23 outubro 2009

DE PRIMEIRA


A obra: ‘Got to Be There’, primeiro disco solo de Michael Jackson. Gravada em 1971, obra traz composições de Bill Withers, Elliot Willensky, Four Tops, Carole King e Jimmie Thomas.

Nota: 9,22

Indicado para: qualquer um que queira que o filho metido a cantor cale a boca e vá fazer jornalismo ou culinária.

A crítica:

Alguns acham bonitinho, outros acham super fofinho, uns acham que é a manifestação máxima da Beleza em seu estado puro - seja lá o que for isso. Mas a verdade é que criança cantando é um saco. E ninguém precisa assistir ao circo de horrores de Raul Gil para comprovar isso. Basta ter um videoquê em casa e constatar que a única forma de suportar o instinto de puxar um 38 e disparar solenes tiros pra cima é sendo pai ou mãe ou avó ou tia da pequena sirene. Há, no entanto, algo que consegue a temerária proeza de ser ainda mais chato que moleques interpretando canções: um disco com moleques interpretando canções.

Em partículas do inferno como Balão Mágico, Sandy & Júnior e Jordy, o que se tem são registros de um exibicionismo meramente circense, executado apenas para que audientes impressionáveis se dobrem diante da precocidade de um ser humano pequeno – como o que acontecia diante de um espantoso Mozart aos 5 anos de idade. Em si, essas obras não agregam nada a nada - o que é mais característica do que necessariamente um defeito - e, como complemento, enterram a 6 mil palmos do chão qualquer tentativa do mini pintassilgo de se tornar um intérprete respeitável no futuro. É diante desse cenário apocalíptico que algo como ‘Got to be There’ adquire uma importância assustadora.

Quando lançada, a bolachinha deve ter sido uma bordoada na cara de muita gente - não na dos remanescentes da Klu Klux Klan, mas em todos que se mordiscavam por uma sombra na própria gravadora Motown. Ora, lá estava um moleque sorridente e confiante, usando boina na capa, metido a cantor. Mas, por são Marvin Gaye, what´s going on em suas canções? Arranjos de cordas imensos, meticulosas linhas de madeiras, sequências de baixo inspiradas, guitarras bem medidas, cravos, vocais de apoio? Por que esse tratamento de luxo, que fazia qualquer disco de Smokey Robinson ou Jackie Wilson soar feitos em quintais, a um dos moleques daquele fabricado Jackson 5?

Porque Berry Gordy, presidente da Motown, ansiava por pagar suas extravagâncias. E porque Berry Gordy, sem precisar de Raul Gil, sabia que: 1) havia encontrado uma pequena e extraordinária aberração 2) seu pequeno alienígena era superior a qualquer integrante de seu valioso elenco 3) devia fornecer a ele todas as condições aceitáveis e inaceitáveis para embalar aquele talento bruto em mega profissionalismo 4) para que o maior número de pessoas tivessem a mesma opinião que a sua em relação ao pivete, ele deveria municiar o trabalho de estréia com um repertório de alcance e beleza universais. E, então, eis a primeira contribuição de Michael Jackson para o mundo: ter protagonizado o primeiro disco aparentemente infantil que muitos adultos gostariam de ter gravado – uma façanha que nem o nosso herói, em sua fase pós-púbere, conseguiria superar.

INDESAFINÁVEL

‘Ain’t no sunshine’ é o primeiro indício de que o lançamento do moleque como prodígio solo não era aposta baixa. Os arranjos, apurados e cuidadosos, são a reunião de boa parte do que os músicos disponíveis para a Motown sabiam fazer de melhor. Tudo é elaborado com tanto mimo que não há como notar, na peça, o oportunismo de uma obra gravada às pressas e sem o consentimento total do patriarca dos Jackson, compadre Joe. E a versão não surpreende apenas por ser consideravelmente ‘complexa’ para quem terá uma criança ao centro: ela é a melhor versão gravada da composição. É muito melhor, por exemplo, que a versão de Bill Withers, seu próprio autor. E é melhor que a de Sting, que é pior ainda que a de Withers. Além disso, a constatação de que o culpado por isso não é mais do que um sujeitinho imberbe que nunca havia gravado um disco sozinho é séria, amiguinhos, muito séria.

A faixa seguinte é uma demonstração ainda maior de virtuosismo técnico e interpretativo. Tanto que não será uma tarefa muito dócil encontrar meia dúzia de cantores que consigam levar até o fim uma peça repleta de crueldades tonais como ‘I wanna be where you are’. E Miguelzinho parecia saber disso quando, mesmo antes dos pêlos pubianos, entregou-se para transformá-la em um blockbuster pré-disco music de força quase que marvingayeana. A linha vocal tem atalhos modais de dar estrabismo a uma Barbra Streisand? O moleque joga o arreio nelas. Há necessidade de agudos praticamente inalcançáveis e quase que somente perceptíveis para hamsters e furões? O guri o faz enquanto coça a virilha desinteressadamente. Precisa-se de variações e improvisos sobre o refrão? Nem precisa pedir. O pivete nos traz uma penca de idéias para que ninguém se lembre que a canção acabou há muito tempo. E como se não bastasse a interpretação ‘anormal’, a composição de T-Boy Ross e Leon Ware é uma irretocável peça de ouriversaria das canções românticas desligadas de afetação.

Já ‘Girl dont take you love from me’ é o tipo de peça que talvez ficasse ainda melhor na fase pré-luva-de-lantejoulas de Miguelzinho – mais pela elegância do que pela temática da letra. Mas e daí. Mesmo não fazendo parte da penca de arrasa-quarteirões que o álbum traz, a peça funciona. E em certo trecho perdido entre os refrões, estabelece o pequenino como um instrumento vivo e ‘indesafinável’: quem quiser que tente sustentar um dó por mais de 10 segundos com grau tão nulo de oscilação que faz a voz se confundir, em pouco tempo, com um sopro sintetizado.


JEITINHO PEQUENININHO

Essa mania de iniciar canções com falas, sejam declamações da própria letra, sejam apêndices complementares de uma tal ‘mensagem’, é uma tremenda chatice - ainda que não necessariamente desvie em 180 graus a atenção para o que acontece ao fundo. Mas ‘In Our Small Way’ não consegue ser estragada nem por isso. Talvez nem mesmo um dueto com Wanderléa seria capaz de trincar uma canção como essa. Não há nada de mais em sua harmonia, em suas linhas melódicas, em seus arranjos. Mas é assim mesmo, no seu jeitinho pequenininho, que ela é cativante, doce e feita sob medida para interpretações femininas. E o guri praticamente esgota as possibilidades da faixa, interagindo com maturidade assustadora com o coro do apoio e, pela enésima vez, brincando de ‘olha-como-eu alcanço-essa-nota-que-não-dá-pra-escrever-normalmente-em-partituras-de-tão-alta-que-é’.

E por falar em excentricidades, já houve gente por aí que declarou ser ‘Got Be There’ uma canção tão esquisita que não poderia ter sido cantada por ninguém menos singular que Michael Jackson. É claro que essa singularidade refere-se, ainda, à sua monstruosa versatilidade interpretativa e à sua sensibilidade auditiva inumana. E é preciso frisar que esse argumento de quem quer que seja consegue ser ainda mais ridículo que o inaceitável maiô dourado que o futuro ‘dono’ dos Beatles usaria mais tarde. ‘Got to be There’ é um dos tiros mais certeiros e inspirados do compositor Elliot Willensky. Uma preciosidade do cancioneiro black setentista. E ela é, isso sim, de execução vocal quase inviável para aventureiros. É por isso que uma Pitty não a canta. É por isso que um Badauí não a canta. É por isso que Alicia Keys, mesmo com todo o potencial, precisa ser multada severamente a cada tentativa de torná-la minimamente audível. E não se trata apenas da amplitude tonal. Em termos modais, a faixa comporta-se como as gravuras antigravidade de Escher: mesmo sobre um cenário hostil, é possível sentir a fluidez do movimento. Tradução: o cenário harmônico é labiríntico. Mas a linha vocal, conduzida com intensidade pelo protagonista, é o caminho que dá sentido ao ‘caos’.

‘WHAT THE FUCK YOU TWO IS DOING HERE’

Até aqui, ‘Got to be There’, o disco, revela-se uma assustadora coletânea de faixas de altíssimo valor marcadas por desempenhos humilhantes. Mas alguém teve a corajosa idéia de frear o fluxo com as murchas ‘Rockin Robin’ e ‘Maria’. É claro que a primeira, um rockão a la Little Richard de Jimmie Thomas, mostra um pouco da adaptabilidade do moleque em outros terrenos. Mas sua retidão e repetitividade destoa do que foi apresentado e arremessa o repertório pra cima em um momento que ninguem pediu. E se fosse para pedir alguma coisa, seria pelo surgimento de, no mínimo, outra ‘I wanna be where you are’. A escura ‘Maria’, então, talvez fizesse menos estrago melando o repertório dos The Four Tops, que a cometeram em um provável acesso de preguiça. Mas em uma obra como essa, é uma furiosa mordida na língua em pleno deleite do rodízio. Levada por um cravo em dois acordes, a peça soa apenas como a longa introdução de algo que parece nunca começar – e, quando finalmente o faz, já é tarde demais para que não se deseje, com certa pressa, que termine.

Entre essas duas minas, entretanto, há ‘Wings Of Love’, criação de uma não-tão-enigmática-assim ‘The Corporation’ – nada mais do que Berry Gordy e seus últimos parceiros de buraco do fim de semana mais próximo. Com sua atmosfera de melação cinquentista, a peça vinga a queda rumo à mesmice que a dupla antidinâmica acima ameaçava promover e dispara entre as mais belas baladas do disco. A interpretação de Michael aqui, por outro lado, pega o ouvinte no contrapé do costume por coisas mirabolantes e revela-se comedida. Mas ainda assim está longe de ser burocrática.

‘Love is here and now you’re gone’, por sua vez, é o tipo de canção que deveria ter sido duplicada no repertório, empurrando ‘Rock’n’Robin’ para algum disco ruim de Elton John. Todo o arranjo da faixa foi baseado na versão das Supremes. Mas, ao mesmo tempo, trabalhada para superá-la – o que foi alcançado. Pulsante e harmonicamente convincente, a peça é liderada por um Miguelzinho em firme timbre feminil e sem medo de levar umas boas palmadas da titia Diana Ross, claramente relegada a apenas alguem que ‘tambem’ interpretou a canção.

A peça anterior já seria um bom encerramento para a obra. Mas algum ser, provavelmente de sensibilidade extraterrena, achou que só valeria a pena se fosse excelente. E eis ‘You’ve Got a Friend’ na versão que Carole King nunca conseguiu arrancar de si mesma. Só que o mérito não se limita ao desempenho acima da média do intérprete central. Assim como todo o disco, a faixa é resultado de um esforço caro de reembalar canções alheias com arranjos e adornos inalcançáveis. Das cordas a la Paul Mauriat da introdução à condução fundamentada no baixo e na meia lua, tudo converge para estabelecer a faixa como o ponto alto da obra – e no local em que o ápice geralmente mais causa impacto: no fim.

Há muitas especulações acerca da pressa e do desespero de cunho pecuniário que envolveram ‘Got to be There, já que, mesmo sendo uma jóia, o moleque era um investimento sem sustentabilidade (a fase voz-de-arara-com-febre que acomete todos os pivetes na puberdade o aguardava dali a prováveis poucas horas para interromper seu registro feminino). Mas essa constatação de correria desenfreada apenas valoriza ainda mais o passe do disco. Porque é de se aplaudir que, de uma só vez, Berry Gordy e sua patota tenham concebido um clássico do trabalho coletivo - o mérito é tão do protagonista do álbum quanto de quem decidiu cobri-lo de louros - , um clássico da Motown de todos os tempos e, ainda, o lançamento definitivo do último gênio em miniatura que se viu por aí.

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