15 abril 2008

Perdido na criação


A obra


‘Som das Araras’, de Mingo Santana. Gravado em 98, o disco é composto por canções do próprio Santana em parceria com Tom Robson, Irmão Z e Clóvis Melo. Beto di Franco, Muskito e Jéssica Lieko fizeram participações especiais.


A Crítica


Nota: 5,61

“Aqueles que se perderam na crítica que se encontrem na criação”. É com essa frase que Mingo Santana encerra o expediente e os agradecimentos no encarte de seu ‘Som das Araras’. Mas o tapa que deveria acertar detratores específicos de sua obra acaba acertando em cheio o rosto do público em geral. Assumindo uma incompreensível postura defensiva para quem se mete a publicizar algo, Santana não quer saber de gente ‘perdida’ discutindo o que ele fez, e se estabelece como um ser acima da opinião pública, intocável sobre o degrau dos criadores. Assim o recado, ao invés de ser uma piscadela cínica para os críticos, não é mais do que um escudo de desprezo a qualquer reação ao disco. Excelente, uma vez que, com tais cartas na mesa, acreditaremos estar diante de mais um rebento de um compositor genial, capaz de ter que afastar a todos para que a luz de sua sabedoria não cegue ninguém. Mas depois de escutar ‘Som das Araras’, não é necessariamente a visão que pede arrego.

É com pesar e decepção que se constata que a obra não é, de forma alguma, rebento de um compositor genial. Ocupado demais em se situar acima da apreciação minuciosa e da discussão, Mingo Santana deixou a tarefa de ser audível em segundo plano e, mesmo cercado por uma excelente banda, pôs na praça um disco constrangedor. Muito longe do que planejara o autor, o atributo mais relevante da obra parece ser justamente o de fazer coçar o lado reativo – e negro – de qualquer um que se dê ao trabalho de realmente escutá-lo.

Se não fosse pela frase-bofetada aplicada no fim do encarte, seria possível interpretar que Santana, arrependido, preocupou-se com a saúde de sua audiência ao denominar a primeira faixa de ‘Salve-se’. Mas a própria canção-aviso é, em si, um crime. Mesmo acompanhado por músicos experimentados e arranjos sólidos, Santana zumbe frases sem tonalidade definida, canta com preguiça, desaparece ocasionalmente em meio à massa sonora e revela uma incômoda incapacidade para a criação melódica. O refrão ‘salve-se quem puder’, por exemplo, passa a impressão de ter sido feito às pressas, no banheiro do estúdio.

A faixa seguinte, ‘Ultrapasse’, é uma verdadeira aula do que não se deve fazer com as sílabas de uma frase para musicá-la. Algumas palavras, declamadas com pressa histérica, são forçosamente achatadas para sublinhar a linha ‘melódica’ de um monótono reggae oitentista. Os anos 80, aliás, são a principal referência dos arranjos deste ‘Som das Araras’. Ótimo, mas é de se perguntar em que estavam pensando Santana e sua Arara´s Band – apenas desta vez protagonista de um equívoco – na faixa ‘Revel’. Composta por timbres que remetem tanto a comerciais de boutique quanto a anúncios de hora certa em rádio FM, a canção parece citar em sua levada inicial o tema da descida da nave no ‘Xou da Xuxa’. Além, é claro, de se constituir por extensão em uma não-planejada homenagem a medalhões oitentistas da ordem de Bozo ou Sérgio Mallandro.

Depois dessa apoteose infantil, Santana se empenha em compensar com agressividade. Porém, não vai muito longe com isso, e corresponde exatamente a toda desconfiança que se pode gerar diante de um hard rock batizado como ‘A Bossa Nova é Nossa’. É a partir dessa faixa, antipática e algo imatura, que se constata que o autor, apesar da versatilidade de seu repertório, parece sempre estar cantando a mesma música. Não há variações, não há opções relevantes de fraseado, não há sequer interpretação. E nessa faixa em particular o guitarrista, talvez cansado de contribuir com algo que dificilmente daria certo, permite a descensão do caboclo de um Van Halen e senta a mão nos solos. Mas é muito difícil algum instrumentista não aparecer diante da nulidade do cantor.

Lamentável, uma vez que ‘Som das Araras’ e ‘Cidade Adormecida’, se bem interpretadas, poderiam resultar até mesmo na salvação do disco inteiro. Ambas têm força, acordes melífluos e arranjos equilibrados. São composições firmes. Só que Santana insiste em alcançar o mérito não de tê-las feito, mas de tê-las estragado: em ‘Cidade-adormecida’, temos desafinação e falta de carisma; na faixa-título, temos desafinação, falta de carisma e uma irritante mania – recorrente em todo o disco – de somar ‘rás’, ‘rés’ e ‘ris’ ao fim de fraseados com vogais.

Por essa série de equívocos, aturar ‘Som das Araras’, 15 faixas adentro, parece façanha interminável. Por mais que se busque algo, o que se encontra é a monotonia da pretensiosa ‘À margem da História’; a ‘interpretação’ bisonha da muito bem arranjada ‘Japa’; a nada convidativa ‘Ponta dos Mangues’, prima feia da faixa-título. Sem falar no frio assassinato dos excelentes arranjos de ‘Visagem’ – que lembra em certas passagens os anos 80 de um João Bosco –, ‘Pra Dar’, ‘Nu Amor’ e ‘Comodista’, pela performance de calouro nervoso e inseguro do cantor.

O único mérito de Mingo Santana é o de ter reunido ao seu redor músicos dispostos a extrair o máximo de suas harmonicamente interessantes composições. Fora esse único fator, ‘Som Das Araras’ não é mais do que um atestado da incapacidade de seu autor de levar a público suas próprias criações. No mundo de Santana, crítica e criação se anulam e não podem conviver. Se isso pegar no mundo real, aí sim, salve-se quem puder.

2 comentários:

Unknown disse...

igor matheus vc fala com muita inveja de mingo santana,
ouvi o CD e gostei muito principalmente de nu amor que considerei uma obra prima
Comodista e pra dar são músicas que deveriam ser conhecidas pelo grande público, pena que o aracajuano só dá valor ao que é de fora


zykah brasília DF

Igor Matheus disse...

Ser acusado de invejoso é fichinha. Ainda mais diante de uma obra como essa, que me despertou um estado de admiração transcendente - não se engane, quando digo 'salve-se quem puder'no último parágrafo, quero garantir que apenas eu terei acesso à genialidade do autor.

Parabéns pelo ouvido e pela originalíssima lamentação na frase final. É a pessoas com sua formação que devemos o excelente estado do cancioneiro nacional - enriquecido, inclusive, pelas inestimáveis contribuições da impressionante cena de Brasília.