27 agosto 2006

Libelo; Homenagem; Evangelho.


A OBRA

‘’Canta-SE’’, de Chiko Queiroga e Antônio Rogério. Gravado em 2002, a obra consiste em releituras de canções dos principais compositores sergipanos ---- a dupla incluída. Cláudio Miguel, Joésia Ramos, Sergival e Paulo Lobo foram alguns dos homenageados.

A CRÍTICA
Nota: 9,25

Acreditemos no homem. Frente às circunstâncias que assomam nos televisores e nos coletivos repletos, isto pode parecer demagógico; mas, diante de um contexto algo menor mas não menos horrendo que a atualidade, o da chamada ‘’música sergipana’’, o surgimento do artefato aqui resenhado validará aquela primeiras sílabas do parágrafo. Não parece tão incoerente recorrer a citações bíblicas diante da situação; mas seria ridículo. Portanto, torna-se necessário que o autor do texto recobre o siso para dar cabo da complexa tarefa que é resenhar esse disco.

E tudo isso só por que um disco de uma dupla local se revela acima da média. Convenhamos que a palavra ‘’só’’ é infame; por que ‘’Canta-se’’ não é apenas mais um bom trabalho, mas um símbolo do que o exercício do bom senso ---- este atributo tão raro e esquecido---- é capaz.

Pretendendo ser coletânea, a obra vai além, e transmuta-se numa cartilha de bom comportamento musical. E isso não é pouco, considerando o repertório arriscado, que salta de canções-ícone judiadas (Ruas de Ará, Meu papagaio) a letras de profundidade adolescente (Pecado de Pássaro, O Comodista). E um reggae ---- tão descontextualizado da seqüência que tornou-se forçoso citá-lo em frase separada.

Atentos às peculiaridades de cada canção, Queiroga e Rogério as envolvem em sensível atmosfera acústica. Com primorosos trabalhos vocais, teclados sutis e uma percussão muito mais musical que simplesmente rústica, a dupla subtrai as canções escolhidas do limbo tropicalóide que as amadoriza. Em suma, elevam o nível de um repertório não muito promissor.

‘’Não muito’’, pois há canções intrinsecamente consistentes. É o caso da excelente ‘’Séculou’’, de Tom e Irmão, e seus ares de Tom Zé; da sensível ‘’Maramar’’, do nem sempre pertinente Sergival; de ‘’Camará’’, de Patrícia Polayne, canção de vigorosa dramaticidade, bem explorada pelo violões da dupla.

Mas a faixa-mor dessa obra é a derradeira. A beleza de ‘’Laranjeiras’’ é higienizadora; sua simples execução bastaria para que uma meia dúzia de maus músicos com algo melhor para fazer refletissem sobre suas capacidades. Mas não pelo virtuosismo técnico ou proezas anatômicas; o êxito da canção situa-se na simplicidade, na agregação de elementos que tornam possível ir do regional ao épico sem saltos esquizofrênicos. Em linguagem chã, é música bem feita, concebida por quem possui domínio lírico e senso de atmosfera musical. Não seria exagero supor que, algum dia, a cidade referida no título adotasse a canção ---- composta por Rogério e Queiroga ---- como hino.

Terminada a audição de ‘’Cantas-Se’’, uma dúvida persiste: seria o disco uma homenagem aos ‘’artistas da terra’’ ou um libelo contra a mediocridade? No fim, não importa; o fato é que Chiko Queiroga e Antônio Rogério demonstraram ser maiores que os homenageados, sem arroubos de auto-indulgência, e imbuídos principalmente de sensibilidade. Senhores, se mesmo em uma era criativamente inócua é possível o surgimento de tais obras, tenhamos então esperança; algo ainda os redimirá.

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