25 setembro 2009

FORÇA FAMILIAR


A obra:
Justificar
‘Algum Alguém’, de Lula Ribeiro. Lançada em 2006 e gravada no Rio de Janeiro, obra contou com Luiz Meira no violão, Claudio Infante e Marcos Kinder na bateria, Arthur Maia no baixo e na produção.

Indicado para: quem acha que Caetano Veloso, como compositor, tem sido um ótimo pai de família.

Nota: 8, 86

A crítica:

Lula Ribeiro foi mais longe que muita gente, mas jamais conseguiu emplacar em lugar nenhum. E a razão para seu fracasso de propagação é facílima de constatar: trata-se, claramente, inexoravelmente e inevitavelmente, da escandalosa semelhança timbrística de sua voz com a de Caetano Veloso. Está aí um negócio extra-científico. Magnificamente constrangedor. Doidamente infeliz. Espetacularmente deprimente. E se esse predicado genético o ajudou em algum momento de sua carreira, hoje contribui para que o autor jamais consiga evitar que seu trabalho, mesmo autoral, tenha a inscrição ‘cover’ tatuada na testa imediatamente. Essa situação reflete um caso pouco comum de inversão de valores referenciais. Isso quer dizer que, se antes Ribeiro tinha Veloso como herói e agulha de sua bússola, hoje o tem como sua grande sina; sua âncora de vinte e sete toneladas; sua manada de hipopótamos dormindo no meio da estrada; sua Brasília com problema no radiador. Desse jeito, Ribeiro amarga a condição de ser a cópia que o camelô não quis. Ou pior: de ser a Cláudia Leitte que não deu certo.

Só que nada disso impediu o autor-intérprete de levar ainda mais a sério os elementos que compõem a obra de seu mestre e ir muito além da provocação de uma curiosidade mórbida na audiência. Ainda que não mude a vida de ninguém, ‘Algum Alguém’ é um dos mais brilhantes filhotes da estética velosiana lançados por aí. E é o tipo de disco que, inclusive, lembra o quanto o ex-tropicalista esqueceu de fazer o papel de si mesmo para virar um babão de João Gilberto muito mais interessado em revestir lixo de algum valor intelectual do que revestir a si mesmo de um pouco de vergonha. Se para alguns Caetano Veloso acabou, Lula Ribeiro sugere o que aconteceria se, no terreno harmônico-melódico-rítmico, o baiano cabeçudo não tivesse virado as costas para o próprio legado. E é sempre importante destacar esse trinômio com quinze hífens acima, uma vez que, no quesito letra, ‘Algum Alguém’ está no calabouço do porão do chão em que o filho de dona Canô pisa. Assim sendo, a saúde da estilística caetânica se resume a duas atitudes: Veloso quietinho sem violão; Ribeiro devidamente ‘iletrado’ entoando ‘lá-lá-lás’; e a platéia roendo unha, esperando que cria e criatura se encontrem, se somem e deixem tudo ficar Odara.

CAMINHANDO COM O VENTO

O início do disco é que é um dilema. Mesmo longe de ser um desastre, a faixa-título não deixa de transmitir incômodo e estranheza como abertura. É bem certo que, em alguns trechos, ‘Algum Alguém’ até se justifica como entrada. Mas quando o negócio se entorta para um estudo de reggae com um sublinhar de bandolins de vez em quando, um penico é arremessado na parede. A canção perde força, se superficializa e dilui o que havia de supreendente na harmonia e na melodia com uma irreverência inadequada e meio pateta. Diante dessa realidade, é soado um alerta geral ao ouvido alheio diante de tudo o que se virá a seguir.

Só que Ribeiro parece não estar nem aí, e desafia o senso de defesa que a primeira faixa encoraja em qualquer um com algo chamado ‘Te Amo Aracaju’. Com um título de campanha publicitária de prefeitura como esse, é impossível estancar a desconfiança e não temer que tudo descambe, sem pena, para uma lista infindável de endereços enfiados em imagens poéticas tão profundas quanto um rascunho. Sem falar na solução estilística geralmente empregada para esse fim, que sempre converte o que deveria ser uma homenagem em frio assassinato do tempo e da paciência de cidadãos inocentes. Mas essa ‘Te Amo Aracaju’, para alívio de todos, é uma canção e tanto. É pulsante. É ousada. É excelentemente arranjada. E além de ser mais caetânica do que muitas coisas que o próprio Caetano fez ultimamente, dá um abraço nos bons momentos de Djavan. Tudo é tão maduro que é simplesmente incompreensível a decisão de Ribeiro de acrescentar uma estúpida e poluidora enumeração falada de bairros e lugarejos da capital lá pelo fim – como preconiza a estética ‘cajueiro-dos-papagaios’. O que conforta é que, exatamente por tudo ser maduro, não há como considerar essa ‘jequice soberanóide’ como algo significativamente prejudicial a tudo.

SEM LENÇO E COM DOCUMENTO

É simplesmente assustador como a execução de ‘Congênito’, de Luiz Melodia, remete ao tal do ex-ex-marido de Paula Lavigne. Está tudo lá: flertes com fusion nos estrofes iniciais, refrão grudento, batuque paralelo à ritmia convencional do pop. Trata-se simplesmente da versão de Veloso para a peça se o adestrador do Leãozinho fosse submetido a uma produção mais modernosa e menos violonística. Já ‘O Amor Presente’, autoral, é o casamento do viés romântico do amiguinho de Gilberto Gil com um jazz classudo e afastado da assepsia harmônica graças à escuridão das intervenções pianísticas. É peça feita por quem sabe o que é elegância não do ponto de vista do discursinho fuleiro, mas do ponto de vista prático.

Já ‘Entender’ entra arrasadora nos arranjos e abraça para junto de si todas as expectativas. Mas não se desenvolve tanto como se espera. As evoluções são comedidas, as estruturas não se destacam muito e, no fim das contas, coisa alguma sai do lugar. Mesmo assim, segue como uma aula de arranjos e timbrística. ‘Milagre’, por sua vez, faz jus ao título e realmente traz dentro de si uma extraordinária fatalidade: seu anonimato. Ágil, moderna, extremamente radiofônica e, principalmente, bem construída, uma faixa como essa tem mais cara de hit do que muitas flatulências de produtor que se convertem em próximo sucesso antes que alguém tenha excretado o anterior.

ELE SEMPRE FOI À ESCOLA

Conduzida por uma equilibrada e sensível levada jazzística, ‘Pra Lua’ sem dúvida alguma figuraria entre as três amostras utilizadas por Ribeiro e seu parceiro Arthur Maia na hipotética oficina ‘Arranjos de disco: primeiro módulo’. É bem verdade que, se o romantismo boboca e sub-bossa-novista do binômio natureza-metáfora jogar um toco de pau naquela moita ali, a letra dessa faixa corre e traz o troço na boca abanando o rabinho. Mas também é necessário ter seis litros de bílis no sangue para considerar esse aspecto como algo relevante diante da riqueza e profundidade do que é apresentado. E por sua atmosfera arrastada e distante que remete a algo que se esvai, ‘Pra lua’ estaria mais à vontade como cartucho de despedida do trabalho.

O dever de casa que papai Veloso passou é feito com esmero, notas de rodapé e bibliografia, mantendo a regularidade das boas idéias. Assim, o trabalho prossegue com a obscura, tribal e semi-flamenca ‘Procura-se’; com a versão intimista da simplória ‘Pai e Mãe’, de Gilberto Gil; com a dançante, recortada e escrachada ‘Dama Diet’; com a impressionantemente velosiana e memorável ‘Não há mais nobreza’; e com o encerramento ainda mais caetânico da percussiva e aérea ‘Vem bonita’.

Ninguém gosta de ser cópia de nada. Diante da constatação de que seu trabalho é filhote do que quer que seja, um criador é capaz de xingar a própria mãe para defender suas intenções de independência ou mesmo de originalidade. Mas é necessário ser uma ameba ambulante para estabelecer ‘Algum Alguém’ como um trabalho autônomo. Enquanto Caetano Veloso for vivo no imaginário do cancioneiro tupiniquim, Lula Ribeiro será uma de suas sombras imediatas. Só que da mesma forma que o mestre é o eclipse que obscurece o aprendiz, também é a fonte de suas boas idéias – o que impede que Ribeiro se converta em uma ‘simulação’ desnecessária, brochante e esquecível. Assim, mesmo caminhando sob o sol, ele é um algum alguém.


1 comentário:

Alan disse...

Tenho uma pequena impressão que você ama a Cláudia Leitte. Ela não sai das suas resenhas. =)