23 outubro 2009

NA BOCA NÃO APRESENTA: ESPECIAL (TARDIO MA NON TROPPO) MICHAEL JACKSON


Ninguem aguenta mais falar de Michael Jackson. Ninguem aguenta mais ler sobre Michael Jackson. Ninguem aguenta mais ouvir falar nas brigas de quem sobreviveu a Michael Jackson. Ninguem aguenta mais ver o fantasma de Michael Jackson arrastando correntes pelo Youtube. Ninguem aguenta mais saber quem deu Cataflan ou elixir paregórico demais para Michael Jackson. Ninguem aguenta mais especular se o congelador que Berry Gordy emprestou cordialmente para preservar o moonwalker por uns dois meses era Consul ou Electrolux.

Mas apesar do detalhamento de todas as miudezas, de todas as extravagâncias alienígenas de um sujeito perturbado, do oportunismo confuso de sua família não menos bisonha e desse enfado generalizado altamente justificável, a miríade de dados sobre o sujeito esqueceu justamente daquilo que, ‘apenas’, transformou sua viagem sem volta para Neverland em algo publicamente relevante: sua obra. Talvez o foco tenha sido atrapalhado por um certo patrulhamento velado, uma vigilância de babacas ressentidos que viram hipocrisia na busca repentina e desesperada pelos discos do ex-pegador de Brooke Shields. “Só porque ele morreu que vocês estão escutando isso, não é? Se ele ainda estivesse lambendo criancinhas por aí, todos continuariam esquecidos de que ele existia” - seria o discurso em carros de som dessa organização internacional de iconoclastas ocasionais.

O problema é que o substantivo ‘morte’ não fica muito bem quando antecedido do advérbio ‘só’. Porque morrer é algo extraordinário. Está muito acima do nosso entendimento. Está muito abaixo do nosso desentendimento. É algo encravado em todas as nossas minúsculas preocupações. E, ainda assim, é a única coisa absolutamente real de que se tem notícia. Além disso, todos ficam insuperáveis e sobrehumanos quando mortos, pois ganhar cinco bilhões pela internet ou dormir com Jessica Biel continuam sendo absolutamente nada perto do alcance da superexistência ou da nadificação.
Morrer implica em ser lembrado de alguma forma.

Só que ainda não é isso o que legitima o frenesi de viúvas que pararam a internet atrás de arquivos do sujeito. O que o faz é a constatação de que o cidadão sem nariz não era somente um afroamericano com sorte para vender zilhares de discos: era uma instituição viva; um titã multimídia da era do LP; e a mais icônica lembrança pop de uma década pop. Ainda que muitos possam ter por Michael Jackson a mesma estima que têm por um prato de jiló fresco - e por qualquer razão que seja -, não precisarão da presença de um rifle para reconhecer que não surgiu, durante a época em que ele estava por aí, artista com trânsito midiático tão inalcançável, com presença tão opressiva na indústria da cultura e com uma capacidade tão megalomaníaca de se automitificar.


Graças a isso, muitos cresceram achando que o rapaz não era nem animal nem vegetal, mas um personagem da Disney. E ainda que um Bruce Springsteen ou um Eagles tenham vendido mais álbuns do que o moonwalker em algum momento, absolutamente nada poderia tirá-lo da altíssima torre que seu perfeccionismo e seu peculiar senso de autopropagação ergueram. É por isso que muitos poderiam até se rachar de rir diante de sua autodenominação como ‘rei do pop’, mas, sem sentir, se somavam aos zilhões que sabiam dela. A conta, agora, ficou simples: fascínio da morte + faraó da estética megalomaníaca e semideus das vendagens + facilidades quase constrangedoras da internet = download pra cacete e procuras hiperbólicas. Hipocrisia? Modismo fuleiro? Curiosidade imbecil? Nada. É que Michael Jackson sempre foi gigantesco mesmo. Qual um buraco negro - com vitiligo.

É claro que os mais apressadinhos subentenderão essa interpretação do gigantismo do sujeito como uma tentativa de canonização. Mas a imensidão incontrolável do nome de Michael Jackson não evitou sua firmação, ao longo dos anos, como uma aberração em todos os sentidos possíveis de se entender o termo e nos opostos bons e ruins do significado. Foi um suposto pederasta ao mesmo tempo em que foi um inacreditável prodígio. Foi um consumidor extravagante ao mesmo tempo em que foi um perspicaz construtor de hits. Foi um adulto mimado ao mesmo tempo em que foi um performer com insuperável presença de palco. Foi um exemplo agressivo do que não se fazer com a própria imagem ao mesmo tempo em que foi um produtor visionário.

O ruim é quando o lado ‘monstro’ desse Dr Jekyll aflora sozinho em uma sequência de incidentes ridículos sublinhada por uma fase artisticamente improdutiva. Aí, temos o silêncio, o ostracismo. Aí, temos o tédio, o esquecimento. Como Michael Jackson poderia até ser ‘o maior artista do planeta’, mas não o único, esvaiu-se. E, aos poucos, a audiência passou a se acostumar com o seu lento estado de putrefação.

A tragédia de uma podridão encerrada por outra é fascinante. E quando há em meio a esse enredo uma tentativa de não sucumbir a nenhuma das duas – como foram os ensaios extasiantes e letais da turnê ‘This is It’ - , o apelo humano quadruplica. Mas o que fez de Michael Jackson o tipo de notícia destinada ao fim do telejornal não foi sua trajetória, mas seu repertório. E foi justamente ele que resenhistas e sabichões de toda sorte esqueceram de discutir. O sujeito lançou dez discos solo. Vendeu quilhões deles. E, mesmo assim, ninguem conseguiu dizer algo além de despojos como ‘depois do ‘Thriller’ nada prestava’ ou ‘a melhor fase é a dos Jackson 5’ ou ‘Janet Jackson: gostosa’.

A análise discográfica que se inicia abaixo e será continuada em diversos instantes acima será uma tentativa homérica, hercúlea e por que não michaeljacksônica de jogar algumas pazinhas de areia nessa ‘profunda cratera de coisas ralas’. Porque o sujeito pode não ter sido o gênio onisciente e imbatível que talvez achasse ser. Mas foi ele quem teve um funeral em um estádio lotado e com sorteio de ingressos. Desafio qualquer sabichão aí a também ter um.

1 comentário:

Renata Monteiro disse...

É, depois de tanta discordância e dizer que tanto estardalhaço era "só porque ele morreu",in finie, eis-me aqui, me curvando diante dele! O talento, inquestionável, depois bizarrices declaradas com holofotes, e agora, uma morte entranhada de questionamentos e mais uma vez holofotes a todo vapor.Mesmo na morte, incomoda, abala, aparece e coloca novamente o seu talento em evidência!Claro que ainda existe quem não saiba nada sobre ele e de repente se declare seu maior fã, mas há também quem busque por conhecer melhor o porquê de tanto alarde, enfim, a busca pelo seu talento, mais uma vez é ele quem aparece!E...dessa vez tenho que concordar...rsrsrs...adorei o texto...parabéns!