04 novembro 2008

Nem palafita, nem arranha-céu


A obra: 'Aldeia', de Amorosa. Lançado em 2002, disco contou com Tovinho nos teclados, Itu na bateria, Genaro no acordeon e Luciano Magno nas guitarras e violão.

A crítica

Nota: 6,92

Já faz algum tempo que a aleijada Música Popular Brasileira sinaliza não precisar mais da estética de uma Elba, de uma Amelinha, de uma Marinês, tamanho o desejo das intérpretes atuais de se converter em perdigotos de Marisa Monte. Tanto que foi necessário ser gravado o tal do ‘Grande Encontro’, projeto caça-níqueis que consistiu no revestimento de um repertório já em vias de desgaste por inúmeras referências além-Nordeste. O resultado deu certo. Mas ao mesmo tempo em que forneceu um pouco mais de oxigênio para o cancioneiro dos cânones comerciais nordestinos, o tal do encontrão esgotou praticamente todas as possibilidades do estilo: não há graça nenhuma em ouvir mais versões de coisas como ‘Táxi Lunar’, ‘Princípio do Prazer’ ou ‘Ai que Saudade d’ocê’ depois do que fizeram. Acabou. Morreu. Já era. Não se despediu adequadamente? Problema seu. Mas lá vem Amorosa a trotes domando sua ‘cavalaria’ composta por 11 jegues – ‘jegaria?’ –, cada um carregando ‘uma ruma’ de patuás e rendas em cestos de palha. “Não está meio tarde pra isso?”, alguém pergunta à condutora da carruagem. Resposta: “Nóis é jeca, mas é jóia”.

Só que ‘Aldeia’ não é jóia coisa nenhuma. Talvez tenha relevância insuperada dentro da longeva trajetória da intérprete, alçada à categoria de patrimônio máximo da cultura local com perigosa unanimidade. Mas quem gosta de carreira é biógrafo. Descascada até a última mitocôndria, a obra em si é apenas um curioso exercício de absoluta teimosia. Em plena era pós-Grande Encontro, Amorosa decidiu lançar candidatura à corte dos ‘pernaibanos’ que passaram um bom tempo no centro nacional das atenções. Não que teimar em ser mais do mesmo seja algo reprovável. Até porque fazer o contrário e tentar peitar a força da indústria, atitude geralmente vista como heróica e transgressora, não passa de outra forma de também querer ser notado e, por extensão, querer ser completamente absorvido por ela. Mas o risco que Amorosa correu foi o de passar somente por cantora recém-surgida em um duríssimo mercado pretendendo fazer reverência a Elba, a Amelinha, a Marinês, e sem a força do repertório do trio. É como se, ao invés de dizer ‘cheguei’ e bater o pé no salão com o solado duro da alpercata, a intérprete apenas caminhasse dentre botinas com os pés descalços.

Mas entre cabeçadas na parede e acertos pouco contestáveis no repertório, um atributo em particular sobreviveu ofegante, porém incólume: a extrema versatilidade da cantora – completa a ponto de conseguir doar sangue a canções feridas pela repetição e a multiplicar o valor absoluto de pequenas pérolas que andavam escondidas por aí. E ao mesmo tempo em que apresenta um padrão timbrístico facilmente reconhecível como afeito ao cancioneiro nordestino, Amorosa não parece arremedo, nem ensaio, nem imitação de absolutamente ninguém. Entretanto, o que bastou para garantir a sobrevivência de sua trajetória como cantora não foi suficiente para transformar ‘Aldeia’ em uma obra fundamental.

Está escrito na embalagem do chiclete: errar é humano. Mas deve ser imediatamente encaminhado ao Congresso algum projeto de lei que incrimine quem estraga canções logo nos seus primeiros dez segundos. A pena para o acusado: passar um mês preso em uma sala com um único alto-falante a reproduzir sem parar seu próprio erro. É claro que o tecladista Tovinho, o responsável, pode recorrer. Afinal, tambem é dele a sucessão de excelentes idéias que percorrem o trabalho. Mas não há explicação científica para o uso de um timbre espacial e futurista para abrir uma obra alicerçada na rusticidade e na regionalidade. Para alívio da população, que já sofre tanto, a aterrissagem dessa panela de pressão dura apenas os citados dez segundos. Depois disso, tudo começa a fazer mais sentido, e ‘Alto do Tempo’ se transforma em peça quase épica. Consciente disso, Amorosa talhou uma adequada interpretação empostada, com direito a erres escarrantes de uma Maria Bethânia.

Pra quebrar de vez o gelo, a intérprete lança mão da brincalhona ‘Salada Tupiniquim’, canção despretensiosa e mais concentrada na troça e no folguedo. Aqui, Amorosa inicia imediatamente o exercício de versatilidade e deixa a diva sertaneja da faixa anterior para trás. O sotaque exagerado e o timbre áspero são elementos conscientemente recorridos para teatralizar ou até mesmo ‘clemildizar’ a peça irreverente de Ismar Barreto sobre auto-afirmação da identidade. E o resultado, sustentado no assustador equilíbrio dos arranjos, é o melhor possível. Já ‘Nóis é Jeca mas é jóia’, outra peça com os dois pés na irreverência, é inferior e mais anêmica, mas conta com uma interpretação impagável da cantora e permite que se identifique o primeiro acerto do trabalho: a recorrência à graça para abordar a nordestinidade. O lado verborrágico, engajadóide e politicóide do assunto que fique com os acadêmicos de shopping center, rappers e chorões mendicantes de Secretaria de Cultura.

Mas nem tudo é cisterna nessa incursão sertão adentro. É preciso esforço, por exemplo, para estabelecer ‘Mel e Aveloz’ como exercício do viés romântico da cantora. Isso porque a primeira coisa que se percebe é que a faixa se trata, apenas, de uma versão mais pálida e burocrática da original. ‘Forró Ligeiro’, então, não possui um único atrativo que justifique sua presença no repertório. Não é canção simples. É pobre. E é absolutamente igual a zilhões de outros forrós que não precisam de letra para conseguir o mesmo e fundamental e único efeito: ser dançante. ‘Em todos nós’, por sua vez, é facilmente identificável como um filhote das fórmulas sombrias de Zé Ramalho. Mas essa constatação não ajuda em nada: a faixa é burocrática, pretensiosa, cansativa demais para seus parcos três minutos, e consegue extrair da intérprete uma performance forçada. Um soco em todos nós.

Já ‘Ciúme D’ocê’, composição da cantora, é a prova inconteste de que o negócio de Amorosa é mesmo cantar. Não porque a faixa é uma demonstração rascante de genialidade interpretativa, mas sim porque é um acidente de trem enquanto criação. E essa coisa de declamar poema no meio, como foi feito, funciona muito raramente. É claro que ‘Ciúme D’ocê’ se soma ao lado majoritário dessa estatística. Ao menos a rica ‘Tempero Moreno’, a muito bem escolhida ‘Toada’, a arriscada pelo desgaste mas bem-sucedida ‘Sabiá’ e o excelente encerramento ‘Serigy’ equilibram a obra e a mantém em um nível razoável de relevância, ainda que não a posicionem como clássico de nada.

‘Aldeia’, por fim, não é bem um conjunto habitacional, só que também não chega a ser uma invasão de palafitas. Mas é mais confortante pensar nessa obra como um primeiro passo para algo maior. Para avançar, no entanto, não é tão necessário para Amorosa ter os livros holísticos de Elba Ramalho, o telefone da Amelinha ou o autógrafo da Marinês. É mais importante ter uma alpercata - não para teimar em ser chamada para o Grande Encontro, mas para pisar com força no pé do responsável pelos erros de seu repertório. Até lá, entretanto, a Amorosa dessa ‘Aldeia’, embora não seja jeca, também não é jóia: é só ‘marromeno’.

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