19 junho 2008

PIOLHO-DE-COBRA



A obra:

‘Serpente’ de Antônio Rogério,
disco gravado em 95. Participaram Leonardo nos teclados, Pedrinho do Recife na bateria e Charles no baixo. Chico Queiroga fez participação especial.

A crítica

Nota: 3,94

O mato está alto demais. O sujeito não quer saber, e se enfia na selva a abrir clareiras com o próprio corpo. Só que, lá pelas tantas, alguma coisa agarra em seu tornozelo e resolve subir pelo buraco da calça. A vítima se apavora. A princípio, pelo tato, é impossível distinguir bem seu tamanho. Nem mesmo quando a excursão da criatura corpo acima tem escalas em áreas, digamos, restritas. A vítima ri. Mas sabe-se que a coisa serpeia. Zigue-zagueia. Ora vacila, ora ensaia um arranque. A vítima se irrita. A besta ameaça se enrolar e se dedicar ao domínio, mas nunca o faz. Mas quando finalmente assoma na altura do pescoço, parece preparar-se para o bote. Tarde demais: a vítima está dormindo.

A esdrúxula metáfora acima só tem a serventia de adiar o que poderia ter sido dito em uma única frase: ‘Serpente’ dá sono. Ou: é chato. Ou: não empolga. Ou: é ruim. Mas inventar outras formas de dizê-lo é mais divertido. E é exercício bem mais grandioso do que escutar o disco até o final. Ao mesmo tempo, é imperativo admitir que a obra não é um monólito completamente previsível e imediatamente dispensável. Há pepitas cravejadas aqui ou ali. O baixo quilate, porém, as posiciona como pertinentes apenas no universo do próprio trabalho. Por isso o nome científico de ‘Serpente’ é ‘fracassus steticus’. O que não corresponde em absolutamente nada à magnificência e fascínio dos ofídios peçonhentos, mas à baixeza da minhoca, da lagarta, da lombriga. E mesmo nos momentos mais razoáveis, a tal serpente de Antônio Rogério não passa, na verdade, de um piolho-de-cobra.

É claro que a culpa não é do sistema, muito menos da Lei de Incentivo à Cultura. É da insistência do compositor em apelar para a face mais estereotipada da estilística brejeira, tudo no afã de alcançar mais rápido dolência e comoção. Mas ainda que Rogério tenha sido ligeiramente mais bem-sucedido que os não-mencionáveis roceiros de city-tour, apenas atingiu aquela dor e aquela comoção em seus extremos avessos: em ‘Serpente’, é doloroso encontrar algo válido e é comovente encerrar sua execução onde quer que seja.

É verdade que a já clássica faixa-título não irá para o inferno. Mas não é necessariamente ‘como se fosse um ímã puxando em sua direção’. ‘Serpente’ é apenas mais uma peça ciganóide e melancólica sobre a malícia feminina; uma moita de urtiga no mesmo bosque em que Sá e Guarabyra têm um jacarandá. Mas há elementos na canção que tornam crível sua sobrevivência ao tempo. O caráter melancólico e moroso da melodia encontra na letra algo lamentosa uma consistente saída. E o refrão - ‘essa serpente mata, marca, mata a Serpente, e quer destruir-me’ - de fato comporta-se como ponto alto, principalmente por culpa dos arranjos. Mas não convém dar muita asa a essa cobra: ‘Serpente’ não vai muito longe da pequena moita em que Antônio Rogério a criou.

Mesmo assim, percebe-se que foi justamente a canção-mor que subiu à cabeça do autor, resoluto em torná-la molde industrial de pelo menos mais duas faixas. Em ‘Dia e Noite’ a ritmia é a mesma, a cadência harmônica é a mesma, o dedilhado é quase o mesmo. E o constrangimento não pesou em Rogério nem mesmo para mudar o tom: igual. E são elementos que, mesmo não sendo clonagem desavergonhada, mancham as variações: ‘Dia e noite’ é o rabo da cobra querendo ser a cabeça. Já a paridade genética entre a faixa-título e sua segunda gêmea é ainda mais explícita: ‘Noite’ é simplesmente aquela em versão xote. Só. As diferenças aqui ou ali nunca a livrarão desta constatação fundamental.

É enganoso afirmar que ‘Riacho’ não traz os clichês tão orgulhosamente sacados por Rogério no anterior trio de siamesas. Mas, em homenagem ao bom senso, o autor mostra que sabe fazer algo mais do que se repetir fordisticamente. A peça em questão, mais tradicional, é bem construída e se posiciona como versão família dos forrós sobre afeições não correspondidas e promessas vingativas de auto-recuperação. O problema é lembrar dela algum tempo depois: superficial e com a palidez do que parece ser feito em megatons por aí, ‘Riacho’ leva-se na própria correnteza e desaparece sem conquistar vaga no repertório de ninguém.

Relevância também não passa de um sonho distante para a pretensiosa ‘Asa de um Sonho’. Trata-se daquele tipo de canção feita a granel afora sobre êxodo rural mal-sucedido e tragédia na volta. Quem ainda agüenta algo assim provavelmente passou algumas décadas congelado ou só recentemente recuperou a audição. Não há nada de inventivo, nada de expressivo, a velhíssima cadência rogeriana ‘acorde maior com relativa menor’ empurra todas as outras possibilidades para aparecer de novo e os arranjos de teclado simplesmente merecem frase à parte: se o autor pretendia cercar a canção de atmosfera brejeira e ingênua que a letra parece exigir, deve remunerar em dobro seu tecladista e seus estridentes timbres de brinquedo para mega-apresentações de associação de moradores.

Se a conversa é sobre pretensão, falemos de ‘Aracaju Menina’. Pop sofisticado, a faixa almeja ser ágil, movimentada, acessível. E de fato consegue: é rápida no ataque à paciência, gira com pressa em torno de um refrão prejudicial e torna mais fácil a qualquer um o acesso ao botão ‘pare’ no aparelho de som. Já sua vizinha ‘Mãe Terra’, reggae amenizado, é mais bem elaborada. Ainda que conte com uma letra curiosamente despreocupada com o duplo ou triplo sentido de tudo – ‘eu como toda sua filha dos pés à cabeça’ -, e que não a ajuda a ser lembrada da forma desejada.

A até bem-intencionada ‘Luz do sol’, que fecha o trabalho, veio pronta para o consumo em uma bandeja. Mas do IML. Já no início, a faixa é assassinada com uma estaca de madeira pelo horrível timbre de piano, que não se contenta em atrapalhar as razoáveis linhas vocais e volta no meio da canção sozinho. Pelo menos o final a capella que se esvai aos poucos ganha um picolé como uma das pouquíssimas boas idéias do trabalho, prêmio também compartilhado pela competente mas mal arranjada ‘Disseram’.

Com toda essa mansidão e sonolência, ninguém precisa de bota ou soro anti-ofídico. Isso porque aquilo se mexendo na moita não é cobra. É Antônio Rogério agachado, procurando alguma coisa que realmente entorpeça ou seduza o público. Enquanto ele está ocupado, a tal ‘serpente’ proposta segue reles minhoquinha, sem ‘matar’ nem ‘marcar’, mas com uma capacidade impressionante de destruir-nos - a paciência.

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