29 janeiro 2010

ENSAIO SOBRE A CONJUNTIVITE


JustificarA obra: ‘Pálpebras’, de Chico Queiroga. Gravado em São Paulo, disco contou com Luis Meira nas guitarras, Sizão Machado no baixo, Guello na percussão, Roberto Lazarini nos teclados.

A nota: 3,68

Indicado para: insones crônicos. Ou para quem não enxerga - nem ouve - um palmo à sua frente.

Não faltam estratégias para quem quer passar despercebido por aí. Uns se mudam para onde ninguém os conhece – muito embora a medida possa ter o efeito contrário. Outros escrevem prosas poéticas e posam de jornalistas. Outros fazem subjornalismo e posam de escritores. Outros vivem na moda, outros fingem gostar de Glauber Rocha, outros se fazem de intocáveis em boates, outros comem tudinho na hora do jantar, outros dizem com orgulho que são ‘ecléticos’. Mas Chico Queiroga desprezou todas as artimanhas acima para inovar. Sua saída foi lançar um disco.

Esse textinho aqui está até grande. Mas a verdade é que é muito difícil passar mais do que três minutos e meio discorrendo sobre essa obra. ‘Pálpebras’ é tão chato que qualquer assunto se torna imediatamente mais suculento e envolvente do que a lembrança de sua existência. Tão sem graça que não chamaria a atenção de ninguém nem que viesse com um cheque em branco acoplado no encarte. Tão pasteurizado e esteticamente pálido que sua audição não provocaria reações nem entre fãs de KLB. E o mais interessante é que a obra traz todos os ingredientes de um trabalho bem-sucedido. O repertório da obra é uma saudável salada. Os arranjos não deixam a desejar. Queiroga é um cantor eficiente e com pleno domínio de seus atributos vocais. E as canções apresentam uma preocupação acima da média com recursos harmônicos e melódicos. Mas a soma de tudo isso, no final das contas, não se situa muito acima de zero. ‘Pálpebras’ é uma coleção de canções sem força, sem graça e sem nenhum potencial de sobrevivência de um compositor geralmente inventivo. É, exatamente, o ‘The Bost of’ de Queiroga.

TROPEÇO


O casamento tenso entre reggae e fusion em ‘Minha maior vontade’ tem lá sua relevância. Mas quando chega no refrão, a canção despenca precipício abaixo, tamanha a frieza e o teor irritantemente convencional do trecho. Nada lembra a malícia harmônico-melódica do estribilho inicial. E a seqüência de acordes criada para sublinhar as frases parece ter sido a primeira a ser pensada por Queiroga, provavelmente já farto de raciocinar. A obviedade do arranjo no final, por sua vez, não lembra mais do que os três segundos finais de algum comercial fuleiro de mercadinho. Considerada em seu minuto inicial, a seguinte ‘Gosto de Mel’ parece ter sido concebida para corrigir o tropeço inicial. A bateria leve, o sax mais leve ainda e o teclado atmosférico chegam a remeter à fase oitentista de Beto Guedes. Mas é só. A peça não cresce. Fica circulando em torno de si mesma e não transmite outra sensação a não ser a de nunca ter sido terminada. Dois a zero para a opção ‘desligar’.

‘Topo da favela’ é que dá um certo tempo nesse brochante ensaio de chatice que a obra tem sido até aqui. A peça não melhorará o dia de ninguém, mas é um indiscutível aclive no repertório. Samba simpático e bem estruturado, a canção se desenvolve em cima de boas idéias harmônicas – que não reinventam nada, mas funcionam - e uma atraente linha vocal – que são marcadas até pela retidão, mas costuram e equilibram bem o sobe-desce harmônico.

PAUSA PARA O COMERCIAL

Quem for proprietário de qualquer um dos bares demolidos da Aruana deve manter distância razoável de ‘Barracão do Zé’, não interessando o significado da situação descrita no refrão. Mas essa é só a primeiríssima impressão. Após perigosíssimas audições seguidas, a advertência passa a se estender a qualquer um. ‘Barracão do Zé’ é mais do que uma faixa ruim. É uma faixa que se comporta como se fosse a pior canção das horríveis e destrutíveis trilhas em playback de alguma apresentação de bonecos. Trata-se de um sub-reggae permeado de amadorismo e excessivamente confiante na força do refrão, o que faz com que o trecho seja repetido até os limites do desespero. É aqui que Queiroga mostra sua capacidade de ser chato com força.

‘O Varão’ é outra peça que nunca diz a que veio. E é o perfeito exemplo de como riqueza harmônica nunca incorre necessariamente em acerto estético. Mas que se reconheça: errar dentro do excesso, nesse caso, é tarefa pra poucos. Isso porque enquanto quem é maçante em cima de vinte acordes o faz por não ter parado pra pensar melhor, quem é maçante em cima de dois acordes geralmente o faz por incapacidade de pensar – e de conceber que outros também pensem. Ora, ‘O Varão’ não chega a ser a jobiniana ‘Luísa’ – célebre pela harmonia quilométrica – mas tem seqüência para atormentar qualquer violeiro de Legião Urbana. O problema é que nada funciona. A construção é vazia, sem força e transforma a canção em um trambolho interminável. Sem falar nos constrangedores teclados, que mantém a faixa com cara de jingle de loja de auto-peças.

E que coisinha terrível é a próxima ‘Negro é Cultura’. Aqui, Queiroga se entrega ao discurso engajadinho para arrebatar a simpatia do movimento e, depois, quem sabe, enviar-lhes o cheque com a discriminação ‘Jingle de campanha’- é, outro comercialzinho. Só que negro é cultura. Ou melhor, afro-descendente é cultura. É muito difícil que alguém se sinta tocado pelo afoxé de plástico, pela letra piegas e pelos indisfarçáveis arranjos de axé barato que compõem a canção. ‘Negro é Cultura’ e suas estruturas circulares dão um efusivo abraço no tédio e dão língua para toda a feitiçaria de um Milton Nascimento nos primórdios ou do nagô de um João Bosco de sempre.

TOLERÂNCIA

Quando já está dando tudo errado e a desconfiança começa a assomar com toda a força na população, surge ‘Não me leve a mal’. Salsa bem construída, jovial e, agora sim, exercício bem-sucedido de pujança harmônica, a faixa é um sopro de brisa no escaldante deserto de irrelevância constituído pelos cataclismas anteriores. Já a sofisticada ‘Beijo de Mar’ inicia encorajadora e preparada para se configurar em um outro acerto. Mas é outra daquelas que não se eleva e gira e gira e gira em torno de ‘refrões’ com cara de estribilho e estribilhos que não tem cara de absolutamente nada.

O panorama das faixas finais não muda muito, empurrando o disco para a galeria das obras apreciáveis apenas sob messiânica tolerância. ‘Jogos Verdes’, que já não é muita coisa, é assassinada a pauladas pelo teclado. Em ‘Minha Namorada’, acontece o contrário: as marimbas sintéticas do início anunciam algo interessante, mas não evitam que a peça não passe de um amontoado de acordes mal costurados. A apenas aturável ‘Pálpebras’ tem um surpreendente pé no folk, mas sua escolha para intitular o trabalho só reflete o quanto Queiroga investe na crença de conceitos fáceis e comuns de Beleza. Já ‘Acompanhando o Sol’ soa como uma canção pouco inspirada de um Tavinho Moura, o que, tendo em vista o que foi apresentado até aqui, é muito, mas não o suficiente para que se tire o disco de onde ele merece ficar: enfiado dentro de um baú.

Não é necessária tanta dose de heroísmo para agüentar uma obra como essa até o final. Do ponto de vista técnico, ‘Pálpebras’ ainda se posiciona acima de muita coisa. Mas não é isso o que a fará sair das profundezas do esquecimento. Artificial em alguns momentos, infantil em outros e insosso em todos, o álbum não traz uma única contribuição significativa para o repertório de Queiroga. Mas pelo menos a obra vai além do que propõe. Se no próprio título esse disco lembra que não é possível enxergar tudo o tempo inteiro, revela, no conteúdo, que é possível não querer ouvir algo pelo resto da vida.

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