10 setembro 2009

COM TODAS AS CONTRA INDICAÇÕES



‘A Voz do Sentimento’, de João Moura. Gravada em 1999, obra contou com Moura nos pianos e teclados, Evandro Shiruder na guitarra e no violão, Moabe Hasem no baixo, Anderson Batista na bateria, Pedrinho Mendonça na percussão e Márcio Mercena nos teclados adicionais.


Nota: 4,13

Indicado para:
quem corre emocionado pro banheiro a cada vez que a Ana Maria Braga termina de ler suas mensagens matinais.

TRILHA: ‘A FORÇA DO CORAÇÃO’

A inspiração foi pro ralo? Não sabe mais o que dizer? Seccionou o vaso sanguíneo da inventividade? Está desesperado para pegar algumas gatinhas? ‘Vem pra cá, vem pra cá, vem pra cá’, porque seus problemas acabaram. Chegou ‘Poetex’, a primeira emulsão destinada à falta desesperante de boas idéias em qualquer manifestação artística. Com apenas uma colherada, Poetex garante que você imagine e conceba, em questão de minutos, coisinhas bonitinhas e imediatamente assimiláveis para a platéia média. Se você é diretor de cinema, corra: elabore roteiros com muita troca de fluidos e situações absurdas para um público de australopitecos com uma simples dose. Se você é cronista, não perca tempo: impressione sua meia patota de toupeiras pré-românticas e sub-literatas com um textinho afetadinho e perca sua vontade de quebrar bares como um vândalo. Se você é compositor, se apresse: grave um disquinho instrumental com títulos açucarados e pecinhas amargas de ouvir com uma simples engolida. Nunca foi tão fácil tratar o público como um bando de imbecis. Peça já o seu Poetex. Libere o ‘poeteiro’ que existe em você.

Mesmo que a gororoba acima não exista – pois é, ‘poeteiro’, largue o telefone –, muita gente por aí ficaria muito bem na telinha vestindo uma camisa com os dizeres ‘Tomei’ em um comercial. Muita gente, menos João Moura. Ele, não. E não pela hipotética recusa do compositor em participar da divulgação, mas porque, graças a esse ‘A Voz do Sentimento’, seu nome já estaria na bula ao lado do efeito colateral por doses cavalares. Sem muitos rodeios, essa obra é uma tigela de ki-suco com cinco frascos de adoçante boiando abertos. Um cubo maciço de açúcar do tamanho de um armário vagando a esmo sobre uma piscina de mel.

Doeu no baço? Ainda não é suficiente. Com seu sub-romantismo e sua superficialidade estilística que quase nunca sai de fórmulas rasteiras e primárias de maciez sonora, ‘A Voz do Sentimento’ é a obra ideal para quem se emociona com comerciais de fralda. Mas o fator mais escandaloso não é nem seu caráter excessivamente, digamos, ‘apolíneo’, mas o fato de toda uma banda girar em torno de um solista que não sola e de um protagonista que não toma a frente. Mesmo crescendo de expressão no final, o álbum não consegue se redimir dos equívocos mergulhados até o pescoço na melação e no insensível desperdício de uma banda dedicada. Definitivamente, não é necessário oferecer remediozinho pra quem já é xarope.

HIPERGLICEMIA PURA

A resistência do sistema digestivo alheio é seriamente experimentada logo no início. Cansativa, desinteressante e marcada por uma bateria sempre suspensa, ‘Em Sintonia com o Sol’ não se desenvolve nunca. Nada cresce, nada se desenvolve, nada se transforma. E tudo transmite a impressão de ser apenas uma introdução esticada que gira em torno de si mesma com burocracia e hesitação, como se prenunciasse algo superior. Mas após quase três minutos, o que se percebe como algo indubitavelmente superior à peça é, exatamente, o silêncio. A seguir, o artificialismo escancarado dos timbres de videokê de ‘A Luz da Lua’ irrita, mas não impede que a faixa seja superior à anterior.

Infelizmente, porém, uma constatação como essa não ajuda muito. Se no início a peça flerta com o ambiente pretensamente onírico do New Age, no meio mergulha na rasteirice, na vacância e na indecisão estética típicas de trilhas de recepção de festa. Tudo parece ter sido construído com tanto desinteresse e mecanicidade que harmonia e melodia, mesmo casando com rigidez matemática, competem uma com a outra para ver quem chama menos atenção. O resultado é claro: empate técnico, pois a canção não tem um único trecho digno de lembrança.

Na seguinte ‘Aos meus irmãos’, os temas são ainda mais trabalhados que os de suas antecessoras. Mas é simplesmente impressionante como Moura não consegue esconder a descomunal força que faz para brincar de ‘virtuose’ em sua própria composição. Sublinhada por temas que parecem emperrar e por trechos que soam como se executados diante de uma partitura mal lida, ‘Aos meus irmãos’ é a peça que enterra o autor de uma vez por todas como intérprete pianístico. Em ‘Canção pela paz’, por sua vez, o título extrassacarose pode até anunciar uma sessão gratuita de sono comatoso. Mas eis que a versão chapada da banda americana Kansas entra no estúdio, desce a mão nos instrumentos e acrescenta algum valor à ingenuidade da pecinha, elevando-a mesmo que minimamente. De forma contraditória, é a levada ágil que descansa a audição alheia da ultragarapa inicial, ainda que sublinhada por um tema apenas esforçado sobre uma harmonia apenas simpática. Não é nada que mereça ser regravado pela sinfônica de Londres, mas leva o troféu ‘Ufa’ por se afastar com alguma força do material sofrível que compõe grande parte do trabalho.

DEIXA O MESTRE

Até aqui, já se sabe que Moura aplica o rock apenas precariamente, ignora o jazz, vira as costas para o fusion, faz careta para trilhas sonoras e dá uma lambidinha no New Age – não no de um Yanni ou de um Corciolli, mas nos que vêm acoplados a algum livro bufão de autoajuda. Diante disso, não há surpresa alguma quando se constata que ‘Minha terra’ é um breganejo instrumental – e com uma participação de coral de crianças para deixar titio Milton Nascimento sorrindo. Mas ainda mais absurdo que o interesse que Milton Nascimento poderia ter por um disco desses é o coeficiente de melação da faixa, nunca inferior ao nível ‘i’ - de ‘insuportável’. E é nessa peça que estão relacionados quase todos os elementos constituintes do impraticável ‘Manual João Moura’ de composição: linha melódica transparente de tão pálida, arranjos entorpecentes de tão sonolentos e harmonia bestialmente previsível. Em ‘Ontem garotos’, porém, o oferecimento de tal chorume se restringe ao tema impreciso do início. Ao longo da faixa, os arranjos vocais ajudam consideravelmente a erguê-la da pieguice tecladística, ainda que fiquem isolados pelo amontoado de estruturas que pululam como se fossem idéias extraordinárias.

A partir desse ponto, ‘A Voz do Sentimento’ resvala na superfície da membrana da ameba que rasteja sobre a relevância. A regra que rege todas as faixas do bloco final, porém, é a inconsistência. Não há uma única peça que se encerre sem algum excesso ou alguma falta. A faixa-título, por exemplo, se inicia bem e consegue se manter em nível não tosco por até um minuto. Só que, lá pelo meio, o desencontro entre piano e linhas de coral simplesmente não passa de uma soma a esmo de um background feito às pressas com um pianinho apenas esforçado – junção que, no fim das contas, serve apenas para a completa anulação dos dois elementos em si mesmos. ‘Cabelos Soltos ao Vento’ é outra faixa que se abre com idéias razoáveis, mas não cresce a ponto de sair de suas três ou quatro notas ou do arroz com purê da linha melódica. Ao menos se deve prestar o devido reconhecimento à corajosíssima atitude de Moura de permitir a entrada de um violão solo, correndo assim o risco de ser sumariamente engolido e ofuscado. Mas o violonista, comedido, vai ficando quietinho e deixando o ‘mestre’ trabalhar.

‘Na mira do teu olhar’, por sua vez, até assusta pelo intróito levemente virtuosístico nos arranjos, mas logo descamba para a retidão. Já ‘A Voz Interior’, essa sim absolutamente entregue ao New Age, revela-se um interessante exercício timbrístico, onde a força atmosférica consegue maquiar o raquitismo inventivo de suas bases. Mas a chatíssima e purgante ‘Um velho viajante’ e a bitolada e fundada sem pudor sobre clichês baratos ‘A força do coração’ são duas baleias azuis prenhes firmemente acorrentadas em qualquer tentativa de alçada estética do trabalho, predominantemente ralo.

Não é necessário esforço ou ingestão de energético nenhum para gravar um disquinho bonitinho e piegas. Basta esquecer que o mundo girou. Ou considerar a platéia um bando de chimpanzés. Ou simplesmente não ter aprendido praticamente nada que valha a pena ser mostrado. Mas Moura não se deu apenas ao luxo de não precisar tomar ‘Poetex’. Sua dieta durante as gravações de ‘A Voz do Sentimento’ também envolveu a abstinência de um comprimido que, geralmente, apodrece em atacado: ‘Vergonhol’.

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