por ‘Nova Manhã’. Não é necessariamente a canção mais irritante desde o século 13, e pode até gozar do epíteto de ‘melhor entre as medíocres’. Mas é inferior e mais ingênua que suas antecedentes. O tecladista, que até vinha bem, saca um timbre de trance tão barulhento para cimentar os estribilhos que parece desesperado por atenção. É como se, no meio de um recital de violino, entrasse um solo de cacatua. A gula timbrística, porém, é corrigida na própria faixa, tanto pelo solo eficiente do próprio teclado quanto pelas econômicas intervenções de guitarra no final.

Já ‘Ficou Claro’ é um desperdício sem tamanho de bons arranjos e performances. É tão linear e sem grandes atrativos que parece durar, na verdade, uns 30 minutos. Mas quando alguém quebra um prato na cozinha e a sonolência é interrompida, percebe-se que nem três minutos se passaram e o desejo de livrar-se da canção se converte em necessidade. Só que não há muita melhora no destino seguinte. Pálida, clichê e pouco inspirada, ‘Tarde Demais’ é uma incursão tão desajeitada pelo reggae que confirma que a vontade de ser eclético e plural não tem nada a ver com a capacidade de sê-lo.

A mesma coisa já não pode ser dita da romântica ‘Só’, que, dentro da sugestão ‘soul setentista de baile’, consegue ser superior a coisas como Jota Quest e a esse sujeito que anda por aí usando o nome de Roberto Carlos. O problema é que qualquer um consegue ser melhor do que Jota Quest ou do que o cover de luxo de Roberto Carlos. E ‘Só’ está a anos-luz do que Fontineli poderia fazer se tivesse mais paciência e lançasse a verdadeira continuação do consistente intróito. Porque quando a agonia de gravar fala mais alto, tem-se retalhos como a esquecível ‘Viajante’, pop genérico cuja única sacada de relevância é o inusitado final; a constrangedora ‘Preciso de Você’, garapa tecnológica que mais parece a versão remix de algum arrocha; e a absolutamente dispensável e desprezível ‘Sonho Azul’ – pelo menos se a intenção de Fontineli era ser levado a sério. Para os comediantes de plantão, porém, a faixa não demoraria muito para ser imortalizada com um sem número de paródias em cima de sua irritante infantilidade.

O desespero de ter logo um trabalho próprio brilhando na estante fez com que Fontineli entrasse na enciclopédia dos autores, mas não como um verbete realmente digno de nota. Na troca da ponderação e da maturação pela agonia de encerrar o trabalho de qualquer jeito, o autor apressadinho não apenas comeu cru como serviu ao público um prato mal-passado. Agora, é hora dos outros correrem também. Mas pro banheiro.