21 maio 2008

O SOBREVIVENTE



A obra: Janeiros’, de Lula Ribeiro. Gravado em 1993 no Rio, trabalho contou com Luís Meira na guitarra, Zé Luís Maia no baixo, César Conti na bateria e Marcos Farias nos teclados. O baixista Arthur Maia fez participação especial.

A crítica:

Nota: 8,58

O fracasso ou o êxito público de uma obra nunca interessou e nunca interessará a nenhuma apreciação estritamente estética. Mas é particularmente curioso que um disco como ‘Janeiros’ jamais tenha figurado como pauta perene da audiência debatedora, nem mesmo como objeto de implacável achincalhe. Tudo isso porque o trabalho pode ser apontado, facilmente, como um epílogo bem-sucedido da subestimada MPB oitentista. O que faz com que a comparação a seguir, mesmo esdrúxula, tenha lá sua coerência: no vestibular para a música popular pertinente e suportável, Lula Ribeiro entregou a prova por último, mas conseguiu alta pontuação e se garantiu para a próxima fase.

Mas essa tal próxima fase, naturalmente, é aquela em que a MPB se enterra em uma miséria criativa sem precedentes – com exceções extremamente isoladas – e cede terreno a uma proliferação inacreditável de trabalhos molóides, subtropicalistas, repletos de regravações que ninguém pediu e pretensões tão meramente industriais que cheiram à extorsão. Ou seja, é a fase atual. Isso significa que ‘Janeiros’ é, sobretudo, um sobrevivente. E foi em plena recessão que Lula Ribeiro decidiu tornar público o rebento de seu relacionamento com os anos 80, o que amplia sua relevância. Para alívio de todos, o filhote nasceu com saúde: dos arranjos às composições, a obra está dentro dos limites de bom gosto e expressividade do que há de mais pertinente da década em questão.

Entretanto, é importante estabelecer que estar dentro dos limites significa também pouca ousadia. Em ‘Janeiros’, a preocupação de Ribeiro não é de forma alguma propor algo mais ou se posicionar como precursor do que quer que seja. A obra é resultado de ingredientes pré-estabelecidos, mas que exigem desenvoltura e compreensão para que não se convertam em tentativas presunçosas ou em réplicas desavergonhadas. É bem verdade que, em um primeiro momento, é fácil categorizar Ribeiro como um Caetano Veloso resfriado, o que ameaça o autor de ser situado como mais uma cópia desnutrida de seu modelo. Mas nem mesmo nos momentos mais ‘Podres Poderes’ de seu trabalho Lula Ribeiro chega a resvalar na baixeza de uma versão mal-sucedida. Em vez disso, o que se vê é um aluno aplicado de seus mestres, que demonstra conhecer os ingredientes e, principalmente, como misturá-los.

E isso já é provado em ‘No Brega’, a faixa de abertura. Festiva, funkeada e ao mesmo tempo sofisticada, a canção possui força suficiente para reclamar para si o posto de introdução. A letra de Chico Pires já revela aqui certa pendência para estranhas frases a esmo e pílulas de um pretenso concretismo, mas não há como questionar o entrosamento entre frases e melodia, ambas bem costuradas pela irreverência. Já ‘Trilha do Luar’ está fadada para sempre a lembrar de imediato ‘Amor nas estrelas’, interpretada por Nara Leão. Mas as semelhanças se limitam à introdução: a canção logo se diferencia e se desenvolve como uma rumba inspirada harmonicamente, ainda que não conte com uma interpretação exemplar de seu autor – o caetaneado Ribeiro simplesmente não consegue alcançar certas notas graves de sua própria criação. Pelo menos o breve encerramento em modulações jazzísticas faria um Toninho Horta lacrimejar de orgulho.

Mas de repente Ribeiro acha necessário prestar reverência a alguém. E o faz a Lupicínio Rodrigues, com a cansativa – pasmem – ‘Nunca’. Depois da trajetória agradável e consistente proporcionada pelas duas primeiras faixas, essa decisão do autor se revela um bueiro aberto sem aviso prévio. Em quatro minutos de queda livre, a faixa consegue ser ainda mais antiquada que a versão gravada por Zizi Possi uns dez anos antes. É, portanto, apenas mais uma releitura de boteco. Mas é muito difícil acreditar que Ribeiro, arranjador consciente e compositor capaz, tenha pensado sozinho em fazer algo tão ruim.

Talvez por isso ‘Flerte Fatal’ esteja imediatamente depois. Como que pedindo desculpas pelo tropeço anterior, o compositor saca logo uma das melhores canções do disco. É bossa nova clássica, mas, ao contrário das demais, suportável. De jovialidade praiana, a melodia da canção encaixa-se com elegância na harmonia liberta de clichês. E há ainda uma referência em plena letra à possibilidade de Marina Lima cantá-la, o que se mostra ao mesmo tempo apropriado e inconveniente: de fato a canção cai como uma luva para o oitentismo supra-harmonizado da carioca; mas a auto-referência na terceira pessoa é um exercício de humildade e bom-senso apropriado apenas para sujeitos como Pelé, Maradona e para certo molusco do Planalto Central.

A atmosfera de banquinho e violão é retomada na faixa-título. E mais uma vez o autor demonstra domínio, esquivando-se da contagiosa preguiça bossanovista e não deixando dúvidas de que tem em casa a discografia completa de seu mestre tropicalista. Talvez seja por isso que a canção implore assustadoramente pela interpretação de uma Gal Costa. Ainda que possua uma letra que qualquer um pode fazer, ‘Janeiros’ é rica o suficiente para figurar no repertório de intérpretes com grande extensão vocal.

Já em ‘Romper o Mar Imoto’ as referências estão em carne viva. Bêbado ou acometido por amnésia, Caetano Veloso atribuiria a faixa a si mesmo. E a precisão dos arranjos sintetizados de Arthur Maia deixa a canção com o mesmo pedigree das principais peças populares cunhadas nos anos 80. A ágil ‘Arte e Manhas’, por sua vez, é tão bem compactada e estruturada que poderia se converter facilmente em um hit. Mas ‘Alfazema’, cuja introdução parece tirada do disco ‘Os Borges’, de 1980, é mais ingênua e menos inspirada. Mesmo assim não atrapalha, e até de certa forma prepara o terreno para a excelente ‘Dengo’, a faixa derradeira. Mais distante de suas principais influências, Ribeiro fecha o disco com um pé-de-serra sofisticado, irreverente e candidato a clássico.

Aliás, não seria exagero algum situar o próprio ‘Janeiros’ como candidato a clássico dos últimos suspiros do cancioneiro popular daqueles anos 80. É verdade que há um quê de algo em maturação. E a equivocada ‘Nunca’ estará ‘sempre’ lá. Mas Lula Ribeiro conseguiu conceber um trabalho consistente o suficiente para relegar os defeitos ao limbo das exceções. E, além disso, figura entre os que podem bradar que, quando o negócio é crise – como a de certa época que ainda não passou –, é muito melhor chegar atrasado.

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