01 agosto 2009

AS "ÂNUS" TRACKS


A obra:

‘De Passagem’, de Joésia Ramos. Lançado em 1997, disco contou com Gilson Batata e Beto Vasconcelos no baixo, Du Silva nas guitarras, Gilberto Moura na flauta e Wolney Monte Santo nos violinos, entre outros músicos.

A nota: 7,93

Indicado para: quem põe um disco em um playlist qualquer e só acaba prestando atenção no que colocou vinte minutos depois.

A critica:

Essa maniazinha desgraçada de enfiar centenas de canções em um único trabalho é mesmo uma praga. Vira-se para a direita, lá vem um disquinho com 16 faixas. Pela esquerda, outro com 47. Embaixo, 62. Em cima, 105. E o mais angustiante é que, em praticamente todas as vezes, não há absolutamente nenhuma razão em particular justificando a presença da miríade de coisas. O que predomina, como conseqüência desse ofegante desespero numerológico, é o esmagamento completo da coerência e do alicerce estético do trabalho, que não passa de um amontoado, um batidão, uma gororoba que fornece espaço para que uma maçã apodreça todo o cesto ou para que o cesto apodreça de vez uma ou duas maçãs. Esse ‘De Passagem’, por exemplo, é um brucutu com dezessete pecinhas. E qual não é a surpresa ao se constatar que a obra, que bóia onde quase todas as outras afundam, só não alcança a ionosfera da qualidade total graças à contribuição de um certo grupinho de canções sem o menor propósito e altamente deslocadas de tudo. São as ‘ânus’ tracks.


A presença desses ‘brindes’ em ‘De Passagem’ é grave, mas não catastrófica. Quando o disco termina, a sensação remascente é a de uma experiência que começou pendendo para o desastre e recuperou-se a tempo de ser gratificante. Trata-se, portanto, de um trabalho de alta patente, predominantemente bem-sucedido e com o crédito de ter pelo menos uma faixa de altíssimo valor. Ao mesmo tempo, porém, é complicado desvencilhar o todo da turminha de faixas excedentes, que mesmo que tenha entrado antes no balaio, só permaneceu no trabalho por alguma compulsão numérica de quem quer que tenha listado o repertório. Se o bom senso e a furiosa disposição de fazer algo digno de lembrança fossem os reais elementos de juízo para a seleção, o exército de 17 canções sofreria pelo menos sete baixas – quatro delas já na primeira quadra do disco – e teria sua ordem completamente reformulada.

Só que, para alguém, fazer o público ter contato com o máximo de obras da compositora foi muito mais importante do que fazê-lo ter contato com o máximo de obras ‘de alta relevância’ da compositora. Resultado: mediocrização desnecessária de um todo com potencial para a excelência. Ao invés de potencializar os trechos ascensionais, esse raciocínio consagra, na realidade – ora vejam – as benditas e gloriosas faixas sabor colonoscopia.

DIÓXIDO DE CARBONO


Há algo errado com ‘Mágica Mistura’, a faixa de abertura. Não é necessariamente a peça mais incômoda já concebida nem sufoca com chatice e afetação a estilística sertaneja nordestina e do Centro-Oeste, vertentes que são mais ou menos liquidificadas aqui. Só que a economia dos arranjos e alguma coisa a mais – a menos? – a deixaram tão pálida e sem impacto que seu posicionamento no pára-choque dianteiro converte-se, ao vislumbre de tudo, em um dos maiores equívocos desse trabalho. É importante ressaltar esse ‘um dos’ da frase anterior porque ‘Boi de Jadelina’, a peça seguinte, é uma fortíssima concorrente no quesito nulidade. Trata-se de outra faixa superficial e sonolenta, com desenhozinhos de flauta que transformam a visceralidade da relação homem e animal em algo infantil, fabulesco e sem força. Uma coisa dessas só serve para apresentações de fantoche, jamais nas primeiras faixas de uma obra tão sedenta por recuperação após um início molenga.

É estranha a particular atração de certos compositores sergipanos pelo reggae, uma vez que até agora nenhum deles fez nada de relevante dentro do estilo. Preocupada em fazer parte desse panorama animador, Joésia Ramos lança ‘Maleável’, mais uma pecinha altamente recomendada para insones crônicos. Só que nesse filme intitulado ‘Morte em Kingston’, Ramos pode se dar ao luxo de ser a membro da gangue que cambaleia levemente pro lado do mocinho: a inteligente escolha dos arranjos, o cuidado com a melodia e a harmonia minimamente pensada situam ‘Maleável’ em um patamar ligeiramente acima das demais tentativas muito bem sucedidas de relegar o patrimônio criativo de Bob Marley à irrelevância absoluta. Já ‘De Passagem’, outro semi-reggaezinho qualquer – não há outra forma de defini-lo –, assusta pela completa ausência de elementos que justifiquem não apenas sua promoção como título da obra inteira, mas sua própria presença no repertório. É justamente aqui que ‘De Passagem’, o disco, começa realmente a encher o saco.

OXIGÊNIO


Por isso é curioso que a faixa seguinte tenha a alcunha de ‘Eu sei’. Mesmo não sendo o ápice do trabalho, a canção representa o momento em que a compositora arregaça as mangas para mostrar o que realmente sabe fazer. Deslocada do inviável quarteto inicial, a peça é ornada com arranjos que enriquecem generosamente sua estrutura simplória e até mesmo previsível. ‘Saudade Nordestina’, por sua vez, é a aplicação pertinente do vazio que não funcionou nas peças iniciais. É bem verdade que o pandeiro é quase excessivo e o violino poderia fazer algo mais do que um punhado de arpejos. Mas não mancha de forma irreparável a rusticidade dramática e sincera intrínseca à canção.


Pela força dos arranjos, e somente por eles, a maltratada e pouco fundamental ‘Amor Roxo’ despontaria como a faixa mais convincente para abrir as cortinas do disco entre as que são oferecidas. Mas o que a torna automaticamente dispensável é a presença posterior de ‘Jardim de Xangô’, definitivamente o fastígio absoluto do trabalho. A beleza do binômio harmônico-melódico é simplesmente capaz de comover objetos. E a malha timbrística que os violões deitam, somada aos efeitos voltados para a Natureza – temática aqui despida de seu aspecto surrado e sempre digno de desconfiança –, são uma aula humilhante de sensibilidade. Não há exagero nenhum em decretar ‘Jardim de Xangô’ como o tipo de canção capaz não apenas de mandar o péssimo início do repertório para o limbo do esquecimento, mas de salvar um disco inteiro.

‘PASSANDO’

O tanto que a flauta errou ao transformar ‘Boi de Jadelina’ em ‘Conversa pra boi dormir’ é o mesmo tanto acertado na intimista ‘Piaçaba’. Apesar da simplicidade muito bem administrada, a faixa traz lampejos distantes do impossível rococó de gibão de um Elomar. O mesmo pode ser dito de ‘Amor de fogo e água’, ainda que o lençol de violinos e a linha melódica alicercem uma estrutura predominantemente feminina. Mesmo que ambas não sejam canções indispensáveis, estão a alguns anos-luz do desastroso quarteto sugerido no início.


A expressiva elevação de qualidade no repertório é mantida até o fim com doses generosas de boas idéias, ainda que o número excessivo de peças empurre algumas repetições guela adentro. É nesse cenário que se situa o relevante casamento do choro com fado de ‘Sozinha’; a sofisticação do cansativo mas bem arranjado ‘Samba de neve’; a bem executada e bem interpretada rumba ‘Este céu, este chão’; sua prima flamenca e com um pé e meio nas propostas do Clube da Esquina ‘Carta Carioca’; a grandeza dramática da inspirada e excelentemente arranjada ‘Paisagem rural/ Paisagem Urbana’; o escuro e pulsante estudo andino ‘Grande’; e finalmente a idílica ‘Barcos e beijos’, que anula a qualidade inferior da gravação com a beleza nobre e leve de seus mosaicos, constituindo-se em um dos melhores encerramentos de repertório do cancioneiro local.

É absurda a idéia de que um punhadinho chulo de canções ruins seja o suficiente para mandar Joésia Ramos ao Vale da Mediocridade, que fica a duas esquinas do Poço do Esquecimento. Capaz de compor em inúmeras vertentes, a compositora fez de seu disco um vitral consistente e de qualidade extremamente rarefeita. Mas deixar pra lá as ‘ânus’ track é como esquecer que a obra em questão é ‘De Passagem’, o trator de 16 faixas, e não ‘Passando’, sua hipotética correlata impecável com não mais do que dez projéteis. E é neste momento que se torna adequada uma cruel mas eficaz metáfora zoológica: selecionar repertório é ter a frieza da mamãe-águia: em nome da excelência genética da espécie, o filhote fraco vira adubo.


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